Em uma operação que começou no dia 22 de fevereiro de 2023, em Bento Gonçalves (RS), 207 trabalhadores que operavam em colheitas de uva foram resgatados. Eles se encontravam em condições semelhantes à escravidão, e eram mantidos pela empresa terceirizada Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, que prestava serviços para vinícolas da região da Serra Gaúcha. Os trabalhadores eram requisitados em seus próprios estados, e quando chegavam no local de trabalho se deparavam com longos expedientes, violência física e moral, alimentos estragados e atraso nos salários, além de serem proibidos de deixar o alojamento, sob pena de multa. O empresário responsável, de 45 anos e natural da Bahia, foi preso no mesmo dia, mas pagou fiança e responde em liberdade. As vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi, envolvidas no ocorrido, relataram que não sabiam da situação. Elas precisaram desembolsar 7 milhões de reais de indenização por danos morais, valor estabelecido pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), que determinou um Termo de Ajuste de Conduta.
Causas
Trabalhadores terceirizados que se encontravam em situação análoga à escravidão na colheita de uva para vinícolas da serra gaúcha.
Longos expedientes de trabalho, atrasos em salários, alimentos estragados, violência física e moral, impossibilidade de deixar o alojamento.
Exploração de mão de obra análoga à escravidão.
Falta de fiscalização das condições de trabalho por órgãos competentes.
Falta de fiscalização por parte das vinícolas de sua cadeia de fornecedores.
Gerenciamento
A prefeitura de Bento Gonçalves acolheu os trabalhadores em um ginásio municipal, oferecendo assistência médica, abrigo, alimentação e higiene adequadas.
Pedro Augusto Oliveira de Santana, responsável pela empresa terceirizada Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, foi preso no mesmo dia, mas pagou fiança e responde em liberdade.
No dia 27 de fevereiro de 2023, a maioria dos trabalhadores envolvidos já tinha recebido suas multas rescisórias e um valor para fazerem a viagem para casa, pois um acordo emergencial foi firmado entre o empresário e o MPT.
No dia 3 de março de 2023, os bens do empresário foram bloqueados pela Justiça do Trabalho, pois ele se opôs a firmar um Termo de Ajuste de Conduta.
No dia 9 de março de 2023, as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton assinaram um Termo de Ajuste de Conduta, junto ao MPT. Nesse termo, as empresas se comprometeram a cumprir 21 obrigações, como fiscalizar alojamentos, alimentação e o registro em carteira dos trabalhadores, além de garantir os direitos dos envolvidos.
As vinícolas, por meio de negociação com o MPT, a partir do Termo de Ajuste de Conduta, deverão desembolsar 7 milhões de reais. Desses, 2 milhões de reais serão distribuídos aos 207 trabalhadores envolvidos, em indenização por danos morais. Os outros 5 milhões de reais serão voltados para projetos, entidades e fundos que visem a reparação do ocorrido.
Comunicação
O advogado Rafael Dorneles da Silva, em nota, declarou que os fatos expostos pela fiscalização de trabalho seriam explicados pela empresa Fênix e seus administradores no momento adequado. Ele ainda informou que o empresário responsável não consente com o desrespeito aos trabalhadores e seus direitos, e que conclusões naquele momento seriam precipitadas e especulativas. Com isso, garantiu a colaboração da empresa para o bem-estar dos trabalhadores e a recuperação da verdade, afirmando que a Fênix estava fornecendo os auxílios necessários aos trabalhadores.
No dia 23 de fevereiro de 2023, por meio de uma nota de esclarecimento, a vinícola Aurora informou que não compactua com atividades consideradas análogas à escravidão e declarou solidariedade aos trabalhadores. A empresa comunicou que estava concedendo apoio aos envolvidos e colaborando com o Ministério Público Federal e Ministério do Trabalho para resolver a situação, exercendo suas obrigações e responsabilidades, inclusive com a rescisão dos prejudicados. A vinícola disse que emprega trabalhadores terceirizados devido à falta de mão de obra na safra da uva. Também informou que a empresa contratada recebia mais de 6,5 mil reais por mês por cada trabalhador, além de horas extras, e que esses eram tratados da mesma forma que os funcionários da empresa. Os prestadores de serviço, segundo a vinícola, recebiam alimentação adequada, treinamentos e condições dignas durante o horário de trabalho. Porém, a empresa desconhecia as condições dos abrigos em que os trabalhadores se encontravam depois do expediente. Por fim, a vinícola declarou que demanda das empresas terceirizadas todos os documentos da legislação trabalhista, e que, a fim de maiores esclarecimentos, está à disposição das autoridades.
