Por João José Forni (Autor do livro “Gestão de Crises e Comunicação – O que Gestores e Profissionais de Comunicação precisam saber para enfrentar Crises Corporativas”)
Neste 3 de dezembro completou 40 anos o pior desastre industrial do mundo: o vazamento de gás ocorrido na noite entre 2 e 3 de dezembro de 1984 na fábrica de pesticidas Union Carbide, em Bhopal, na Índia. A planta industrial era uma unidade asiática da multinacional americana Union Carbide.
Em 2023, a Netflix lançou uma série “The Railway Men (Heróis dos Trilhos)”, que conta uma parte da história, dando apenas uma dimensão do pior desastre da indústria química no mundo. Para se ter uma ideia da letalidade do vazamento de um gás venenoso, por pressão no encanamento da fábrica, apenas na noite em que ocorreu provocou a morte de 3.500 pessoas na cidade de Bhopal e arredores. Calcula-se que nos dias seguintes à tragédia o número de mortos tenha chegado a 8 mil. Nenhum acidente na indústria global foi tão letal e contaminou tanta gente, mesmo considerando tragédias industriais provocadas por incêndios, explosões, inundações ou terremotos.
Segundo uma ampla reportagem do jornal britânico The Guardian, de 14/06/23, “A nuvem de gás venenoso que vazou de uma fábrica química enferrujada em 1984 ainda assola a vida de dezenas de milhares de pessoas na cidade indiana, incluindo muitas que não nasceram naquela época. Mas a Union Carbide nunca respondeu pela contaminação devastadora. O fotógrafo Judah Passow passou um ano registrando a vida de algumas vítimas do desastre”. (veja fotos na reportagem).
Case clássico de crise
Há uma vasta literatura sobre o desastre de Bhopal. Todos os anos, no aniversário da tragédia, a mídia internacional repercute o acidente e as terríveis consequências na saúde das pessoas. Por incrível que pareça, até hoje as indenizações que deveriam ser pagas aos sobreviventes ou parentes dos mortos não foram cumpridas. Em 1989, chegou-se a um um controverso acordo de US$ 470 milhões. As vítimas se opuseram, sentindo-se excluídas das negociações e recebendo indenização inadequada, que totalizou aproximadamente US$ 568 por vítima.
Como foi o acidente
Em apenas uma noite, de 2 para 3 de dezembro de 1984, a fábrica de pesticidas na Índia lançou ao ar 40 toneladas do gás isocianato de metila, causando um efeito letal na população da cidade, com sequelas graves e efeitos nocivos que se prolongaram ao longo dos últimos anos.
Em questão de poucas horas, uma nuvem letal se dispersou sobre a densamente povoada cidade de Bhopal, com 900 mil habitantes, matando ao longo dos dias um número incalculável de pessoas. As cenas da contaminação dos habitantes da cidade, maioria de baixa renda, se assemelham as de um filme de terror.
Y.P. Gokhale, diretor da fábrica, a americana Union Carbide, disse na época que o gás tinha escapado quando uma válvula no tanque quebrou, sob pressão. Meio milhão de pessoas foram expostas ao gás. As doenças crônicas geradas pelo contato com a substância deixaram um assombroso legado para gerações futuras. Milhares morreram e muitos milhares ficaram mutilados e com problemas crônicos de saúde, durante toda a vida.
Em 2012, a Suprema Corte reconheceu que resíduos tóxicos contaminaram as águas subterrâneas de 22 comunidades localizadas ao redor da fábrica e ordenou que o governo do MP fornecesse água potável encanada para as pessoas nas proximidades.
Um acidente inesquecível
O enredo dessa tragédia, que pode ser considerada uma das maiores crises da indústria química na história, tem sido contada neste site, desde quando completou 25 anos, e cinco anos depois, nos 30 anos da tragédia, porque se trata de um dos ‘cases’ emblemáticos de crise, pelo potencial tóxico e o número de mortes. A tragédia de Bhopal é o símbolo de uma época em que era mais importante produzir, gerar riqueza, faturar, não importava o que poderia acontecer às pessoas, principalmente num país onde a legislação para esse tipo de desastre era e continua sendo muito frágil. Bhopal legou várias lições, principalmente para quem nega que a poluição e os gases tóxicos lançados no ar no período pós-industrial sejam os responsáveis pelas mudanças climáticas que provocam crises humanitárias em todos os Continentes.
“A multidão em fuga arrancou as mãos das crianças das mãos de seus pais. As famílias foram literalmente dilaceradas”.
