Quando as chuvas torrenciais transbordaram a Sanga da Restinga em 29 de abril de 2024, o município de Restinga Seca, no Rio Grande do Sul, sofreu alagamentos em casas, estabelecimentos comerciais e sociais. Localizada na região da Quarta Colônia e próxima a Santa Maria, a cidade foi uma das primeiras a ser atingida pelas enchentes de maio de 2024. Um dos locais alagados foi a Rádio Integração, em que Norton Ávila trabalha como jornalista.
Além dos problemas imediatos, como a perda de bens materiais, mantimentos, abrigo e acesso a algumas localidades, a comunicação foi outro elemento afetado. A queda de energia elétrica prejudicou o sinal transmitido pelas torres de internet e, consequentemente, a possibilidade das pessoas se informarem pela televisão e mesmo por redes sociais. Neste momento, as ondas sonoras se tornaram essenciais. “O rádio era praticamente o único meio de comunicação aqui, ainda mais para o pessoal do interior”, relata Norton. Na ausência de luz, o rádio a pilha virou aliado. Na época, a UFSM integrou uma campanha liderada pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), que arrecadou pilhas e rádios para distribuição na região.

Em voga no debate sobre o cenário das mudanças climáticas, a desinformação também ganhou contornos reais durante o acontecimento. Norton conta que surgiram informações desencontradas que se potencializaram pelo compartilhamento em redes sociais e, com isso, acabaram por desinformar. “Qualquer coisa, pequena que fosse, devido ao tamanho da tragédia virava uma grande informação que muitas vezes não se confirmava, que não era verdade”, relembra.
Desinformação climática
Neste cenário, o fenômeno é nomeado como desinformação climática. Para a professora e pesquisadora Laura Storch, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFSM, a noção do conceito é complexa porque parte de um debate mais amplo, da desinformação e letramento comunicacional e digital, mas também compreende questões emergenciais sobre o clima. “Envolve tanto o conhecimento científico sobre as mudanças climáticas e sobre as transformações que a vida humana no planeta tem gerado para os sistemas ecológicos, mas também um conjunto de informações e desinformações vinculadas ao modo como as mudanças climáticas afetam as populações”, destaca Laura.
As desinformações podem ser classificadas em dois níveis, de acordo com Laura. O primeiro é o que valoriza o absurdo, cujas postagens envolvem teorias da conspiração, como as que dizem que as mudanças climáticas não existem. “E tem desinformações que são muito pelo modo como o próprio conhecimento científico é produzido, que no contexto de uma sociedade muito complexa se torna difícil de popularizar”, cita Laura. Para a pesquisadora, a ideia da divergência no pensamento científico contribui para a criação de questionamentos. “Esse tipo de dúvida que a ciência coloca é muito difícil de ser explicada em um contexto popular, e vai gerar um conjunto de ideias que podem alimentar as desinformações mais catastróficas, como o debate se existe aquecimento global”, explica.
Segundo Laura, a desinformação climática é perigosa de maneira palpável. “Ela também é capaz de gerar morte, de gerar perdas, de gerar destruição, porque ela é capaz de operar com o descaso, com a desorganização das comunidades. Ela é capaz de desarticular ações que já estavam em andamento”, expõe. A problemática é cívica, social e política, e afeta, inclusive, a democracia, porque ela depende também da participação e da confiança. Norton Ávila reflete que o fenômeno afeta seu dia-a-dia no trabalho, principalmente quando disseminado por pessoas que não verificam a informação. ‘Eu sinto na pele’, desabafa. Para o jornalista, a atenção com a questão ambiental ainda não é prioridade para a comunidade restinguense. “Eles estão mais preocupados com a solução, em ter esse bem restabelecido, quem foi atingido em casa, a ponte que apresentava defeitos e ainda não foi reconstruída”, avalia Norton.
Comunicação de Proximidade
As enchentes de maio de 2024 também sacudiram o grupo de pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFSM (Poscom). Com o acontecimento, veio a sensação de impotência. Além da coleta de doações, docentes, estudantes de graduação e pós-graduação participaram do projeto de arrecadação de pilhas e rádios a pilha para as áreas atingidas da Quarta Colônia.
