Por Ana Flavia Bello (CEO da Cosafe Latam, Mestra em Administração Estratégica pela PUC/PR)
Quando criança, lembro-me de assistir às notícias na televisão sobre uma grande inundação em Santa Catarina. Houve uma mobilização nacional considerável para arrecadar donativos destinados às pessoas afetadas. Recordo-me de que minha escola organizou uma campanha para a doação de cobertores e outros itens e esse fato ficou marcado em minha memória. Simultaneamente, o Nordeste enfrentava uma seca devastadora. As notícias provenientes dessa região mostravam pessoas sem acesso à água e com enormes dificuldades para alimentar suas famílias.
Em minha reflexão infantil, assustada com os dois cenários de crise, percebi um paradoxo: “Como pode, em um lugar, a falta de água causar a morte por sede, enquanto, em outro, dentro do mesmo país, há excesso de água e as pessoas ainda assim não têm água potável para beber?”; Esse foi meu primeiro contato com as tragédias climáticas no Brasil e seus impactos.
Hoje, sabemos que em 1983 havia em torno de 10 milhões de flagelados da seca no Nordeste e que as chuvas da segunda semana de julho de 1983 deixaram mais de 200 mil desabrigados nos três estados do Sul, sendo que na cidade de Blumenau, uma das mais impactadas, as inundações duraram 31 dias.
Anos mais tarde, fui a Blumenau para a festa do Oktoberfest e na ocasião fiquei sabendo que o evento tinha sido criado em 1984, por empresários, em conjunto com a prefeitura e a comunidade alemã local, como forma de apoiar na recuperação da economia local que havia sido muito afetada pela enchente no ano anterior.
Em abril de 2023, uma tragédia de outra natureza devastou emocionalmente os moradores de Blumenau. Desta vez foi um ataque por agressor ativo em uma creche da cidade, que lamentavelmente culminou com a morte de quatro pequenas crianças.
Em função do meu trabalho em Gerenciamento de Crises, recebi um convite da Defesa Civil do Município para ir a Blumenau a fim de compartilhar minha experiência em torno do tema no gabinete do Prefeito. Nesta ocasião tive a oportunidade de conhecer a sala de crise do município e um pouco do trabalho que a Defesa Civil fazia desde sua criação em 1973.
ATUAÇÃO DA DEFESA CIVIL EM BLUMENAU PARA EVENTOS CLIMÁTICOS
Diferentemente do que eu imaginava, a maior inundação da história da cidade não havia sido em 1983, mas em 2008. O desastre sem precedentes para Blumenau deixou lições que mostraram a necessidade de adotar diferentes estratégias para mitigar o impacto de eventos climáticos no município.
Naquela época a estrutura da Defesa Civil era limitada, não havia previsão meteorológica satisfatória, não existia um plano de contingência para movimentos de massa e a população não tinha qualquer preparo para responder a eventos daquela natureza.
Nestes 50 anos de história, segundo dados da Defesa Civil, as equipes atuaram em 102 eventos de enchentes e muito foi aprendido e aprimorado, tornando Blumenau referência nacional e internacional no que se refere à gestão de riscos e desastres.
Todo este histórico está retratado também em fotos, expostas em um longo corredor no edifício sede da Defesa Civil do Município. Perguntei ao comandante da Defesa Civil se eles envolviam as escolas em seus projetos e ouvi sobre o excelente trabalho realizado com crianças, incluindo um relato emocionante decorrente desse esforço.
O comandante explicou que existe um programa preventivo e educacional chamado Defesa Civil na Escola, no qual estudantes são nomeados Agentes Mirins da Defesa Civil. Ele compartilhou um episódio recente em que, durante um evento de fortes chuvas, uma criança que havia participado do treinamento como Agente Mirim percebeu a intensidade da chuva, identificou que sua casa estava em uma zona vulnerável e persuadiu sua família a evacuar a residência. Pouco depois, a residência foi levada por uma enxurrada, mas todos sobreviveram.
Esse relato mostra claramente o impacto do trabalho preventivo da Defesa Civil junto à população local e quantas vidas podem ser salvas com processos bem estruturados de resposta a emergências e gestão de crises.
