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Laboratório de crises expõe os deslizes da saúde no Rio



Por João José Forni (Autor do livro “Gestão de Crises e Comunicação – O que Gestores e Profissionais de Comunicação precisam saber para enfrentar Crises Corporativas”)

 

A denúncia contra o laboratório PCS Lab Saleme, do Rio de Janeiro, por ter liberado órgãos a serem transplantados, com o vírus do HIV, é apenas parte da série de irregularidades que permeia aquela empresa e a própria saúde no Rio de Janeiro, há bastante tempo.

Os descalabros descobertos nesse laboratório se agravam numa série de irregularidades: licitação suspeita, em processo eletrônico; ligações políticas e familiares com ex-secretário da saúde do Rio; gestão interna omissa e conivente com malfeitos; decisões administrativas que visavam mais o lucro, do que seguir os protocolos que deveriam nortear um laboratório de diagnose; falta de transparência com os procedimentos administrativos. Para culminar, fica evidente a falta de fiscalização e controle por parte da Fundação Saúde e pela Secretaria de Saúde do Rio. Ou seja, naquele laboratório as irregularidades são tantas que os órgãos de fiscalização também deveriam ser investigados pela omissão.

O escândalo do laboratório PCS Saleme não é uma surpresa. Trata-se de uma crise anunciada, tanto pelos critérios de escolha quanto pela gestão conivente com as irregularidades. Desde 2010, quando a empregada doméstica Sandra precisava de um exame de sangue pré-cirúrgico ficou exposta a fragilidade dos controles desse laboratório. Um mês depois de ir a um laboratório, na Baixada Fluminense, ela se surpreendeu com o resultado, ao ser constatado contaminação pelo vírus do HIV.

Durante três meses, ela conviveu com a dúvida, sempre assegurando que não era portadora do vírus. Esse foi apenas um dos erros graves cometidos pelo laboratório, segundo apuração publicada no jornal Folha de São Paulo, de 17/10, pesquisando processos por danos morais cometidos por erros em laboratórios dos sócios de Walter Vieira, ginecologista preso dia 14, no Rio. E da biomédica Sandra Vieira, que também trabalhava no mesmo laboratório onde a paciente Sandra recebeu o falso positivo para HIV.

 

Arranhão na imagem

Para qualquer lado que se olhe nesse caso, desde o primeiro momento em que a Band News noticiou o gravíssimo erro do laboratório PCS Saleme no laudo dos exames em órgãos a serem transplantados, lá, tudo passou a ser encarado sob suspeição. A começar pela licitação eletrônica, vencida pela empresa, que assinou três contratos com a Fundação Saúde, no valor de R$ 17,5 milhões, num processo que chama a atenção pela falta de transparência e a rapidez na contratação. Por acaso, a assinatura do contrato aconteceu duas semanas após o secretário da saúde do Rio de Janeiro candidatar-se a deputado. (atual líder do PT, no Congresso). Nada teria a se destacar, nesse caso, não fosse o fato de o sobrinho do ex-secretário da saúde ser sócio do laboratório. Por si só, um detalhe que deveria, na época, ter sido decisivo para que o processo licitatório fosse público e não num leilão eletrônico. Ou anulado.

Segundo o jornal O Globo, na Fundação Saúde, órgão do governo do Rio responsável pela gestão das unidades de saúde do estado, valores de contratos sem licitação são três vezes maiores que os de pregões. Até outubro, 292 contratos emergenciais foram assinados, com valores somados que ultrapassam R$ 911 milhões. “O que era para ser exceção virou regra: desde 2021, contratações consideradas emergenciais — feitas pela instituição com dispensa de licitação e que deveriam, pela lei, ser realizadas somente em caráter excepcional — superam as realizadas com concorrências públicas.

A crise de gestão e operacional do laboratório chama a atenção pela magnitude dos ilícitos. Quando se descobrem as falhas e a falta de controle na contratação e fiscalização de um único laboratório, pode-se também inferir a possibilidade de que o descontrole, a inépsia, a falta de fiscalização e o desrespeito às leis de licitação sejam uma prática corriqueira da área de saúde do estado.

O laboratório PCS Saleme está nas manchetes por estar envolvido num dos grandes escândalos da saúde, no Brasil. Erro grave que pode até contaminar a imagem do exemplar programa de transplantes do País, considerado um dos melhores do mundo. O Brasil construiu um programa de transplantes com base na ética médica e no respeito às leis. Esse deslize grave se contrapõe totalmente a tudo que se construiu no Brasil na política de transplantes. Para se chegar à cirurgia, há um processo bastante complexo, construído ao longo os anos. Após a captação, os órgãos retirados de doadores percorrem uma verdadeira maratona, com vários intervenientes, para chegar a tempo nos hospitais. Como poderia se duvidar do diagnóstico de um laboratório de análises clínicas, credenciado pelo Hemocentro do estado?

