Entre as 12 mulheres premiadas por sua atuação na Química pela União Internacional de Química Pura e Aplicada (IUPAC), a única representante da América Latina é brasileira e ex-aluna da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestre e doutora em Química analítica pela Instituição, Márcia Mesko recebeu o IUPAC 2023 distinguished Women in Chemistry or Chemical Engineering, uma premiação criada em 2011 com o objetivo dar visibilidade e reconhecimento ao trabalho de mulheres no meio científico. A solenidade de entrega da honraria será realizada em agosto, na Holanda.
Criada há 104 anos, a IUPAC regula os padrões para a denominação dos compostos e elementos químicos. Um exemplo com que todos têm contato nas aulas de Química é a tabela periódica, que foi padronizada pelo órgão. Para comemorar o centenário da entidade, em 2019, a IUPAC criou uma tabela periódica especial com o rosto de 108 jovens cientistas. Márcia também teve destaque nessa ação, e foi escolhida para representar o elemento Bromo, 35º elemento da tabela.
Antes disso, a docente já figurava como referência em sua área. Em 2012, a pesquisadora venceu o prêmio L’Oréal-Unesco- Academia Brasileira de Ciência para Mulheres na Ciência, além de outras distinções. Ela também foi a primeira latino-americana a receber o prêmio de Pesquisador Emergente concedido pela Real Sociedade de Química Britânica e pelo Jornal de Espectrometria Atômica Analítica, em 2018. Em 2019, ela apareceu na lista Celebrating Excellence in Research: 100 Women of Chemistry, também realizada pela Real Sociedade de Química. No âmbito acadêmico, ela já publicou mais de 120 artigos em revistas de renome nacional e internacional.
A docente também integra associações como a Sociedade Brasileira de Química, a Academia Brasileira de Ciências e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs), da qual é coordenadora do Comitê Interdisciplinar. Sua trajetória na Química teve início aos treze anos em sua cidade natal, Pelotas, quando iniciou o curso técnico em Química. Mais tarde, se graduou em Química pela Universidade Federal de Pelotas (UFPeL), onde, agora, atua profissionalmente como docente.
Em entrevista à Revista Arco, Márcia conta sobre a sua carreira dedicada à pesquisa e o ensino da Química e a importância da UFSM em sua trajetória. Ela também fala a respeito das dificuldades que as mulheres enfrentam no meio acadêmico e os desafios de fazer ciência fora dos grandes centros.
Arco: Poderia explicar para os leitores o que é a IUPAC e a importância desse prêmio?
Márcia Mesko: A IUPAC é uma organização não governamental internacional que, desde 1919, reúne pesquisadores em prol do desenvolvimento da Química mundial. Ela é bastante conhecida por ter padronizado a tabela periódica e normatizações de nomenclaturas das fórmulas Químicas. Então, todos que já passaram pelo ensino médio tiveram contato com o trabalho da IUPAC.
Sobre a premiação, toda vez que a gente tem um trabalho reconhecido por uma instituição com a relevância da IUPAC, nos lembramos de toda a nossa história, de tudo que fizemos e o que ainda podemos fazer, além de mostrar que é possível produzir ciência de qualidade fora dos grandes centros, basta incentivar os pesquisadores, principalmente os que estão em início de carreira.
Quando eu vejo alguém da minha cidade, do meu estado, da minha universidade conquistando alguma coisa, parece que a gente conquista junto, então espero que a premiação possa motivar os futuros pesquisadores a não desistirem da ciência. Sabemos que já passamos por momentos muito difíceis, mas também sabemos da importância da ciência, por isso não podemos desanimar. Mas precisamos que os nossos governantes entendam o quão importante é a formação de profissionais qualificados em todas as áreas. Esse é o caminho que leva ao desenvolvimento do país.
Arco: Qual é a importância dessa premiação para o reconhecimento do trabalho das mulheres na ciência e o incentivo para que essa participação feminina aumente? Como é a presença feminina na Química, chega perto da equidade?