Mas uma pergunta continuou presente para as pesquisadoras: qual é o papel da comunicação nesse contexto? Laura conta que começaram a perceber que a atuação do campo não é emergencial, como a da área da saúde. “Ele acontece antes e depois. Deveria ter acontecido antes, deveria estar lá para ajudar essas comunidades a se organizar e a estar preparadas”, comenta.
É a partir da vontade de compartilhar as pesquisas com a comunidade que surgiu o projeto ‘Comunicação de Proximidade: memória, resiliência e adaptação social a riscos climáticos e catástrofes naturais na Quarta Colônia’, liderado pelo Poscom e em parceria com os Programas de Pós-Graduação da Geografia (PPGeo), do Patrimônio Cultural (PPGPC), da Enfermagem (PPGEnf) e de Letras (PPGL). “A ideia do projeto nasceu desse desconforto, desse incômodo, de como a gente poderia atuar e gerar ações concretas para a comunidade”, explica Laura. O ‘Comunicação de Proximidade’ é uma das dez propostas contempladas pelo edital do Programa de Extensão 2024/2026.
O projeto parte do conceito que o nomeia para articular os debates de território e governança ao papel da política e do pertencimento regional em uma dinâmica comunicacional, que nasce na comunidade para a comunidade. “O papel da comunicação de proximidade é qualificar a informação e a discussão cívica para gerar protocolos de segurança e de alerta, e para gerar debates que fomentem políticas de prevenção”, destaca Laura.
Para a pesquisadora, a questão do território é importante porque a desinformação climática afeta, de maneira mais contundente, os desertos de notícias, ou seja, locais em que há ausência de meios e veículos de comunicação especializados. A cobertura sobre as enchentes, por exemplo, começou pela Quarta Colônia por ser a primeira afetada, mas na medida em que a emergência climática e humanitária tomou proporções grandes na região metropolitana, a cobertura se deslocou e teve maior ênfase em Porto Alegre.
Laura define o jornalismo como prática material, que existe no tempo e no espaço e, por isso, tem limitações do que consegue fazer.
Educação midiática
Um dos braços do projeto é a educação midiática. As oficinas em escolas foram uma das formas encontradas para efetivar a extensão. Ministradas por estudantes de pós-graduação da Geografia e da Comunicação em novembro de 2024, as oficinas trataram sobre as características geográficas da Quarta Colônia, a compreensão de como aconteceram os deslizamentos e erosões, e da desinformação, por meio das notícias falsas.
Vanessa Manfio é professora de geografia na Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Cândida Zasso, que fica na área urbana de Nova Palma – RS. Esta é uma das escolas que receberam as oficinas. Estudantes do 6º e 7º ano puderam compreender mais sobre o clima na oficina da Geografia, e os do 8º e 9º aprenderam sobre desinformação. Além da parte teórica inicial, os estudantes puderam gravar vídeos e tirar fotos e interagir por meio de seus relatos de experiências. Vanessa conta que muitos dos alunos foram atingidos pela enchente: perderam casas, bens materiais e roupas.
Para ela, a experiência foi significativa por permitir que pudessem identificar desinformações. “Circulava muitos vídeos sobre o ‘rompimento’ da barragem de Itaúba, da Usina Hidrelétrica de Nova Palma. Isso assustava muito a gente. Nossos alunos conseguiram perceber que algumas informações que circularam na época das enchentes não eram verdadeiras”, conta Vanessa. A professora avalia que o conhecimento é positivo, pois permite maior cuidado na percepção da origem da informação e, consequentemente, no seu compartilhamento. “Precisamos estar com um olhar atento e aberto de que nem tudo que circula na internet é verdadeiro. Precisamos buscar uma fonte de informações correta, e quando chega um material desse tipo não podemos sair divulgando sem saber se é verdade”, reflete.
Próximos passos
Além da educação midiática, o projeto ‘Comunicação de Proximidade’ tem mais dois braços. O primeiro é o da constituição do ecossistema comunicacional da região, que consiste no mapeamento de comunicadores populares que são referências para a informação de qualidade. E o segundo se refere à criação de grupos de discussão com a comunidade para o desenho de protocolos de comunicação de alerta e de segurança. A intenção é que a Quarta Colônia esteja mais preparada, em termos comunicacionais, caso emergências climáticas voltem a acontecer.
Expediente
Reportagem: Samara Wobeto, jornalista
Revisão: Luciane Treulieb, jornalista
Design: Evandro Bertol, designer