Por Jones Machado (Professor de Relações Públicas da UFSM, Pesquisador do EstratO e Coordenador-geral do OBCC)
Nenhuma nota de esclarecimento, carta aberta ou nota de repúdio será suficiente o bastante para responder a uma crise que gera impactos profundos na sociedade. Faz parte do processo de gestão de crises, mas se não vier acompanhada de humildade, respeito, empatia e ações pragmáticas, então que nem se publique. Estamos acostumados com notas desse tipo emitidas por empresas, pelo Poder Público e por organizações de toda natureza. No entanto, muitas vezes elas apenas refletem omissão, arrogância, leniência e/ou ineficiência, visto que não são seguidas de ações concretas – pelo contrário – os eventos críticos geradores das notas se repetem sistematicamente, vide os casos de trabalhadores em situação análoga à escravidão no Brasil.
O episódio dos trabalhadores da empresa de prestação de serviços terceirizados Fênix, contratada por três vinícolas gaúchas – Aurora, Garibaldi e Salton – é apenas uma amostra. Segundo o Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Sílvio Almeida, a situação análoga à escravidão constatada em Bento Gonçalves (RS), em 22 de fevereiro de 2023, não se trata de um caso isolado. Dados da “escravidão moderna” repassados pelo Ministério Público do Trabalho ao UOL mostram que, somente no Rio Grande do Sul, de 2013 a 2022, foram 339 pessoas resgatadas. Só até março de 2023, já são 208. No Brasil, nos últimos 10 anos, foram mais de 15mil resgates. Em tese, seria impensável tal cenário no século e no ano em que estamos, mas – infelizmente – outras práticas condenáveis em vários aspectos também ainda não foram erradicadas, a saber, o tráfico de pessoas e o trabalho infantil.
Em face disso, cabe lembrar que as empresas tomadoras de serviços podem ser responsabilizadas de forma solidária, mesmo que decidam culpar a terceirizada Fênix. Se uma empresa adota políticas de compliance e os princípios de ESG, deveria fiscalizar a cadeia toda de fornecedores. A tão propalada responsabilidade social precisa ser executada. De forma prática, o que as vinícolas mudarão para evitar que situações como esta não se repitam? O que será feito internamente? Os gestores serão substituídos? Haverá auditorias internas e externas? Essas e outras respostas precisam constar nas notas, mas também pautar as providências das empresas envolvidas. Aliás, tais perguntas poderiam ter sido respondidas por porta-vozes, porém, esta crise não teve rostos, ninguém ousou se expor e se manifestar fora dos sites e perfis em redes sociais. Tal atitude demonstraria humildade, respeito e sensibilidade com as vítimas e com a sociedade. Além do mais, a demora em reconhecer o erro (ou pelo menos a gravidade da situação), em se posicionar e em se solidarizar honestamente, ou ainda, ficar restrito a respostas de cunho legal ou econômico, não contribui para uma gestão de crise eficiente.
As causas e justificativas levantadas são várias. Algumas compreensíveis, como a defasagem no número de auditores fiscais que verificam as denúncias de trabalho escravo recebidas. Outras nem tanto, a saber, a baixa escolaridade, a pobreza, a situação econômica do país, e a pandemia de Covid-19. Essas apenas são usadas por empresas mal-intencionadas para que promessas enganosas de emprego atraiam facilmente trabalhadores em condição de pobreza ou fome. Ainda, há dois outros pretextos (inaceitáveis) para que a mão de obra tivesse as características de escravidão. Segundo a entidade que representa as vinícolas gaúchas citadas, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC-BG): “Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade.” Em outras palavras, para a CIC-BG, os motivos da escravidão contemporânea seriam as pessoas preguiçosas e os programas que visam reduzir a desigualdade social no país. Nessa “defesa”, explicita-se a luta de classes presente na distinção reclamada pelo empregador, afinal, se não existir a “Senzala”, a “Casa Grande” não produz!