 

O passado me condena

O laboratório agora sob escrutínio tem um passado, nem tão longo, extremamente comprometedor. Em 2019, uma mãe recebeu o resultado de exame de sangue do filho com resultado errado. O PCS Saleme cravou “O positivo”. Na caderneta de vacinação do menino, porém, o correto era “A positivo”. O laboratório foi condenado a pagar uma indenização de R$ 20 mil, por danos morais, ao paciente. O laboratório se esquivou de aceitar o acordo. Os argumentos escorregadios da empresa são aqueles recorrentes, numa crise grave: “não houve negligência, imprudência ou imperícia por parte do laboratório réu”. É bom lembrar que as pessoas esquecem, mas a Internet não. Em 2022, uma gestante acusou o laboratório de também errar um teste de sorologia. Para o PCS Saleme, o sangue dela era “O negativo”. A mãe da gestante, porém, informou que era “O positivo”.

Segundo o jornal Folha de S. Paulo, “até a descoberta do erro, a mulher já havia sido submetida a uma vacina de imunoglobulina para prevenção de doenças de alto risco para o feto, causada pela (pseudo) incompatibilidade sanguínea.” Ela pediu R$ 40 mil de indenização, o mínimo, digamos, para outro erro grave. O processo segue na (velocidade) da Justiça brasileira: devagar, quase parando. E o laboratório continuou na sua prática de mirar o lucro, em lugar da ética e da responsabilidade que deveria ter com a vida dos outros.

 

“Foi só dinheiro o que eles viram”

O erro cometido, no Rio, pelo laboratório PCS Saleme é inédito na história dos transplantes no Brasil. E uma falha irreparável para os pacientes que foram vítimas desse crime. “É como se o chão se abrisse e você… Sabe? (…) Porque é a minha vida e daqui pra frente a minha vida mudou. A minha família tá revoltada, porque a gente entra lá com a maior confiança de que vai dar tudo certo”, afirmou uma paciente que não quis se identificar, ao programa Fantástico da Rede Globo.

O mais grave é que “a falha, que permitiu a infecção, aconteceu dentro de uma das unidades de um laboratório contratado pela secretaria Estadual de Saúde, a Patologia Clínica Doutor Saleme (PCS-Saleme).” “Eles não estão lidando com a nossa vida. Foi só dinheiro que eles viram, né? E foi muito, não foi pouco. Foi muito dinheiro. Não tem nenhuma justificativa. Eu quero punição”, disse a vítima.

 

Omissão e desrespeito aos pacientes

Embora o fato tenha sido revelado no último dia 11 de outubro, “as autoridades só descobriram a infecção por HIV num paciente transplantado, quando este, que havia recebido um órgão em janeiro, procurou atendimento em um hospital, em 10 de setembro. Durante os exames, foi constatada a presença do vírus. Antes do transplante, um teste havia confirmado que essa pessoa não tinha HIV”, segundo o programa Fantástico, da Rede Globo. O ministério da Saúde resolveu manter sigilo sobre o caso, porque queria fazer a apuração antes que alguém ligado ao laboratório se desfizesse das provas. O que não ocorreu.

Na sucessão de erros cometidos por uma cadeia de gestores, que vai do ministério da Saúde, passando pela secretaria de Saúde do Rio, houve uma grave omissão: “A paciente, que falou com exclusividade ao programa Fantástico, relatou que recebeu a notícia no último dia 3 de outubro e foi encaminhada a um posto de saúde, onde a infecção foi confirmada. No entanto, ela afirmou que não recebeu orientações sobre tratamento ou medicamentos e que sua próxima consulta estava marcada apenas para 29 de outubro.”

O que isso significa? Que houve uma omissão consentida de fato gravíssimo, não apenas com os pacientes enganados, mas também com a opinião pública, principalmente do Rio de Janeiro. Ou seja, a secretaria de Saúde do Rio tinha tomado conhecimento do erro há mais de um mês, o laboratório certamente também sabia, até pelo envolvimento direto de pessoas da administração nessa fraude, como agora se evidencia, mas não notificaram os maiores interessados, as vítimas do erro, para que pudessem iniciar o tratamento imediatamente. Isso só foi ocorrer em função do vazamento do fato, noticiado pela Band News no início do mês. Apenas essa omissão já evidencia a forma irresponsável com que o laboratório e a Fundação Saúde agiram com os pacientes.

