Produção de conteúdo: Millena Oliveira | Voluntária de Relações Públicas
Matéria: Caroline Siqueira | Bolsista de Jornalismo
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tem como seus objetivos fundamentais, previstos no artigo 3º, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais; e ainda, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, gênero, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Tal documento, conhecido como a Lei Fundamental do Estado, foi construído com base em todo o contexto histórico brasileiro, que precede a famosa frase “Terra à vista!”, proclamada pelo navegador português Pedro Álvares Cabral, em 22 de abril de 1500. No século XVI, o território que hoje é conhecido como Brasil era habitado por cerca de 2 milhões de indígenas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Separados por etnias de culturas diversas, os povos originários começaram a ter sua população diminuída drasticamente com a vinda dos europeus e posterior colonização da região onde se localizavam. O sistema imunológico dos indígenas não estava preparado para doenças como varíola, sarampo, tifo e caxumba, levadas pelos portugueses, o que dizimou milhares de nativos. A escravização desses povos promovida pelos europeus e a resistência contra a ocupação portuguesa em territórios indígenas também colaboraram para o extermínio de dezenas de etnias, e em consequência, suas tradições culturais também foram perdidas.
Esse genocídio em massa refletiu e ainda reflete fortemente a situação das comunidades originárias, que, com o passar do tempo, foram marginalizadas. A legislação brasileira só começou a dar a devida atenção a esses povos na Constituição de 1934, quando o direito à posse da terra que já lhes pertenciam foi assegurado. Já na Constituição de 1967, os indígenas poderiam usufruir dos recursos das terras que habitavam, sendo estas protegidas de ocupações, posse e ocupação por terceiros. Em 1988, depois de muita pressão popular e luta, os povos originários conseguiram, além de um capítulo completo para tratar dessa demanda, o artigo 231, que diz:
“São reconhecidos aos índios* sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
*Termo se encontra no artigo, mas não é o adequado a se utilizar. O correto seria indígena.
Hoje, segundo o último censo do IBGE em 2010, cerca de 800 mil indígenas vivem em território brasileiro, representando apenas 0,4% da população do país. Apesar das grandes conquistas históricas, o caminho para a igualdade de direitos, representatividade e ocupação de lugares indígenas ainda é longo.
Hoje, dia 19 de abril, é aniversário de 81 anos do “1° Congresso Indigenista Interamericano”, ocorrido no México, em 1940. No Brasil, essa data ficou conhecida como “Dia do Índigena” durante o governo Vargas, através do decreto Lei n° 5.540, de 1943. Então, em rememoração a todo esse contexto de luta, trouxemos algumas das principais ações da UFSM que visam a inclusão e representatividade desses povos dentro da Universidade, cumprindo com a redução das desigualdades sociais e marginalização de povos, prevista pela constituição, e com sua obrigação como instituição pública em permitir o acesso à toda população brasileira.
Povos originários dentro do ambiente universitário:
A educação gratuita e de qualidade é elemento essencial para a construção de uma sociedade igualitária em seus direitos. Pensando nisso, a lei 12.711, instaurada em 2012 no Brasil, conhecida popularmente como a Lei de Cotas, garante que Universidades e Institutos federais e públicos reservem em seus processos de ingresso uma porcentagem de vagas para candidatos pretos, pardos e indígenas (PPI).
O ingresso para os cursos de graduação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), acontece via Sistema de Seleção Unificada (SISU), e nele são disponibilizadas as vagas das cotas PPI. Além disso, a UFSM também implantou o processo seletivo indígena, que destina todos os anos vagas nos cursos de graduação da UFSM para indígenas aldeados. A prova para o Processo Seletivo Indigena é composta por 20 questões de múltipla escolha das disciplinas de Biologia, História, Língua Portuguesa e Matemática, e também por uma prova de redação relacionada à temática indígena.
