- Basicamente, quais aspectos envolvem a gestão de riscos e crises nas organizações?
A gestão de riscos é um processo de controle e prevenção enquanto a gestão de crise é uma estratégia de contenção. Embora ambas devam fazer parte de uma única estratégia de preservação da companhia, podemos dizer que são frentes muito distintas, que exigem diferentes competências dos profissionais que as executam, bem como processos e timings próprios.
A gestão de riscos é pautada pelo correto mapeamento e classificação dos riscos e de seus responsáveis dentro da companhia. Nem sempre esse trabalho é tão óbvio quanto possa parecer. Na sequência, é preciso desenhar e garantir a execução de planos de ação para prevenção e/ou mitigação dos impactos de eventuais ocorrências. Requer conhecimento da empresa e do setor, acesso a todas as áreas críticas da organização, além de contínua atualização.
Já a gestão de crise exige tomada de decisão rápida e uma ação contundente para conter a crise – tanto do ponto de vista da ocorrência geradora quanto da comunicação com os stakeholders. Por esta razão, é tão importante que a empresa já tenha uma estratégia de gestão de crise pré-aprovada, com governança, níveis de alçada, porta-vozes, canais e fluxos de informação já estabelecidos, bem como alguns posicionamentos de temas sensíveis já pré-elaborados.
- Nem tudo é uma crise! Então, o que de fato caracteriza uma crise? A partir do que/de qual momento podemos afirmar que uma crise está se instaurando ou se instaurou?
De modo geral, uma crise é todo o evento que impacta negativamente a normalidade das operações e/ou do relacionamento da empresa com seus stakeholders e que se tornou público. Pode ser identificada a partir de um risco que virou sinistro (toda crise um dia já foi um risco!), que gera abalo de confiança e interfere na integridade dos compromissos da empresa com os seus públicos.
No dia a dia das lideranças, não é incomum que crises sejam subestimadas ou intercorrências sejam supervalorizadas. No primeiro caso, os prejuízos podem ser enormes. E no segundo, os custos. É muito importante que reflexões a esse respeito sejam feitas internamente nas organizações para que cada uma, dentro do seu contexto, defina os seus próprios parâmetros.
- No seu ponto de vista, as organizações brasileiras avançaram na gestão de riscos e crises nos últimos 20 anos? Há inovações nesta área no mercado?
Vejo as organizações mais atentas e ativas na busca por prevenção, com fortalecimento das áreas de compliance, riscos corporativos e reputação. O aumento exponencial da conexão entre os indivíduos e a mudança de hábitos e comportamentos das pessoas aumentaram o risco de que qualquer intercorrência saia do controle e mobilize a opinião pública e, portanto, exigiram das empresas mais investimento e disciplina com a gestão de riscos e crise.
Entretanto, há uma longa caminhada pela frente. Falta, ainda, uma visão sistêmica sobre o impacto da falta de uma estratégia para riscos na gestão de reputação e dos impactos negativos na licença para operar da organização. Também sinto falta de mais consciência, treinamento e responsabilização entre gestores e executivos.
- Poucas comunicações de risco são publicadas. Quando algo oficial é divulgado já é uma comunicação de crise. Se há informações de interesse público que devem ser comunicadas para fins de alerta e prevenção, por exemplo, por que ainda são omitidas ou negligenciadas?
É preciso muito cuidado nesta análise. Toda empresa tem riscos inerentes (que fazem parte do setor ou do negócio) e riscos residuais (após mitigação com medidas preventivas). Você não comunica o tempo inteiro seus riscos. Pode gerar entropia na empresa e provocar inúmeros malefícios aos stakeholders.
Se o risco é de alto grau de severidade (ou seja, caso ele se torne um sinistro terá consequências graves para as pessoas atingidas) e a probabilidade de ele ocorrer é igualmente alta, então, deve ser comunicado de forma contundente, redundante, por múltiplos canais, não apenas com o intuito de disponibilizar a informação, mas garantindo que foi compreendida pelo destinatário. Mas, veja, essa já é uma situação de crise e você agirá proativamente.
Para os demais riscos, a avaliação deve ser individual, a partir de metodologias confiáveis.
