Por Jones Machado (Professor de Relações Públicas da UFSM, Pesquisador do EstratO e Coordenador-geral do OBCC)
Ano após ano, o Brasil se depara com o fenômeno natural das chuvas de verão. Em grande volume, elas acarretam deslizamentos de terra, alagamentos, destruição e mortes. Em 2022, foram ao menos quatro casos significativos, a exemplo do município de Petrópolis (RJ) e de cidades dos Estados de Minas Gerais, Pernambuco e Santa Catarina. Em 2023 – que recém se inicia – o litoral norte do estado de São Paulo já sofre e contabiliza 60 mortes com a temporada de chuvas que ocorre todo ano. Isso posto, ainda podemos considerar esses fatos como sendo desastres “naturais”? Para (tentar) responder a esta questão, é preciso olharmos para três aspectos: clima, riscos e gestão pública.
Diversas organizações nacionais e internacionais alertam para os riscos dos desmatamentos, da exploração ilegal de florestas, da poluição de rios e oceanos, do uso de recursos não-renováveis, entre outros. Tais avisos são de conhecimento público e seus impactos são sentidos direta ou indiretamente pela população mundial. E tendo em vista que tudo está interconectado no planeta, as consequências de fenômenos climáticos cada vez mais intensos decorrentes em grande parte da ação humana vão além de alagamentos, destruição e mortes. Os efeitos são mais amplos e estão relacionados ao surgimento de novas doenças e do aumento de pessoas em situação de vulnerabilidade social por exemplo.
Fato é que há muito tempo estão em curso eventos críticos que vêm configurando uma grande crise climática e ambiental. Carlos Nobre, climatologista e meteorologista referência mundial em mudanças climáticas, alerta para um risco já conhecido e que vem impactando de forma cada vez mais intensa os fenômenos climáticos e propiciando desastres ambientais extremos: o aquecimento global. Por que então – ainda – estamos descuidando das causas e dos riscos se já há comprovação dos seus efeitos? Diante disso, os eventos que ocorrem podem ser considerados desastres “naturais” ou tragédias anunciadas em que faltaram prevenção e gestão adequadas?
Estamos falando da gestão de riscos, processo que pode evitar situações críticas mais graves. Gerir riscos diz respeito a escutar e analisar o entorno, mapear questões emergentes e ler cenários atuais e possíveis, relaciona-se com identificar causas e potenciais alternativas para prevenção, ou então, em casos extremos, preparar-se para uma crise mitigando os impactos negativos. Em face de cenários previsíveis, como é o caso das chuvas em áreas de risco conhecidas no litoral de São Paulo, a comunicação tem papel preponderante, tendo em vista que além de ser uma situação comum, o Ministério Público (MP-SP), a Defesa Civil e o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) já haviam alertado para o perigo daquela área e sobre a previsão de precipitações elevadas naquele período. Sequer foram usados sistema de sirenes ou alto-falantes, um dos mais simples dispositivos para informar a população vulnerável nesses casos. Rádio e SMS em tempo hábil complementariam a comunicação de risco. Enfim, o processo de gestão de riscos (identificação, análise, avaliação, prevenção, monitoramento, comunicação e mitigação) foi negligenciado.
Indo além desse cenário, é conhecido o fato de que a elevação da temperatura no planeta acarreta reconfigurações dos fenômenos climáticos ameaçando a sobrevivência humana. O Acordo de Paris (2015) é um marco para a redução da emissão de gases causadores do efeito estufa, no entanto, nem todos os países que assinaram ratificaram o acordo. Soma-se o fato de os Estados Unidos, segundo maior emissor de gases desse tipo, sair do acordo durante a gestão Trump e retornar na gestão Biden. Em resumo, pouco é feito, os esforços são limitados ou decisões dessa importância dependem da (im)prudência de alguns governantes. Segundo o estudo Global Risks Report 2023, do World Economic Forum, dentre os 10 principais riscos elencados para os próximos dois anos, cinco deles referem-se ao clima e ao meio ambiente. Já nos próximos 10 anos, são seis riscos relacionados a essa área tão vital.
Os riscos globais estão mapeados e divulgados e, embora vivamos numa sociedade de risco (BECK, 1986), em que o mundo está fora de controle e a única certeza que temos são as incertezas, ainda assim devemos esperar racionalidade, conhecimento do entorno e responsabilidade por parte de políticos, governantes, legisladores e gestores de grandes companhias. Eles têm papel solidário e compartilhado de responsabilidade, uma vez que detêm de poder econômico, financeiro, simbólico, político e decisório podendo gerar consequências globais decorrentes de suas atuações ou omissões.
Nessa direção, principalmente a gestão pública tem lugar de destaque, pois o Estado tem a função de garantir infraestrutura necessária para habitação digna em local seguro, com saneamento básico, água potável, luz elétrica e escoamento da água da chuva. No entanto, o que se vê é descaso com a população mais pobre, explicitando a desigualdade social: os recursos e as políticas públicas que assegurariam direitos iguais a todos não chegam a todos. Nem no caso de cidades do litoral de São Paulo, que recebem royalties do petróleo como compensação financeira visto que mais pessoas moram na região em decorrência da atividade petrolífera, também não recebem os investimentos necessários para evitar ou reduzir tragédias, como por exemplo, para adequar áreas ou realocar moradores das áreas de risco.
Em face do exposto, explicita-se que a cultura da gestão de riscos, da prevenção e do cuidado ainda não é compartilhada nem vivenciada pela maioria dos gestores. Vivemos diariamente expostos a riscos com potencial devastador na mesma proporção em que o Estado, as organizações privadas e o Poder Público não possuem dispositivos eficientes para o enfrentamento dessas questões. É urgente a criação ou o aperfeiçoamento de políticas públicas voltadas à moradia digna e segura, investimento em infraestrutura urbana, cumprimento das leis, fiscalização e profissionalização dos setores que atuam na gestão de crise, a fim de que garantam a proteção das pessoas, dos ecossistemas, do patrimônio público e privado, e para que casos como Mariana (MG/2015) e Brumadinho (MG/2019) não se repitam. Não podemos, em nenhum sentido, naturalizar os desastres quando na verdade suas causas poderiam ser atacadas e suas consequências mitigadas com gestão e comunicação.
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