Pensando nas condições de permanência dos povos originários, no dia 14 de dezembro 2018, foi inaugurada a Casa do Estudante Indígena Augusto Ópẽ da Silva. O nome da casa é uma homenagem ao líder Kaingang que foi o responsável pela idealização do espaço junto à UFSM. A moradia estudantil conta com 96 vagas, e é resultado das políticas públicas afirmativas, e da luta estudantil dos povos indígenas. Além de ser um direito, a Casa do Estudante Indígena representa um espaço de preservação e prática da cultura indígena dentro dos ambientes da Universidade.
Geneci Fidelis, discente da UFSM e natural da etnia Kaingang, entrou na Universidade em 2016, por meio do Processo Seletivo Indígena, no curso de Engenharia Civil, aos 17 anos. Criada na aldeia índigena de Nonoai, ela foi para Santa Maria sozinha, mas contou com o apoio de sua família e das pessoas ao seu redor. Ela conta que na mesma época, mais dois colegas da aldeia também tinham passado no vestibular da UFSM e todos da aldeia os ajudaram nesse período.
“A Universidade acolheu a gente super bem. Mas quando eu entrei ainda não tinha a Casa [Casa do Estudante Indígena], mas o pessoal que ficava nos blocos super nos ajudaram a nos instalarmos nos primeiros meses”, explica a jovem.
No entanto, Fidelis não se adaptou à Engenharia e buscou ingressar em Licenciatura em Artes Visuais: “Tentei transferência interna, mas não abriu naquele ano”, ela diz. A jovem fez o Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) novamente em 2017, mas não conseguiu nota suficiente para se classificar no SISU. Foi em 2018 que ela conseguiu a vaga pretendida e hoje mora na Casa do Estudante Indígena.
“Esse curso sempre foi um sonho pessoal que antes eu só via como um hobby e eu tinha muito medo de não conseguir me sustentar com ele”, confessa Fidelis. “Mas como eu saí da aldeia, fui caminhar um pouquinho mais, percebi que eu tinha sim a possibilidade de me manter e de continuar mantendo as tradições”, relata.
Fidelis é muito grata pelo apoio que sempre recebeu durante seu processo de mudança: “A minha família e a minha comunidade não medem esforços para ajudar”. Agora, com 23 anos, além de estar na reta final de sua graduação, a jovem atua como bolsista do projeto “Aldeias em rede”, coordenado pelo professor adjunto do Departamento de Letras Vernáculas Vitor Jochims Schneider.
O projeto tem como objetivo promover ações formativas iniciais e continuadas de professores indígenas e não indígenas aptos a atuar em escolas indígenas da região de Santa Maria. Com reuniões online às terças-feiras e às quintas-feiras, os participantes do projeto interagem com os docentes das escolas Mbyá Guarani e Kaingang, os auxiliando no que for necessário.
O estudante de Farmácia da UFSM Willian Gama, também morador da Casa do Estudante Indígena, é pertencente à etnia Xakriabá, localizada no norte do estado de Minas Gerais. Gama é o primeiro de sua família a ingressar em uma universidade federal, e confessa que quando ele e sua família receberam a notícia, eles sentiram receio: “Bate aquele desespero, porque não é nada fácil sair pela primeira vez do território para transitar na cidade, como foi no meu caso”. No entanto, Gama ressalta que isso nunca foi um empecilho que o desmotivou, porque a felicidade da aprovação falou mais alto.
“Ao mesmo tempo veio aquela responsabilidade de que você não está somente representando sua família, e sim todo o coletivo, uma trajetória de história de um povo! Porque a nossa luta é coletiva”, confessa o estudante. Apesar da felicidade em adentrar o universo acadêmico, Willian Gama demonstra que nem tudo foi fácil.
Em sua opinião, ele acredita que não é apenas sobre as políticas de cotas, assistência estudantil, e benefícios sócio-econômicos que precisamos indagar, é necessária também uma política de boa convivência.