- Vivemos um período de incertezas e desconfiança nas organizações, incluindo personalidades (da música, do futebol, do cinema etc.). Na sua perspectiva, qual a justificativa para isso?
Diria que as organizações estão mais expostas, assim como cada um de nós. Esta condição aumenta o risco de questionamentos por parte da opinião pública. É um fenômeno do nosso tempo, relacionado com a sociedade da informação e da hiper conexão. O fim da fronteira entre o público e o privado aumenta a possiblidade de que as organizações e figuras públicas sejam flagradas em suas incoerências e inconsistências, para não falar em comportamentos claramente errados e até criminosos em algum nível. Está cada vez mais difícil parecer o que não se é de fato. Então, a melhor proteção é abraçar a verdade, a consistência, a coerência, o walk the talk em nossos posicionamentos.
- Levando em conta o contexto digital, como a “cultura do cancelamento” vem influenciando a forma de gerir riscos, ou então, o modo de gestão de uma crise organizacional gerada por “cancelamento”?
Influencia muito, para o bem e para o mal. Digo para o bem porque tenho observado as empresas mais conscientes dos riscos e buscando se preparar com mais profissionalismo, consistência e metodologia. Porém, também é verdade que líderes e porta-vozes – ou gestores responsáveis pelos canais digitais das marcas – estão mais temerosos, evitando se expor, pensando duas, três, quatro vezes antes de postar e impondo muitos níveis de aprovação para conteúdos simples. Isso gera perda de velocidade e torna a comunicação um tanto pasteurizada, corporativa demais.
O melhor antídoto para o momento em que vivemos é ter uma cultura de reputação forte, ou seja, cultivar relacionamentos de confiança, ganha-ganha, e posicionar-se com clareza, consistência e recorrência. Sempre digo que se você não contar a sua história, não controlar a sua própria narrativa, se não der a oportunidade de as pessoas saberem quem você é, o que pensa e no que acredita, alguém fará isso por você. Não dá para considerar só o lado negativo. As novas formas de comunicação também são oportunidades de aproximação com nossos públicos, de ter espaço para contar a nossa história e das nossas organizações.
- Na mesma direção, outros fenômenos pós-digitais preocupam os gestores da área. Na sua análise, como lidar com as fakes news e a pós-verdade em tempos de viralização por meio de aplicativos de mensagens e redes sociais digitais? Como planejar neste cenário?
Eu diria que com mais e mais informação de qualidade, dirigida às pessoas certas, distribuída por múltiplos canais, de forma redundante. Quanto mais a empresa e seus líderes forem vocais, controlarem suas próprias narrativas, se tornarem acessíveis aos seus públicos, mais difícil será de uma informação falsa ganhar força. Juntaria a isso a necessidade de conquistar o chamado “benefício da dúvida”, que garantirá à empresa a oportunidade de contrapor boatos e fake news se assim precisar.
Infelizmente, a desinformação e as notícias falsas são uma realidade do nosso tempo, com graves consequências para toda a sociedade. Esse cenário, sem dúvida, é um dos maiores desafios da atualidade para líderes responsáveis pela gestão de reputação nas empresas.
- Qual situação de crise ocorrida nos últimos anos pode ser considerada emblemática, seja pela condução bem-sucedida seja pela gestão desastrosa?
Em primeiro lugar, é fato que as gestões de crise mais bem-sucedidas são aquelas que controlaram a situação antes que houvesse dano. Então, é mais frequente ficarmos sabendo daquelas que não deram tão certo. Particularmente, tento evitar uma posição de ‘engenheiro de obra pronta’, que aponta as falhas alheias olhando apenas o produto final, sem conhecer os bastidores, os trade offs, os verdadeiros motivos por trás das escolhas feitas.
Dito isso, algumas crises se tornaram tão conhecidas que falam por si mesmas. Cito como exemplo os rompimentos das barragens de Fundão, em 2015, e Brumadinho, em 2019, ambas em Minas Gerais. São dois eventos muito graves e complexos em termos de impacto ambiental e perda de vidas. Porém, avaliando a gestão das crises decorrentes, Fundão, que aconteceu antes, gerou aprendizados para Brumadinho.
