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Fumaceira das queimadas sufocou o jornalismo?



Por Luiz Artur Ferraretto (Professor do Curso de Jornalismo e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFRGS)

 

“Vocês que fazem parte dessa massa. Que passa nos projetos do futuro.

É duro tanto ter que caminhar. E dar muito mais do que receber.” Admirável Gado Novo (Zé Ramalho)

 

Seria leviano afirmar que a imprensa cobriu – e está cobrindo – mal a tragédia climática representada pelas queimadas. Seria mais leviano ainda afirmar que cobriu – e está cobrindo – bem. Para sair desse impasse aparente, deveríamos buscar uma metodologia de pesquisa científica, o que exige tempo e, dado o tamanho do problema, uma abordagem no mínimo multidisciplinar a partir do esforço de estudiosos de várias regiões. Outra possibilidade talvez fosse se focar em alguns poucos veículos do centro do país, o que acabaria por excluir a realidade do chamado Brasil profundo.

Observo, no entanto, que o problema está aí, na nossa frente. E repete situações já vividas, em âmbito nacional, durante os semestres iniciais da pandemia de covid-19 e, no caso do estado em que vivo, das enchentes de maio e de junho deste ano. Arrisco, buscando problematizar e formar algum tipo de hipótese, que se repetem também situações como as relacionadas às tragédias de Mariana (5 de novembro de 2015) e de Brumadinho (25 de janeiro de 2019), em Minas Gerais. Portanto, os indícios existentes apontam que a abordagem jornalística das queimadas exacerba uma série de problemas pré-existentes dos veículos brasileiros de comunicação, sejam privados, sejam públicos.

Sejamos francos! Qual o planejamento para enfrentamento de crises de parte dos governos Temer (de 31 de agosto de 2016 até 1º de janeiro de 2019), Bolsonaro (de 1º de janeiro de 2019 até 1º de janeiro de 2023) e Lula (de 1º de janeiro de 2023 até a atualidade), as gestões federais durante os eventos que citei acima? Posso repetir a pergunta em relação a administrações estaduais e municipais. A resposta será pouco ou nenhum planejamento. Quem não planeja o enfrentamento de crises iria se preocupar com a comunicação a partir da crise? Tal questionamento chega a soar ingênuo. Afinal, a comunicação deveria fazer parte do planejamento para enfrentar grandes acidentes provocados pela irresponsabilidade de empresas e governantes, doenças com teor pandêmico ou crises climáticas, essas últimas obviamente causadas pela destruição continuada do ambiente por parte do ser humano.

Nesse processo, parece-me que – em especial nas tragédias relacionadas à natureza – há dose considerável de negacionismo interesseiro e de fatalismo conformista. O efeito disso torna costumeiro o impacto da ação destrutiva do ser humano sobre o ambiente. É quase aceito como algo cotidiano, normal, aceitável até.

Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde, entre outras atividades, ministro a disciplina Fundamentos de Rádio e Televisão, acostumei-me à estranheza das minhas turmas frente a uma comentário em uma reconstituição do programa Show de Notícias, atração da então TV Gaúcha, de Porto Alegre, nos anos 1960, e versão do que fazia a TV Excelsior, de São Paulo, empresa controladora, na época, da emissora aqui do Rio Grande do Sul. Não são só a estética e os hábitos de outrora que motivam essa atitude. A câmera enquadra o gesto comum naquela década de dois dedos com um cigarro aceso, enquanto a voz grave e precisa do jornalista e radialista Euclides Prado dá vida ao personagem A Mão:

– Algumas empresas de nossa capital esquecem, propositadamente, de investir no futuro. E vão jogando lixo industrial de todos os tipos diretamente no nosso rio. A continuar dessa forma, dentro de quinze anos teremos poluídas todas as praias do Guaíba e os locais de veraneio como Ipanema, Vila Elza e Florida serão riscados da memória dos gaúchos definitivamente.

De fato, mais do que o recurso hoje esdrúxulo de recorrer a personagens em um telejornal, chama a atenção a informação de que, no passado, o Guaíba – conceitualmente considerado, na atualidade, um lago – teve balneabilidade. Aliás, é a mesma reação que tive, ao assistir a reconstituição do Show de Notícias produzida para um dos programas da série documental Memória RBS, em 1988, quando a TV Gaúcha já adotara a denominação RBS TV. Parece que as águas do Guaíba sempre estiveram poluídas e foram impróprias para banho ou consumo.