GESTÃO DE CRISES PARA DESASTRES CLIMÁTICOS
A gestão de crises em caso de desastres climáticos envolve a mitigação de riscos e a preparação para resposta, a resposta imediata para contenção da crise e a fase de recuperação.
A mitigação visa reduzir a vulnerabilidade futura por meio de políticas ambientais, educação e conscientização, planejamento urbano sustentável e inovação tecnológica.
A preparação envolve o desenvolvimento de planos de emergência, treinamentos regulares e investimento em infraestrutura resiliente.
Na resposta imediata, é essencial mobilizar recursos, manter comunicação eficaz, implementar operações de resgate e coordenar esforços entre agências, a fim de conter os danos.
A fase de recuperação inclui a avaliação de danos, reabilitação de infraestrutura, suporte psicológico e social, além de programas de reintegração econômica. Importante mencionar que esta fase pode levar anos até a recuperação plena e em muitos casos a recuperação exigirá mudanças significativas na localidade atingida, podendo até levar à necessidade de realocação de cidades inteiras.
Para uma evolução contínua e para gerar aprendizados para crises que virão, ainda é necessário após a crise a reflexão e análise das Lições Aprendidas, listando pontos fortes e oportunidades de melhoria e propondo planos de ação concretos.
Não há dúvidas de que o maior desafio de gerenciar desastres climáticos está na coordenação entre agentes institucionais, na comunicação eficaz de risco e de crise junto à população afetada e na resiliência comunitária.
Neste contexto, de acordo com o histórico da Defesa Civil do município de Blumenau, seus maiores desafios estão justamente associados à efetivação de uma política integrada de gestão de riscos de desastres, através da cooperação dos diversos setores da sociedade, em prol do fortalecimento da resiliência do município.
PLANOS PARA RESILIÊNCIA CLIMÁTICA NO BRASIL
A resiliência climática no Brasil ainda enfrenta desafios consideráveis. Apesar de alguns avanços, há uma necessidade significativa de melhorias na infraestrutura, governança, educação e implementação de políticas para enfrentar os desafios das mudanças climáticas de forma eficaz.
Tragicamente, vivemos em 2024 no Rio Grande do Sul o maior desastre climático da história de nosso país e percebemos o quão frágeis estamos em todas as esferas acima mencionadas.
Penso que o brasileiro tem dificuldade em aceitar que existem riscos, subdimensiona a necessidade de antecipação e planejamento para crises e superdimensiona sua capacidade de resposta.
Os planos de adaptação às mudanças climáticas ajudam a reduzir os impactos de desastres junto à população e podem salvar vidas, além de reduzir perdas materiais. O país possui políticas e planos nacionais de adaptação às mudanças climáticas, mas a adesão é baixa e a implementação é precária. Em maio de 2024, 15 das 27 capitais brasileiras ainda não contavam um plano climático estruturado. Embora eu não tenha acesso ao cenário dos demais municípios, é possível imaginar que milhares de municípios brasileiros não tenham plano algum relacionado às mudanças climáticas.
Mesmo as cidades que possuem planos, nem sempre são capazes de implementá-los, pela sua complexidade e necessidade de envolver diversas áreas dentro das prefeituras e setores da sociedade.
Somam-se ainda dificuldades de recursos financeiros, conflitos de interesses, descontinuidade nas políticas pelas mudanças de administração, entre outros fatores.
CONCLUSÃO
Com as mudanças climáticas aumentando a frequência e a intensidade dos desastres, é urgente que governos, organizações e população colaborem para desenvolver e implementar práticas robustas de gestão de crises e resposta a emergências desta natureza.
Gerenciar crises em casos de desastres climáticos é complexo e requer a coordenação de múltiplos atores e a implementação de estratégias abrangentes em todas as fases de um desastre.
A preparação adequada, a resposta eficaz, a recuperação planejada e a mitigação contínua são fundamentais para reduzir os impactos desses eventos e fortalecer a resiliência das comunidades.
Neste contexto, o Município de Blumenau, diante da dor de tantas tragédias climáticas que impactaram fortemente a sua população nos últimos 50 anos, aprendeu com suas vulnerabilidades, evoluiu em suas práticas e, hoje, embora ainda tenha seus desafios de melhorias contínuas, é referência em resiliência a desastres climáticos, podendo compartilhar boas práticas com outras cidades brasileiras, que ainda têm muito a evoluir neste tema.
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