A Samarco, controlada pela Vale e para BHP Billinton, era responsável pela barragem de Fundão, localizada na cidade de Mariana. Houve problemas de timing de divulgação de informações, falta de transparência em relação às responsabilidades das empresas envolvidas e na comunicação oficial. Em Brumadinho, ao contrário do episódio anterior, a Vale assumiu a condução da crise, deu prioridade ao apoio às famílias das vítimas, criou um hotsite para disponibilizar amplas informações, definiu porta-vozes, instalou um quartel general para centralizar as operações e o apoio aos familiares, entre outras medidas que resultaram em uma melhor condução da crise.
- De que formas os profissionais da Comunicação podem sensibilizar empresários e gestores públicos sobre a importância da cultura da prevenção e a necessidade da gestão de riscos?
A comunicação é uma disciplina importante da gestão de reputação, além de ser decisiva durante o manejo de uma crise. Portanto, os profissionais da área têm legitimidade para estimular internamente a organização sobre a importância de um olhar profissional e estratégico para a gestão de riscos e crise. Para isso, precisam conhecer e se manter atualizados sobre as metodologias e ferramentas que auxiliam a tomada de decisão nessas situações, além de estarem sempre atentos e bem-informados sobre o contexto macro da organização, sobre as expectativas de seus stakeholders prioritários e da opinião pública de maneira geral.
- Após a Pandemia do Novo Coronavírus e as Eleições 2022 no Brasil, a imprensa está mais bem-preparada para cobrir situações críticas?
Sim, podemos dizer que foram dois eventos extraordinários, que geraram muitos aprendizados em todas as áreas.
A imprensa profissional e séria teve um papel fundamental na covid-19, se mobilizou, apurou e divulgou informações que ajudaram as pessoas a enfrentar todo aquele momento que foi muito duro. Por meio da mídia, foram divulgadas medidas de proteção adequadas, informações baseadas em ciência, redes de apoio para o enfrentamento dos múltiplos impactos da pandemia.
Já as eleições ocorreram em um ambiente polarizado, epidemia de fake news, ameaça aos profissionais de imprensa e muitos casos de atos de vandalismo e violência física, psicológica e emocional contra os profissionais e os veículos de comunicação.
Em ambos os casos, foi preciso desenvolver expertises, preparar equipes, adaptar sistemas, criar métodos e forças-tarefa para garantir a continuidade das operações e a qualidade do trabalho.
- E as organizações não-midiáticas, têm melhores condições de gerir os impactos de uma conjuntura semelhante a imposta pela pandemia de Covid-19, caso venha ou quando vier a ocorrer algo com a mesma dimensão?
Acredito que foram grandes os aprendizados em todas as áreas para instituições públicas e privadas, empresas, autoridades e governos.
- No contexto atual e diante da atuação de empresas e governos, é possível perceber sinais que põem em risco a imagem e a reputação de alguma organização brasileira nos próximos anos?
Eu diria que sim, mas não apenas risco à imagem e reputação de organizações brasileiras, mas do mundo todo.
As transformações da sociedade de modo geral, sejam de comportamento ou decorrentes de avanços tecnológicos e eventos extraordinários, podem gerar grandes crises, de diversas naturezas. Veremos nos próximos anos, para ficar em alguns exemplos, impactos do uso da Inteligência Artificial, de questões relacionadas às mudanças climáticas, à transição geracional e assim por diante.
*Fundadora e CEO da ANK Reputation, é especialista em gestão de reputação de empresas e líderes, avaliação e gestão de risco de imagem, gestão de crise, comunicação corporativa e desenvolvimento de porta-vozes. Jornalista formada pela PUCRS, com MBA pela Fundação Dom Cabral e pós-MBA pela Kellogg School of Management (EUA), tem mais de 20 anos de experiência no mercado. Ao longo de sua carreira, liderou projetos de reposicionamento de negócios e marcas, gestão de imagem e reputação, engajamento de stakeholders e de responsabilidade social empresarial, além de ter atuado no jornalismo econômico. Anik também é membro do Conselho Editorial do Grupo RBS, da diretoria voluntária da Fundação Iberê Camargo e da diretoria voluntária da Bienal do Mercosul 2024.