 

Uma cadeia de irregularidades

Em meio à descoberta do escândalo, há 15 dias equipes da Vigilância Sanitária estadual e da Anvisa foram à filial do PCS Lab Saleme, que funcionava no Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro (Iecac), no bairro Humaitá, Zona Sul do Rio de Janeiro. “Nessa unidade ocorreram os erros. Na inspeção, foram encontradas 39 irregularidades, e o local foi fechado. No entanto, documentos obtidos pelo jornal O Globo mostram uma falha da fiscalização do próprio governo estadual, já que dias antes o laboratório “gabaritou” a avaliação interna feita pelo hospital.’’ O mais grave de tudo isso é que os fiscais foram ao Instituto de Cardiologia na tarde de 4 de outubro, um dia depois do escândalo vir a público, para verificar as condições em que o laboratório funcionava no 1º andar. Era parte da investigação que apurava como os erros haviam sido cometidos.

Diz jornal O Globo: “Naquela tarde, ninguém se apresentou como responsável técnico pelo local, que também não tinha as licenças para funcionar no hospital”. E prossegue: “De acordo com o relatório e inspeção, foram encontradas amostras com tubos “embalados no papel da solicitação médica, sem vedação adequada ou sem tampa de vedação, permitindo o extravasamento do sangue coletado”. O documento ainda afirma que havia, no laboratório, amostras sem identificação e outras armazenadas em caixas de papelão. Os fiscais ainda relataram que encontraram ambientes sujos, com presença de insetos mortos e formigas em todas as bancadas”. Um horror, para dizer o mínimo.

Na semana passada, a Polícia Civil desmembrou a investigação do caso. Um novo inquérito foi aberto para investigar como o PCS Saleme foi contratado. O inquérito será conduzido pelo Departamento Geral de Combate à corrupção, do Crime Organizado e à Lavagem de dinheiro. O Ministério Público do Rio também tem investigações distintas. Há um cipoal de irregularidades a serem investigadas. Nessa investigação, é preciso tocar no cerne do problema. Quem patrocinou da escolha e deu cobertura às mazelas desse laboratório, porque um mínimo de fiscalização iria descobrir que lá tudo estava errado? Todos são cúmplices dos crimes cometidos contra os pacientes transplantados e aqueles que nunca souberam de diagnósticos errados. Os presos já confessaram que “havia uma ordem para reduzir o controle de qualidade para reduzir os gastos da empresa”. “Essa economia deveria abranger todas as áreas da empresa, inclusive o controle de qualidade dos reagentes usados para a realização do material fornecido pelos clientes e também por doadores de órgão”, afirmou Jacqueline Iris Bacellar de Assis, funcionária do laboratório.

Em 21 de outubro, o governador do Rio de Janeiro demitiu toda a diretoria da Fundação Saúde, empresa pública do Rio de Janeiro, gestora do contrato com o laboratório PCS Saleme. A fundação é responsável pela gestão da saúde pública no estado do Rio de Janeiro e está vinculada à Secretaria Estadual de Saúde.

 

Usina de crises

Em resumo, poderíamos relacionar um rol de irregularidades que marcam a gestão desse laboratório:

-Licitação por pregão eletrônico só teve uma empresa interessada, exatamente a PCS Saleme. Importante registrar que o laboratório ganhou a licitação para exames em órgãos transplantados com preço 0,01% menor que concorrente;

-O laboratório e os órgãos vinculados, mesmo após conhecerem a gravidade dos erros, são coniventes na omissão total sobre o fato, prejudicando as vítimas; mais de um mês para o escândalo vir a público;

-Vários interlocutores estão falando sobre o assunto, como porta-vozes; isso favorece a desinformação, porque nunca se sabe o que é informação oficial;

-O visível estado de degradação do laboratório, que certamente não passou por vistorias no período. Havia uma gestão omissa e conivente com os ilícitos no laboratório;

-Suspeita de emissão de laudos fraudulentos. Especula-se que o resultado de ’positivo’ para órgãos encaminhados para implantes decorre da possibilidade absurda, digamos, de que, na falta de kits de testes, e de comprovação de compra, o material encaminhado para diagnóstico não teria sequer sido submetido a qualquer teste: o que caracteriza, naturalmente, um crime grave;

-Vistoria da polícia não encontrou testes e nem notas fiscais de compra dos kits de testes;

-Denúncias de envolvimento nas fraudes de vários dirigentes e empregados, o que caracteriza formação de quadrilha, visando apenas o lucro e não a saúde pública; 

-Apesar de o ministério da Saúde e a secretaria da Saúde do Rio, por meio da Fundação Saúde, saberem do erro, desde 15 de setembro, os pacientes que foram vítimas desse absurdo não foram contactados, até a divulgação da notícia, para iniciarem o tratamento;

-Funcionária que assinou laudo negativo para HIV diz que sua função era corrigir erros de digitação nos laudos; o registro utilizado por ela, para assinar, era de uma ex-bióloga de Pernambuco, que não exerce mais a função, tendo se desligado do Conselho. E não sabia do uso fraudulento. A artesã mora em Recife e se declarou surpresa.