Em outra nota oficial, publicada no dia 28 de fevereiro de 2023, a vinícola Aurora declarou que os episódios não aconteceram dentro da empresa, e que o Ministério do Trabalho nem sequer fiscalizou a vinícola. Nessa nota, ressaltou alguns pontos, como: o fato de que a Aurora satisfazia todas as necessidades durante o trabalho foi confirmado por relatos dos envolvidos, os contratos de trabalho foram exigidos no momento da contratação da empresa terceirizada e que não foram recebidas denúncias nos canais da empresa usados para esse fim. Por fim, a vinícola assumiu alguns compromissos, como: interromper a contratação de mão de obra terceirizada, aprimorar as fiscalizações, observar questões relacionadas às práticas trabalhistas e divulgar seus códigos de conduta e ética e canais de denúncia.
No dia 02 de março, a vinícola Aurora publicou uma carta aberta, dizendo que o ocorrido os enfurece e envergonha, expressando aos envolvidos as suas mais sinceras desculpas. Com isso, garantiram que suas práticas serão repensadas, para que esse acontecimento não se repita, desenvolvendo um programa que deve mudar fundamentalmente suas dinâmicas.
A vinícola Salton, em nota oficial publicada no dia 24 de fevereiro de 2023, declarou repúdio às situações de trabalho precárias e análogas à escravidão e à violação dos direitos humanos, lamentando o ocorrido. A empresa ainda reconheceu que não investigou as condições dos trabalhadores, apesar de ter obedecido a exigência legal ao contratar a empresa terceirizada. Assim, informou que o acontecimento foi um caso isolado, porém um aspecto de melhoria, e que irá agir para que isso não aconteça novamente, além de incentivar a conscientização em torno de práticas sociais e trabalhistas. Com isso, a fim de colaborar com o processo, se colocou à disposição das entidades representativas e públicas.
Em 02 de março de 2023, a vinícola Salton publicou uma carta aberta, repudiando atitudes que violem os direitos humanos, e divulgando algumas ações adotadas para aperfeiçoar o trabalho. Entre elas, estão: a forma de contratação e seleção de fornecedores será revista, um cronograma para a execução de auditoria que diga respeito às práticas trabalhistas será estruturado, além da adesão da empresa ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. A empresa ainda informou que contratações urgentes são necessárias, por vezes, na safra de uva, e que a empresa terceirizada ofertou 14 funcionários por 25 dias úteis. A Salton comunicou que o contrato de trabalho foi rapidamente suspenso após ser informada do ocorrido, e que depósitos foram feitos, em colaboração com o Ministério Público do Trabalho (MPT), para garantir a volta dos trabalhadores às suas casas e suas multas rescisórias. Por fim, a empresa se comprometeu a realizar ações e melhorias para que o acontecido não se repita, além de declarar que está colaborando com as autoridades e com o Ministério Público do Trabalho.
A vinícola Salton, por meio de uma carta aberta publicada no dia 10 de março de 2023, comunicou que um acordo com o MPT foi firmado, a fim de restaurar os danos causados. Nesse acordo, assinado pelas três vinícolas, foi estabelecido o pagamento de uma indenização de 7 milhões de reais, que foi dividido pelas empresas. Além disso, o MPT e as vinícolas elaboraram procedimentos para que o acontecimento não se repita, aumentando a fiscalização e as boas práticas da cadeia de produção. A Salton reforçou seu repúdio a atitudes que ferem os direitos humanos, e declarou que o acordo será cumprido, e que atuará além dele, adotando as medidas divulgadas em notas anteriores.
Em 29 de março de 2023, a vinícola Salton publicou uma carta aberta, na qual retomou o acontecido, alegando que a empresa contratada mostrou plena conformidade trabalhista e fiscal, porém que a vinícola desconhecia as condições dos alojamentos onde eram mantidos os trabalhadores. A empresa comunicou que a terceirizada Fênix decidiu não assinar o Termo de Ajuste de Conduta, enfrentando a Ação Civil Pública, e assim, as vinícolas envolvidas firmaram o acordo voluntariamente, no dia 09 de março de 2023. A Salton defendeu que isso reforça seu engajamento com a valorização dos direitos humanos, a responsabilidade social e a boa-fé. Ainda retomou que o delegado da Polícia Federal, Adriano Medeiros do Amaral, disse que nenhum indício de envolvimento das vinícolas foi identificado no crime de trabalho. Por fim, a Salton reforçou que seguirá o acordo e atuará também em outros pontos já citados anteriormente, e que trabalhará para que isso não aconteça novamente.