Márcia Mesko: Segundo estudos de revistas internacionais, as mulheres correspondem a 33% dos cientistas em cargos de liderança. Mas, quando olhamos para a sala de aula, por vezes, as mulheres são maioria. O meu grupo de pesquisa é composto quase que totalmente por mulheres e não há vagas reservadas especialmente para elas. Mas quando vamos para congressos, percebemos que os espaços de discussão e de fala ainda são muito restritos para as mulheres. Através da luta pela equidade de gênero, as coisas têm melhorado, já é possível ver maior presença das mulheres em posições de destaque nesses eventos, mas não é o mais comum.
As premiações internacionais ajudam a mostrar que no mundo todo há muitas pesquisadoras realizando ações relevantes. Além disso, elas trazem credibilidade, pois parece que as pessoas não acreditam na capacidade das mulheres em liderar projetos, eu mesma enfrentei resistência para seguir com a minha linha de pesquisa. Então às vezes tu não és reconhecida na tua própria instituição, mas um comitê internacional reconhece a tua competência, e são pessoas que a gente não conhece, então elas enxergam apenas o nosso trabalho.
Arco: Conte um pouco sobre a sua área de atuação e linha de pesquisa?
A minha área é a Química analítica e ela está muito presente no nosso dia a dia. Todos os produtos que nós utilizamos passam por um processo de análise Química antes de serem comercializados. O que eu faço é desenvolver métodos de análise para medicamentos, cosméticos e alimentos que sejam mais rápidos, precisos e amigáveis, tanto para o meio ambiente quanto para os pesquisadores, ao gerar menos resíduos químicos. Nós também desenvolvemos métodos para transformar as amostras em soluções a serem analisadas. Para determinar a presença de elementos tóxicos no batom, por exemplo, é preciso transformá-lo em uma solução líquida.
Com o uso de equipamentos de microondas e ultrassom, que são novas tecnologias, a precisão e velocidade de análise aumentaram muito. Enquanto métodos antigos levam horas de preparo para determinar um elemento por vez, o equipamento de microondas faz a mesma análise em 30 minutos e consegue determinar 10, 15 elementos. Hoje nós recebemos solicitações de grupos de pesquisa da Europa para realizar análises em parceria porque eles não conseguem realizar o trabalho que nós fazemos aqui.
Arco: Quando começou o seu interesse nesta temática?
Márcia Mesko: Foi durante a minha pós-graduação na UFSM que os meus horizontes começaram a se ampliar. Eu sabia que queria seguir na área de Química analítica, mas foi quando eu conheci o grupo do professor Érico Flores, que já era referência na área, e começamos a fazer análises de medicamentos e outros elementos que eu fui gostando cada vez mais e defini minha linha de pesquisa. Durante o doutorado, eu migrei da determinação de metais para determinação de halogênios [grupo de elementos que formam sais – flúor, cloro, bromo, iodo, astato e tenesso]. A minha tese de doutorado foi a primeira do grupo a trabalhar com halogênios e foi publicada em uma revista muito conceituada de Química Analítica e premiada na Áustria. Então eu passei a me especializar cada vez mais nesse grupo da tabela periódica.
A pós-graduação tem esse papel de ampliar os nossos horizontes, então me envolvi em todas as oportunidades que tive. Trabalhei com alimentos, medicamentos, petróleo, liga metálica para o setor industrial e, assim, entendia, cada vez mais, a importância da determinação de elementos, porque a presença de 0,001 % de contaminante pode impactar muito a qualidade dos produtos.
Arco: Como a UFSM contribuiu com a trajetória que te levou até essa premiação?
Márcia Mesko: É uma contribuição difícil de dimensionar porque a minha formação profissional foi totalmente lapidada pela UFSM. Foi ela que me proporcionou a oportunidade de participar de projetos junto à Petrobras e à Anvisa e isso me trouxe muitos aprendizados. A UFSM não só foi, como é importante até hoje para mim, já que tenho muitos projetos em conjunto com o grupo de pesquisa no qual eu atuava. Vários dos trabalhos que desenvolvo com meus alunos aqui, têm as análises realizadas na UFSM, porque o LAQIA e Cepetro são um dos laboratórios mais bem equipados da América Latina na área, então temos uma troca muito grande.