-A Vigilância Sanitária encontrou várias irregularidades na inspeção feita no laboratório, tão logo o escândalo se tornou público. Além de amostras expostas de maneira irregular e com risco de contaminação, existiam amostras sem identificação e armazenadas em caixas de papelão, bem como instalações sujas, com restos de insetos;

-O laboratório teria reduzido a frequência com que realizava os exames para diagnóstico do vírus, o que levou aos falsos negativos que autorizaram a doação dos órgãos, segundo apurou a secretaria de Polícia Civil do estado, além de depoimentos de empregados do laboratório;

-Técnica em análises clínicas Jaqueline Iris Bacellar, acusada de assinar um dos exames de sangue com falso negativo para HIV, afirmou que o setor de TI do laboratório, controlado por Matheus Vieira, tinha acesso a todos os logins e senhas, possibilitando a adulteração de resultados e assinaturas.

 

Diante da gravidade do que aconteceu no laboratório, a Justiça mandou prender os envolvidos, até agora, nas fraudes: Walter Vieira, sócio do laboratório; Matheus Vieira, sócio do PCS Lab Saleme; Ivanilson Fernandes dos Santos, técnico do laboratório; Cleber de Oliveira dos Santos, técnico do laboratório; Jacqueline Iris Bacellar de Assis, funcionária da empresa e Adriana Vargas dos Anjos, coordenadora técnica do Laboratório.

Ivanilson, segundo as investigações, seria um dos responsáveis técnicos pelos laudos. Ele, que foi preso usando uma roupa de enfermagem, prestou depoimento. Já Cleber de Oliveira Santos, outro alvo de mandado de prisão, estaria atuando no protocolo dos exames junto com Ivanilson. O filho de Walter, Matheus Vieira, que é sócio do laboratório, foi o último a se apresentar na delegacia, e foi preso.

Atualmente, além das diligências das polícias Civil do Rio e Federal, estão em andamento a análise dos documentos e materiais apreendidos. Segundo as investigações iniciais, houve uma falha operacional no controle de qualidade aplicado nos testes, com o objetivo de diminuir custos. A Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro classificou o ocorrido como “inadmissível” e ressaltou que se trata de uma situação sem precedentes.

 

MP denuncia sócios e funcionários do PCS Saleme

Na 3º feira, dia 22, o MPRJ denunciou os sócios e funcionários do PCS Saleme. Seis pessoas (que já estão presas) foram denunciadas por associação criminosa, lesão corporal e falsidade ideológica. “Os denunciados tinham plena ciência de que pacientes que recebem órgãos transplantados recebem imunossupressores para evitar a sua rejeição, e que a aquisição de qualquer doença em um organismo já fragilizado, principalmente HIV, seria devastadora”, citou a promotora Elisa Ramos Pittaro Neves.

 

Conclusão

Do ponto de vista da gestão de crises, estamos diante de um dos maiores escândalos da saúde no País. Não podemos esquecer o que aconteceu com uma epidemia de dengue, principalmente no Rio de Janeiro, em 2005; e os descalabros, no governo Bolsonaro, com a política de saúde negacionista, para gerenciar a epidemia Covid-19, em 2020, que levou o país a ter 711 mil mortes, o segundo país mais letal do mundo, só atrás dos EUA, com 1.220 mil casos fatais. Além de outras crises graves em hospitais, como os constantes incêndios, como no Hospital Badim, em 2019 e no Hospital Bonsucesso, em 2020, resultando em 25 mortes de pacientes.

Além de clínicas clandestinas, que redundam em pacientes mortos por imperícia, erro ou exploração econômica; ou mutirões com viés político, como acontecido no Pará, onde cinco pacientes tiveram a perda total de um olho, o escândalo do laboratório PCS Saleme é mais uma das crises graves que afeta a saúde pública no Brasil. O que impressiona em todo esse cipoal de erros e práticas criminosas, com ações e táticas diversionistas para burlar a lei, sem compromisso com a saúde das pessoas, é como os contratantes se omitiram em fiscalizar uma verdadeira quadrilha que, ao fim e ao cabo, estava instalada naquele laboratório. Por trás da incompetência, do aparelhamento, da falta de ética e da fraude, para maximizar o lucro, existiam vidas, com uma última esperança de se recuperarem de doenças graves.

O que falta para esse tipo de crime ser considerado hediondo?

 

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