A The Harvard T.H. Chan School of Public Health* produziu denso material sobre esse acidente, constatando que, 40 anos após o vazamento de gás tóxico em Bhopal, o sofrimento continua. Esse parece ser consenso da tragédia de Bhopal: milhares de vítimas, tanto fatais, quanto doentes graves; e a sensação de impunidade e de abandono.
Sobreviventes da tragédia foram à Harvard T.H. Chan School of Public Health, em setembro deste ano, como parte de uma excursão de 42 dias pelos EUA para compartilhar suas histórias e obter apoio para atividades relacionadas ao 40º aniversário. O evento, patrocinado pelo Departamento de Saúde Ambiental, dos EUA, contou com a presença de Rachna Dhingra da Campanha Internacional pela Justiça em Bhopal, que atuou como intérprete, e duas mulheres que eram crianças na época do acidente, Farhat Jahan e Bati Bai Rajak.
“Embora o desastre tenha ocorrido décadas atrás, os sobreviventes e seus filhos ainda estão lidando com as consequências, incluindo problemas de saúde, ambientais e econômicos, disse Rachna Dhingra. Segundo a ativista, “O desastre continua matando e incapacitando uma nova geração. E os perpetradores responsáveis por isso continuam a desfrutar de vidas felizes e ricas. As corporações continuam a fazer negócios normalmente.”
Ela acrescentou: “As pessoas em Bhopal ainda estão buscando justiça e responsabilização das corporações que são responsáveis por um genocídio em sua cidade há 40 anos.”
“Mais de 50.000 Bhopalis não conseguem trabalhar por causa dos ferimentos. Muitos não têm família alguma”. (The Guardian)
Os efeitos do horrendo legado de Bhopal, como o chamou o site australiano de notícias theage.com.au, não cessaram. Muitas pessoas que vivem em favelas perto da antiga fábrica levaram seus casos à Corte municipal, sob alegação de que o solo e o lençol freático contaminado ainda causam doenças à população e defeitos genéticos em recém-nascidos. Centenas de crianças nasceram com deformidades e problemas de saúde mental. Mas a Justiça local se nega a entrar nesse contencioso, que nunca teve um desfecho pelo jogo de empurra da índia e dos Estados Unidos.
Não se sabe quantos morreram
“Quando o vazamento ocorreu, uma nuvem de gás tóxico encheu as ruas e entrou nas casas das pessoas. Muitas pessoas correram para fora de suas casas, para tentar fugir do gás, mas quanto mais respiravam, mais o produto químico enchia seus pulmões, danificando seus olhos, pulmões, cérebro e outros sistemas corporais. Nos primeiros três dias após o vazamento, calculam-se 8 mil pessoas mortas. Com o tempo, estima-se que mais de 22 mil pessoas teriam morrido devido à exposição ao MIC e mais de meio milhão ficaram mutiladas para o resto da vida. Os sobreviventes enfrentaram problemas crônicos de saúde, três gerações de defeitos congênitos, consequências econômicas e contaminação contínua das águas subterrâneas devido ao descarte inseguro de resíduos venenosos na fábrica de pesticidas.
Quando o acidente completou 30 anos, em 2014, já se estimava o número de mortos em consequência do acidente, entre 25 a 30 mil. Artigo nesta página dizia. “Não há consenso sobre os efeitos nem os números atuais da tragédia. O governo reconhece oficialmente 5.295 mortes, mas grupos ativistas calculam entre 25 a 30 mil mortes ao longo desses 30 anos. Mais de 100 mil pessoas, que foram expostas ao gás tóxico, continuam a sofrer hoje com doenças como câncer, cegueira, problemas respiratórios, imunológicos e distúrbios neurológicos, algumas com deficiências permanentes.
Os efeitos da crise já passaram para a segunda geração de habitantes da cidade. Eles costumam chamar a noite de 2 para 3 de dezembro de 1984, de a “noite que não teve fim”.
Lições para a responsabilização empresarial
Denso artigo do Institute for Human Rights and Business (IHRB)** dos EUA, aborda as questões judiciais e de obstruções à responsabilização corporativa relativas à tragédia.
“Quatro décadas depois, as lições de Bhopal e incidentes semelhantes em outros países ao redor do mundo não foram totalmente aprendidas e aplicadas. Bhopal é um lembrete doloroso da impunidade corporativa contínua.”