Além disso, a UFSM é uma universidade muito acolhedora. Quando eu vim morar aqui, a única pessoa que eu conhecia em Santa Maria era a minha tia, que foi quem me motivou a fazer a seleção para o mestrado. Ela fazia propaganda da Universidade, mas também não conhecia ninguém (risos). Cheguei totalmente perdida e o grupo me acolheu muito bem, me entrosei em pouco tempo. Então ela teve esse papel de me receber muito bem e proporcionar as oportunidades que eu sonhava, não só no meu curso, mas também no aspecto cultural. Vivi a UFSM intensamente nos anos que estive aí e acho que ela sempre vai fazer parte de mim, assim como a UFPeL.
Arco: Atualmente, percebemos que as mulheres têm grande presença nos cursos de Química da UFSM. Gostaria de saber se era assim na tua época de estudante e se essa presença (ou ausência) feminina teve alguma influência durante a sua formação?
Márcia Mesko: Na minha época não era assim, havia muito mais homens do que mulheres, principalmente no doutorado. Nunca tivemos atritos por isso e mantenho convívio com os meus colegas até hoje, mas acho que a representatividade é muito importante porque ajuda a quebrar certos paradigmas, pois, quando há mais mulheres, nós nos sentimos mais confortáveis, apoiamos umas às outras, identificamos potenciais e saímos daquele lugar de fragilidade, sentimento de incapacidade, em que fomos criadas para estar e que nos faz naturalizar muitas dificuldades que enfrentamos para nos impor.
Esse panorama já mudou um pouco e tenho certeza que isso vai fazer diferença na carreira das novas cientistas, porque elas já naturalizam a presença de mulheres nesse espaço. Mas é preciso mudar ainda mais. Por mais que eu me sinta confortável na sala de aula, no laboratório, quando eu olho para quem ocupa as posições de prestígio no meio científico, me sinto minoria novamente.
Arco: Você foi a única pesquisadora latino-americana a ser premiada este ano e a terceira brasileira na história. Qual é a sensação de representar não só um país, mas uma região de tamanho continental que recebe pouca visibilidade?
Márcia Mesko: O primeiro sentimento é de distinção. As outras brasileiras que receberam o prêmio, as professoras Vanderlan Bolzani e Ivone Mascarenhas, são referências para mim, para as mulheres e também para os homens, por conta dos seus trabalhos. Fico feliz por ajudar a mostrar que a América Latina tem potencial, produz ciência de qualidade e mulheres que se destacam na carreira científica. O outro sentimento é o desejo de que mais pesquisadoras latinas sejam reconhecidas. Entre as doze nomeadas, há mais de uma europeia, mais de uma norte-americana, então vemos que ainda temos que conquistar espaço.
Eu venho de uma instituição [UFPel] que não fica dentro dos grandes centros de pesquisa do país, não fica em uma capital e onde a Química não é uma área tradicional. Isso mostra que não se trata de uma questão de capacidade ou disposição, mas sim de investimento na ciência, porque muitas outras pesquisadoras poderiam estar comigo ou no meu lugar. Imagino que elas, ao me verem nesse local, fiquem felizes porque se sentem representadas e capazes de estar lá também.
Arco: E você tem a UFSM como inspiração para tornar a Química cada vez mais reconhecida na sua universidade?
Márcia Mesko: Com certeza. Tenho a Química da UFSM como exemplo de excelência, competência e dedicação profissional. Uma das coisas que aprendi em Santa Maria foi que ninguém cresce por sorte, é preciso muita dedicação. Quando os alunos iam trabalhar nos finais de semana, os professores também estavam lá. Acompanhar hoje os grupos de pesquisa da UFSM alcançarem prestígio nacional e internacional reforça essa referência. Na UFPeL, nós temos muitos professores formados na UFSM e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e percebemos que a região necessita se desenvolver na área da Química. Meu sonho é que, com o tempo, a Química daqui atinja os mesmos patamares da UFSM.
Expediente
Entrevista: Bernardo Silva, acadêmico de jornalismo
Fotos: Arquivo Pessoal de Márcia Mesko
Arte: Daniel Michelon de Carli, design
Edição: Luciane Treulieb e Mariana Henriques, jornalistas.