Esta crise é, também, uma crise de imagem e de reputação, uma vez que as notas foram emitidas ao longo de uma semana, alimentando uma extensiva repercussão midiática em escala nacional e internacional. Há que se ressaltar que, no início da cobertura, a mídia brasileira mostrou-se “tímida”, denominando a situação de “trabalho irregular” por exemplo, mesmo que a pauta estivesse estampando capas. Para a Jornalista Sandra Bitencourt, “A primeira função do jornalismo para cumprir com a tarefa de esclarecimento é nomear devidamente os fatos”. E crava ao afirmar que: “Uma manchete nunca é uma distração, é sempre uma escolha minuciosa”. Com o passar dos dias, as palavras “escravidão” e “escravos” foram sendo devidamente ditas e, também, a crise ganhou fôlego nos noticiários. Para citar dois exemplos: o discurso xenofóbico e preconceituoso do vereador de Caxias do Sul, Sandro Fantinel, em que disse: “não contratem mais aquela gente lá de cima” e “a única cultura que os baianos têm é viver na praia tocando tambor”; e novos casos de fiscalização que desencadearam resgates e ganharam visibilidade midiática, como foi o da RPC Serviços de Plantio, empresa que fornece matéria-prima para a Colombo, dona da marca de açúcar Caravelas. Enfim, a gravidade da crise no Rio Grande do Sul trouxe de volta o tema para debate, gerando boicotes de consumidores e de revendedores, além de as vinícolas terem sido suspensas pela Apex Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) de participarem de feiras e missões internacionais até o fim das investigações.
No entanto, o contexto que se apresentou, mesmo para profissionais de relações públicas, suplantou a configuração de uma crise de imagem e reputação. Isso porque, antes de ser uma crise de imagem ou de reputação, é uma crise humanitária. Para além da perda de credibilidade das vinícolas e de outros agentes envolvidos, as inúmeras questões que ferem a dignidade humana relatadas pelos trabalhadores resgatados (violência, xenofobia, racismo, jornada exaustiva, trabalho forçado) e a quantidade de pessoas naquelas situações (207) são muito maiores e sérias. Uma fonte do Jornalista Moisés Mendes na cidade de Bento Gonçalves chegou a afirmar que “Todo mundo sabia disso há mais de 10 anos, e uma hora iria estourar”, o que nos revela a complexidade e a profundidade de um problema sistemático que o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (2005) ainda não conseguiu eliminar.
Fato é que nos últimos anos no Brasil defendeu-se, inclusive por membros de Poderes da República, que direitos humanos não são importantes ou necessários. Num país em que negros, pobres, nordestinos e povos indígenas (a exemplo dos Yanomamis) são relegados, discriminados e expostos a situações análogas à escravidão ou a de um genocídio, a civilidade deu lugar a barbárie. E quando a barbárie é institucionalizada, a crise é permanente, é para todos e de todos: do Poder Público, do Jornalismo, da Democracia, da Cidadania, da sociedade em geral. Em resumo, uma crise humanitária que escancara a crise de humanidade em que estamos imersos.
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Referências e fontes:
Atualização de nota aos parceiros, consumidores da marca e sociedade brasileira. Disponível em: https://www.garibaldiblog.com.br/post/carta-aberta-comunidade-amigos-clientes-parceiros
Bento Gonçalves, jornalismo e a escravidão moderna. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/bento-goncalves-jornalismo-e-a-escravidao-moderna/
Carta aberta à sociedade brasileira. Disponível em: https://www.salton.com.br/artigo/carta-aberta-a-sociedade-brasileira
Carta aberta da Vinícola Aurora à sociedade brasileira. Disponível em: http://blog.vinicolaaurora.com.br/2023/03/02/carta-aberta-da-vinicola-aurora-a-sociedade-brasileira/
Como tentar salvar a imagem das vinícolas de Bento. Disponível em: https://www.blogdomoisesmendes.com.br/como-tentar-salvar-a-imagem-das-vinicolas-de-bento/?fbclid=IwAR273KZ1LA-ns-z8X74RT7YcRyBTHaQb2g3G5HwUrmFqGoRGO5IcRzlCUf8
MPT: nº de denúncias de trabalho análogo ao de escravo é o maior em 11 anos. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/03/07/brasil-denuncias-de-trabalho-analogo-ao-escravo-mais-que-dobram-em-11-anos.htm
Nota de posicionamento. Disponível em: http://www.cicbg.com.br/noticia/nota-de-posicionamento/1699