 

“Lá fora faz um tempo confortável. A vigilância cuida do normal.

Os automóveis ouvem a notícia. Os homens a publicam no jornal.”

 

Reitero que, como as queimadas ocorrem em vários pontos do país e atingem um território considerável, há dificuldade em analisar, com precisão e com profundidade, a cobertura da mídia. Para se ter uma ideia da extensão do problema ecológico, no dia 12 de setembro, conforme noticiou a Agência Brasil, o Monitor do Fogo Mapbiomas indicava que, de janeiro até o mês anterior, 11,89 milhões de hectares haviam sido consumidos pelas chamas, sendo 5,65 milhões de hectares devastados pelo fogo apenas em agosto, o equivalente a 49% da área destruída ao longo do período. Setenta por cento da área atingida eram de vegetação nativa.

Um dia depois da divulgação desses dados, a repórter Eliana Marques apresentava, no Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, um balanço do ocorrido no mês de setembro. Em 12 dias, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Brasil registrava 49.266 focos de incêndio, o maior número desse período desde 2007. As chamas atingiam, de início, os estados do Amazonas, Pará, Rondônia e Mato Grosso. Logo, no dia 2, a fumaça chegava até São Paulo, fazendo com que 79 parques fossem fechados pelo risco de incêndio. Em 3 de setembro, era a vez de Belo Horizonte, em Minas Gerais, enquanto na capital do Acre, Rio Branco, escolas eram fechadas devido às péssimas condições do ar, que também obrigava ao uso de máscaras por seus moradores. Em Brasília, o fogo atingia a Floresta Nacional. No dia 4, chegava às nascentes dos rios que abastecem a capital federal. Peixes agonizavam na ilha do Bananal, no Tocantins. O incêndio já estava sem controle no Xingu, em área indígena no estado do Mato Grosso. Em 5 de setembro, o fogo subterrâneo brotava de folhas e galhos compactados no solo ao longo de anos, no Pantanal, em Mato Grosso do Sul. No dia 9 de setembro, o porto de Santos, no litoral paulista, ficava fechado devido à fumaça misturada com o nevoeiro. Peixes, em grande quantidade, apareciam mortos na Represa Billings, em São Paulo. A baixa umidade do ar gerava um alerta para 3.460 cidades por parte do Instituto Nacional de Meteorologia. Em várias partes do país, o céu aparecia alaranjado pelo efeito da fumaça. Na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, a terra arrasada e sem vegetação – destacava o Jornal Nacional – lembrava a paisagem morta de algum planeta impróprio para a vida humana.

Em paralelo, no dia 11, o G1 registrava que, no sul do Rio Grande do Sul, a centenas de quilômetros dos principais focos de queimadas, ocorria o fenômeno da chuva preta: a fuligem, as cinzas e outros poluentes haviam se misturado à água que se precipitava das nuvens. O ar tornava-se pesado, fétido, havendo recomendação para que, até, se reduzissem atividades ao ar livre.

Esses dados atestam que a imprensa em geral pode ter cumprido o seu papel de fazer o registro em si das queimadas. No entanto, efetivamente, é à descrição mera e simples que se deve restringir o papel do jornalismo frente a uma crise ecológica de tais proporções?

 

“E ter que demonstrar sua coragem. À margem do que possa parecer.

E ver que toda essa engrenagem. Já sente a ferrugem lhe comer.”

 

Tenho a convicção de que exercer o jornalismo é, principalmente, problematizar os fatos. Isso se faz com base na ética e na técnica da profissão. Portanto, restringir um acontecimento à sua descrição não dá conta da responsabilidade social exigida de um jornalista. Baseado na ideia de que o acesso à informação é algo fundamental, o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, documento elaborado pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), deixa claro: os profissionais não podem admitir que nenhum tipo de interesse impeça cidadãs e cidadãos de usufruirem desse direito. Creio ser importante destacar dois parágrafos do artigo 12, aquele que se refere aos deveres do jornalista. Obrigatoriamente, o profissional precisa “ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, o maior número de pessoas e instituições envolvidas em uma cobertura jornalística” e “buscar provas que fundamentem as informações de interesse público”.