No dia 27 de fevereiro de 2023, a vinícola Garibaldi emitiu uma carta aberta, na qual declarou que recebeu, com indignação e surpresa, as denúncias das atividades análogas à escravidão por parte da empresa terceirizada. Ainda informou que o contrato de prestação de serviços foi encerrado rapidamente, e que se solidariza com os trabalhadores e suas famílias, não compactuando com o ocorrido. Por fim, a empresa se colocou à disposição das autoridades e da sociedade, além de ressaltar que todas as questões legais e normas de convívio foram atendidas durante o período de serviço, e que o tratamento aos trabalhadores terceirizados era igual ao dos funcionários diretos.
Em uma atualização de nota, no dia 06 de março de 2023, a vinícola Garibaldi informou que está revendo suas práticas internas, a fim de eliminar atitudes que ferem a dignidade e os direitos humanos. Para isso, adotou medidas como: incluir nos contratos cláusulas em respeito à Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao emprego sem discriminações, solicitar a concordância ao Código de Cultura da empresa e aperfeiçoar a divulgação das políticas de conduta.
No dia 10 de março de 2023, a vinícola Garibaldi confirmou a assinatura do Termo de Ajuste de Conduta, reforçando seu compromisso de atuar em respeito aos direitos trabalhistas e humanos. A empresa ainda repudiou o ocorrido e solidarizou-se com os envolvidos, mostrando que sua adesão ao termo revela sua responsabilidade social e uma garantia de resolução da situação e de que isso não aconteça novamente. Por fim, a vinícola retomou o anúncio de melhoria de suas práticas.
Além disso, o Centro de Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC) emitiu nota polêmica “justificando” que os motivos da escravidão contemporânea seriam o fato de as pessoas serem preguiçosas e os programas que visam reduzir a desigualdade social no país.
A crise não teve nenhum “rosto” até certo momento, apenas postagens oficiais. Somente vinte dias depois, o Presidente de uma das vinícolas, Maurício Salton, veio a público por meio de entrevista ao Valor Econômico e reconheceu que a empresa deveria ter sido mais diligente, monitorando a cadeia de prestadores de serviço e realizando auditorias internas.
No início da cobertura, a mídia brasileira mostrou-se “tímida”, denominando a situação de “trabalho irregular” por exemplo, mesmo que a pauta estivesse estampando capas, o que mostra ainda faltar uma cobertura responsável, ética e crítica por parte da mídia.
Consequências e Impactos
Trabalhadores com a saúde metal e física comprometidas pela situação a qual foram submetidos.
As vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi foram proibidas, pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos, de participarem de eventos, missões comerciais e feiras internacionais. Além disso, algumas redes de supermercados pararam de comercializar os produtos das empresas envolvidas.
Consumidores também começaram a evitar comprar produtos das três vinícolas, numa espécie de boicote, que não foi levado adiante.
Prejuízo reputacional para o setor vitivinícola gaúcho.
Aprendizados
Em caso de terceirização, criar contratos rígidos em questões de cumprimento dos direitos humanos e trabalhistas, além de investigar previamente a empresa contratada e sua confiabilidade.
Priorizar a contratação direta do trabalhador, ao invés da terceirização.
Rígida fiscalização no momento da contratação, registro e permanência dos trabalhadores, por parte do contratante e do MPT.
Garantir todos os direitos humanos e trabalhistas aos empregados.
A Federação das Cooperativas Vinícolas do Rio Grande do Sul (Fecovinho) incorporou ações de gestão de crise após o ocorrido, a fim de, por exemplo, discutir a terceirização de mão de obra e as relações de trabalho.
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, a fim de fiscalizar admissões e combater o trabalho análogo à escravidão, declarou o estabelecimento de uma força-tarefa.
A mídia precisa realizar cobertura mais aprofundada, ouvindo envolvidos, autoridades e nomeando as situações de forma responsável e crítica.