“Nossa saída do território para transitar do pensar da Universidade não foi somente carregada de sorrisos, escorrem também muitas lágrimas que molham os nossos papéis ao virar das noites […] Carregamos muitas dores, cicatrizes de enfrentar diariamente o racismo estrutural e institucional da sociedade”, desabafa Gama.
O estudante ainda ressalta que: “Uma das formas de resistência é não permitir o desbotamento da nossa identidade quando transitamos no território acadêmico. Precisamos, ainda como uma flecha certeira, indigenizar os espaços que ocupamos […] Nesse sentido, podemos observar um crescente conteúdo de autoria indígena”.
O jovem diz que, apesar de suas dores, o que o conforta é saber que ele retornará mais forte e para honrar o apoio das lideranças Xakriabás. Ele diz que pretende levar seus conhecimentos adquiridos na Universidade para a sua comunidade e ainda conta que a área que o mais interessa hoje é a botânica, pois além de fazer parte do leque de possibilidades da Farmácia, ele quer ter o conhecimento das plantas medicinais que existem dentro do nosso território.
A Universidade Federal de Santa Maria, visando justamente auxiliar a adaptação dos alunos indígenas dentro da Universidade, criou o Núcleo de Ações Afirmativas Sociais, Étnico-Raciais e Indígenas, oriundo da Coordenadoria de Ações Educacionais (CAED), sub-unidade vinculada à Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD). O setor tem como objetivo acompanhar e monitorar estudantes cotistas de escola pública, pretos, pardos, indígenas e quilombolas que estudam na UFSM. A organização visa garantir o acesso, a permanência e a aprendizagem desses estudantes, por meio de sugestões e adequações no Programa de Ações Afirmativas, garantindo as políticas públicas adequadas para tais estudantes.
Dentre as atividades do Núcleo, estão as rodas de conversa, palestras e cursos relacionadas às pautas de de gênero, cultura, classe, geração, orientação sexual, educação das relações étnico-raciais e indígenas, direitos humanos, gestão em ações afirmativas, entre outras; a monitoria indígena, realizada em conjunto com a PROGRAD, que visa minimizar barreiras sociais, culturais e acadêmicas já existentes.
Rodrigo Kuaray, egresso de Direito da UFSM e nativo do povo Guarani Mbyá, entrou na Universidade em 2015. Ele conta que inicialmente, sua vontade era estudar Biologia, mas no calor do momento do vestibular, acabou optando pelo Direito. “Depois de ter ingressado, conhecido os colegas, ter me inteirado do curso e das aulas, pude perceber que era uma área que tinha me escolhido”, revela Kuara. “Batia muito com o meu perfil, de me sentir injustiçado e de não admitir nenhum tipo de opressão ou supressão de direitos”, complementa o egresso.
O jovem também foi o primeiro de sua família a ingressar em uma Universidade e sempre contou com o apoio de sua família, mas que vinha acompanhado de uma dose de preocupação, pela distância de sua comunidade com a Universidade. Rodrigo Kuaray explica que sua casa fica a 32km da cidade da Universidade e o percurso de lá até onde estudava chegava a duas horas e meia.
Já dentro da Universidade, Kuaray teve participação ativa nos movimentos estudantis, participando do Diretório Central dos Estudantes, onde representou o povo Guarani nas discussões sobre as políticas de acesso e permanência no ensino superior. Ele conta que essa experiência foi uma das contribuições da UFSM que foram significativas para a sua vida e desenharam a pessoa que é hoje, que atua e que prima pela coletividade e que sempre está disposta para melhorias na comunidade em geral, em especial das minorias, parcela da população a qual pertence.
Hoje, o egresso atua como assessor na Comissão Guarani Yvyrupa, ocupação que lhe transmite muita satisfação pessoal, pois além de fazer o que gosta, o faz em prol de seu povo. Ele também é inspiração para seus irmãos entrarem no ensino superior. Quanto ao futuro, Rodrigo Kuaray está aberto a novas possibilidades: “A UFSM abriu possibilidades na minha vida […] A gente não se vê fechado em uma única linha de pensamento ou de perspectiva.”, mas diz que pensa em seguir a carreira acadêmica.
