Por Beatriz Schmidt (FURG), Fernanda Serpeloni (Fiocruz), Ana Cecilia Andrade de Moraes Weintraub (USP), Flavio Kapczinski (UFRGS) e Debora da Silva Noal (OPAS/OMS).
Entre abril e maio de 2024, chuvas intensas atingiram o Rio Grande do Sul, afetando diretamente 2,4 milhões de pessoas (em torno de 22% da população do estado). Nos primeiros dias após o início do evento extremo, mais de meio milhão de pessoas foram desalojadas de suas residências e a população em abrigos provisórios superou 80 mil. Até 10 de julho, 182 mortes haviam sido confirmadas pela Defesa Civil e 29 pessoas seguiam desaparecidas.
Afora a perda de vidas humanas, os desastres se associam a múltiplas outras perdas, concretas e simbólicas: moradia, bens materiais, objetos pessoais e de valor emocional, trabalho, propriedades rurais, estradas, espaços comunitários, dispositivos institucionais, rotinas, projetos de vida e sonhos. Diante desses impactos, aprofundam-se vulnerabilidades, com possíveis implicações à saúde mental e ao bem-estar individual e coletivo. Isso ocorre tanto pelo estressor primário (ex.: inundações), quanto pelos estressores secundários (relacionados à capacidade de resposta por sistemas públicos e sociedade civil).
Frente ao contexto de insegurança e múltiplas perdas associado a desastres, são esperadas algumas reações emocionais e comportamentais, tais como tristeza, raiva, angústia, medo, insônia, alterações gastrintestinais e no apetite. Grande parte da população afetada pode apresentar essas manifestações de sofrimento psicológico agudo, as quais comumente são normativas (i.e., não psicopatológicas) e têm remissão gradativa nos primeiros meses após a exposição ao evento extremo. Paradoxalmente, embora essas reações emocionais e comportamentais sejam esperadas, alguns estudos têm revelado um aumento no número de prescrições de psicofármacos no primeiro mês subsequente a desastres.
Não obstante, o Comitê Permanente Interagências (Inter-Agency Standing Committee [IASC]), que é um fórum criado pela Assembleia Geral das Nações Unidas para garantir a coordenação, o desenvolvimento de políticas e a tomada de decisões relativas a emergências humanitárias globalmente, contraindica o uso de psicofármacos como estratégia de suporte a pessoas em sofrimento psicológico agudo após a exposição a eventos extremos. Em contrapartida, sugere que as ações de saúde mental e atenção psicossocial (SMAPS) sejam estruturadas com base em um sistema de apoio com níveis complementares, que devem ser implementados simultaneamente, de modo a atender às necessidades de diferentes grupos populacionais, na perspectiva da intersetorialidade e da integralidade na assistência à saúde.
Em linhas gerais, esses níveis podem ser sumarizados da seguinte forma: (a) serviços básicos e de segurança (água, alimentação, abrigo e cuidados básicos em saúde), ofertados a todas as pessoas afetadas, para proteger a dignidade e o bem-estar; (b) apoio às famílias e às comunidades, voltado a um número relativamente menor de pessoas, que precisem de suporte no processo de busca e reunificação familiar devido à evacuação de territórios e deslocamentos, atividades para fortalecimento de laços comunitários, comunicação de massa sobre recursos disponíveis e estratégias de enfrentamento ao evento extremo; (c) apoios focados não especializados, para um número ainda menor de pessoas, que necessitem de intervenção profissional em nível individual, familiar ou grupal (ex.: Atenção Primária à Saúde [APS]); (d) serviços especializados, necessários a uma pequena parcela da população afetada, cujo grau de sofrimento psicológico é intolerável e dificulta significativamente o funcionamento cotidiano (ex.: suporte psicológico ou psiquiátrico a pessoas com condições graves de saúde mental, que excedem a capacidade dos serviços de APS).
Para o planejamento adequado das ações de SMAPS, nos diferentes níveis, parte-se das particularidades loco-regionais e do contexto sociocultural dos territórios atingidos por desastres, com base no princípio de que cada pessoa ou comunidade pode ser afetada de modo diferente, o que requer diferentes tipos de apoio. É importante salientar que o Brasil possui, além do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil, do Sistema Único de Assistência Social e de diversas outras políticas públicas nas áreas de habitação e direitos humanos, o Sistema Único de Saúde (SUS) como principal organizador de ações em saúde no país. Portanto, as equipes multiprofissionais, ainda que compostas por profissionais ou organizações externas, especialistas ou não em saúde mental, devem atuar de forma articulada com o SUS e incluir profissionais familiarizados com as especificidades do contexto sociocultural que, preferencialmente, contem com a confiança da comunidade. Assim, tende-se a favorecer a interlocução com as populações afetadas e a participação social no processo de cuidado.
Nessa perspectiva, são enfatizadas estratégias coletivas de cuidado em SMAPS, em detrimento de estratégias com foco no adoecimento, ou apenas em nível individual. Isso não significa, porém, que pessoas com condições de saúde mental, especialmente as mais vulnerabilizadas, serão negligenciadas quanto à necessidade de apoios focados ou serviços especializados, visto que os diferentes níveis de cuidado devem ser implementados de forma simultânea e complementar. Logo, com base na integralidade, é possível proteger o bem-estar psicossocial, prevenir agravos e tratar, sempre que necessário, repercussões negativas à saúde mental em curto, médio e longo prazo.
Destaca-se ainda a importância da continuidade das ações de SMAPS longitudinalmente, e não apenas na fase de resposta ao evento extremo, em que costumam ser observadas as manifestações de sofrimento psicológico agudo entre a população afetada. Nesse sentido, reações emocionais e comportamentais são esperadas também diante de estressores secundários, tais como problemas financeiros, disputas envolvendo indenizações, demora na efetivação de processos de reconstrução, dificuldades para elaborar o luto diante das múltiplas perdas, lembranças negativas que acompanham as chuvas, preocupações com inundações futuras, necessidade de deixar a moradia ou a comunidade com a qual se tem vínculo afetivo, memória compartilhada e senso de pertencimento. Em suma, os estressores secundários têm o potencial de afetar a saúde mental, impactando desproporcionalmente as populações socioeconomicamente mais vulnerabilizadas, que vivem em locais mais precários.
As ações de SMAPS são parte essencial da gestão integral de riscos e desastres, política pública vigente no Brasil e que se desdobra em um trabalho contínuo, envolvendo não apenas a fase de resposta, mas também as fases de recuperação, reconstrução, prevenção e mitigação de novos incidentes. O componente do cuidado em SMAPS, para ser mais efetivo, deve estar integrado a todas essas fases.
Sobre as autoras:
Beatriz Schmidt é Professora de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Fernanda Serpeloni é Pesquisadora no Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Ana Cecilia Andrade de Moraes Weintraub é Doutoranda na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Flavio Kapczinski é Professor de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Coordenador da Rede Nacional de Saúde Mental (ReNaSaM).
Debora da Silva Noal é Consultora em Desastres para os Ministérios da Saúde do Brasil e do Chile e para a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) / Organização Mundial da Saúde (OMS).
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