Do ponto de vista da técnica, sabendo que as queimadas são, evidentemente, notícia, o exercício pleno da profissão depende da presença de jornalistas no palco de ação dos fatos e da realização de entrevistas. Ocorre que a presença no local dos acontecimentos restringe-se aos veículos do local onde ocorrem as queimadas, às grandes redes de televisão e a poucos jornais do centro do país, os que deslocaram enviados especiais.

De outra parte, quais fontes deveriam ser ouvidas? Vamos lá. Trabalhemos com uma categorização óbvia, mas que pode ter sido esquecida nas redações e nas salas de aula dos cursos de Jornalismo. Um profissional pode ouvir: autoridades, aquelas pessoas jornalisticamente relevantes ligadas aos poderes Executivo, Judiciário e Legislativo; especialistas, que têm atuação como pesquisadores com respaldo da comunidade científica; protagonistas, quem, de modo direto, vivencia o tema em foco; representantes, aqueles e aquelas que falam em nome de setores sociais envolvidos com o fato; e testemunhas, quem presencia algo relevante do ponto de vista noticioso.

Assim, por óbvio, ética e técnica se entrecruzam. Afinal, há que dar vez e voz a quem de direito, apresentando, não raro, mais de uma perspectiva a respeito do ocorrido.

Se há problema no distanciamento em relação ao palco de ação dos fatos – caso de muitos veículos que não contam com repórteres in loco e/ou que reduzem a cobertura a opiniões, por vezes muito próximas das do senso comum –, as fontes ouvidas não podem se restringir a autoridades. Do que consegui acompanhar – destaco que sem o rigor exigido pela ciência –, parece-me que os ecologistas estão extintos ou em vias de extinção. Isso é uma ironia. Na base do problema, representantes do agronegócio são pouco questionados, o que não oferece nem a cobrança socialmente necessária junto a infratores nem permite o esclarecimento justo e honesto de quem tem conduta correta no exercício de sua atividade.

A ética e a técnica também podem estar sendo deixadas de lado por assessorias de imprensa no âmbito das autoridades, dos especialistas e dos representantes. Nos três poderes, há quem exerça a função como concursado e como cargo em comissão. Nesse último, abundam militantes, raramente com conhecimento e experiência no jornalismo, quase sempre subordinados à ação política e a interesses partidários. A necessária atitude de ver o que a pessoa assessorada faz pelo viés da notícia também parece ter escasseado em instituições científicas e entidades do movimento social. Ressalve-se que o ensino de assessoria ainda encontra restrições em muitas universidades nas quais a idealização do jornalismo esbarra na realidade de um mercado no qual a atividade é cada vez mais majoritária.

 

“O povo foge da ignorância. Apesar de viver tão perto dela. E sonham com melhores tempos idos

 

É óbvio que a atividade jornalística também reflete a passividade de uma sociedade que pouco crê nas instituições e que se apresenta dividida entre quem grita de um lado e quem berra do outro. A velocidade da vida parece atropelar o raciocínio por toda parte. Nas redações, há muito o que fazer e pouca gente para fazê-lo. Se, em outros tempos, horas extras feitas não eram pagas, agora são proibidas. O tempo da realização das coberturas não dá conta do tempo dos fatos. Uma tarefa atropela a próxima. Há que cobrir para o veículo em si e para suas redes sociais. Em texto, imagem, áudio, vídeo… No que for necessário.

Seria leviano, portanto, afirmar que todos – profissionais e veículos – erraram e estão errando. No entanto, também é impossível ignorar que ocorreram e seguem ocorrendo erros, desinteresse e até conivência. Como a manada tocada pelos peões, jornalistas e público vão sendo tocados adiante. Para onde? Ninguém sabe bem. Vem uma crise. Passa. Vem outra. E seguimos, relatando escombros e sobras. Pandemia. Enchente. Queimadas. Qual será a próxima?

 

“E correm através da madrugada. A única velhice que chegou. Demoram-se na beira da estrada.

E passam a contar o que sobrou! É o Brasil! Eh, oh, oh, vida de gado. Povo marcado, eh! Povo feliz!”

 

 

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