Coordenado pela professora Aline Passini, o Curso de Licenciatura em Educação Indígena é a representação do compromisso institucional da UFSM perante a sua responsabilidade educacional, social e política, sempre valorizando as múltiplas culturas. Disponibilizado na modalidade à distância, foi elaborado especialmente para a etnia Kaingang, com a identidade visual inspirada em elementos dessa etnia.
O egresso em Licenciatura em Educação Indígena estará apto para o ofício da profissão de professor, qualificado e capacitado para exercer as suas competências, preferencialmente, em escolas de ensino fundamental e médio dentro das comunidades indígenas. No curso, os discentes aprendem disciplinas do eixo das seguintes áreas: Línguas e Linguagens; Gestão Escolar; Ciências da Natureza e Ambiente; Ciências Humanas e Territoriais. Disciplinas que permitem a formação de um profissional consciente de seus direitos e deveres enquanto cidadão.
Em novembro de 2019, foi realizado o primeiro “Dia i” – Integração do Curso de Licenciatura em Educação Indígena – Ensino a Distância (EAD), na UFSM, Campus Frederico Westphalen, onde o curso está lotado. O encontro teve como objetivo integrar os alunos indígenas com os docentes do curso, os polos EAD (Palmeira das Missões, Três Passos, Itapejara e Constantina). Nessa data, os alunos puderam conhecer e interagir com as dependências da Universidade Federal de Santa Maria.
Hoje o curso conta com cerca de 40 alunos distribuídos pelas aldeias. Devido ao período de pandemia, as visitas previstas para ocorrerem ao longo do curso não estão acontecendo. “A comunicação com eles ficou bem difícil, pois os encontros presenciais são primordiais”, diz Passini. “Mas estamos lutando… Fazendo o que podemos e eles também”, diz a coordenadora.
Passini também ressalta: “A UFSM auxilia a suprir, a partir desta licenciatura, uma lacuna histórica dos povos indígenas em relação a seu planejamento quanto uma política educacional voltada para os povos indígenas e a luta secular de suas lideranças tradicionais e de seus professores por uma educação específica, diferenciada e de qualidade, elevando com isso, para outro patamar a educação indígena Kaingang em todo o estado do Rio Grande do Sul, sendo este Curso o primeiro e único no Rio Grande do Sul!”, finaliza a coordenadora.
Outras ações:
- Programa de Educação Setorial (PET) Indígena
O PET Indígena Ñande Reko surgiu em 2010 através do edital “Conexões de Saberes” e atua representativamente desde 2011 na UFSM. O Programa possui caráter interdisciplinar e recebe discentes de vários cursos dentro da Universidade. Todas as iniciativas do projeto são voltadas às questões indígenas.
Um exemplo delas é a ação “Corporalidades Indígenas”, que procura entender e refletir sobre o culto ao corpo enquanto performance quando em questões de saúde, sendo realizada nas comunidades Kaingang.
O nome do Programa tem origem indígena e pode ser traduzido como “nosso jeito de ser”, reafirmando a representatividade da identidade cultural dos membros.
- Programa de Desenvolvimento Acadêmico Abdias do Nascimento
A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), através da Coordenação Geral de Programas, em conjunto com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) promovem o Programa de Desenvolvimento Acadêmico Abdias do Nascimento.
Com o intuito de estimular o intercâmbio acadêmico entre instituições de pesquisa de todo o mundo, o programa auxilia discentes, preferencialmente os candidatos autodeclarados pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades e superdotação, conforme dispõe a Portaria MEC nº 1.129, de 17 de novembro de 2013, a viajarem com propósitos de estudo e pesquisa.
Há o custeio das passagens aéreas, bolsas de estudo e ainda um valor previamente estipulado das despesas da equipe brasileira envolvida na missão de trabalho.