Segundo o IHRB, “Após a tragédia, o governo da Índia buscou justiça por meio de ações judiciais. Os tribunais dos EUA decidiram que o caso deveria ser julgado na Índia e buscaram garantias da Union Carbide, sediada nos EUA, de que cooperaria com o julgamento, apesar das preocupações sobre a capacidade do judiciário local de lidar com isso. Funcionários da empresa nunca compareceram a um tribunal indiano para enfrentar acusações criminais. O governo indiano assumiu o processo de litígio, negando aos sobreviventes o direito a usarem instâncias locais.
Obstruções à responsabilização corporativa
Segundo o IHRB, “A fábrica de Bhopal continua sendo um local tóxico hoje. Esforços para responsabilizar a Dow Chemical, que adquiriu a Union Carbide em 1994, foram obstruídos, com a empresa alegando que a Union Carbide é uma entidade separada e sua responsabilidade não existe mais.
“O desastre de Bhopal e suas consequências apontam para lacunas significativas em andamento na responsabilização corporativa. Apesar da evolução dos padrões internacionais e das estruturas legais, as corporações multinacionais continuam a explorar brechas legais para evitar responsabilidades. A falta de mecanismos de execução legal deixou as vítimas de Bhopal e de muitos outros desastres em todo o mundo sem justiça.”
“O que tais exemplos revelam é a total incapacidade de muitos sistemas legais de exigir conformidade, impor responsabilidade, processar perpetradores e fornecer reparação. As leis existem para lidar com o abuso corporativo, mas houve uma falha abismal por parte dos governos e do judiciário em garantir a justiça. Dificuldades na aplicação do princípio do véu corporativo, inaplicabilidade de leis extraterritorialmente e regras como forum non conveniens *** continuam a frustrar a busca por justiça. Sem um julgamento adequado, a descoberta de evidências se torna difícil, e o ônus recai sobre as vítimas para fornecer evidências, e a corporação tem pouco incentivo para provar que está em conformidade com os regulamentos.
Recomendações para evitar futuros Bhopals
Ainda no entendimento do IHRB, “Promotores não familiarizados com as leis de diferentes países e com os idiomas das vítimas e sobreviventes geralmente relutam em assumir casos complexos porque são difíceis, e os detentores de direitos geralmente não são cidadãos do país envolvido. Também digno de nota, as leis geralmente permitem que as empresas criem padrões complexos de retenção, dificultando a rastreabilidade da propriedade e o estabelecimento de responsabilidade. A consequência é a ausência de reparação. Isso não pode continuar.”
“Em nível nacional, nosso relatório enfatiza que os governos que hospedam indústrias perigosas ou buscam investimentos dessas empresas precisam melhorar suas capacidades regulatórias. Às vezes, os governos não têm recursos e, às vezes, reduzem os padrões ao relaxar as regulamentações para atrair indústrias perigosas que enfrentam padrões mais rigorosos no mundo desenvolvido.
No final, sempre haverá desculpas pelas quais não é conveniente para as empresas tomarem tais ações, especialmente quando não é exigido legalmente. Mas uma tragédia tão devastadora quanto Bhopal deve servir a um propósito maior. Tal evento deve tocar a consciência de todos os reguladores, promotores e executivos corporativos, para que a frase muito citada, “nunca mais”, usada em outros contextos, finalmente se torne realidade.
Permacrisis
Por qualquer viés que se analise essa crise não há como vislumbrar uma solução. É o que se convencionou chamar de “permacrisis”, termo cunhado pelos cientistas sociais, referindo-se a crises políticas e econômicas. Um longo período de grande dificuldade, confusão ou sofrimento que parece não ter fim. A crise de Bhopal já entrou no rol daquelas tragédias insolúveis, por ter ocorrido num país onde a Justiça tem muita dificuldade de encarar contenciosos complicados como esse, ainda mais por envolver réus e empresa com sede em outro país. Mais ainda pelo silêncio das empresas envolvidas. Resultado: as milhares de pessoas atingidas pela catástrofe sofreram e continuam sofrendo as consequências de um erro industrial que deixou uma herança que o mundo não pode esquecer. Para que não se repita.
* A Harvard T.H. Chan School of Public Health é uma comunidade global comprometida em construir um mundo com saúde, dignidade e justiça para todos os seres humanos.
** O Institute for Human Rights and Business (IHRB) é o principal think tank global que trabalha para garantir que a atividade corporativa respeite os direitos dos trabalhadores e comunidades.
*** Forum non conveniens (latim para “fórum inconveniente” ou “fórum inapropriado”) foi explicado pelos tribunais indianos como um poder discricionário dos tribunais de não considerar uma questão com base no fato de que existe um tribunal mais apropriado de jurisdição competente, que estaria em melhor posição para decidir uma questão jurídica.
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