A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, após o flagelo da Segunda Guerra Mundial. O documento tinha como objetivo construir novas bases ideológicas. Por causa disso, os dirigentes das potências que evoluíram no pós-guerra, caso dos Estados Unidos e da União Soviética, encabeçaram, na Conferência de Yalta, na Rússia, em 1945, os fundamentos para uma futura paz mundial. Essa reunião formou um bloco multilateral cuja intenção era mediar conflitos de nível internacional, distanciando-se de guerras, garantindo a paz e a democracia.
Muitos casos de violação aos Direitos Humanos pairam ao nosso redor. Aqui, na UFSM, por exemplo, ocorreram casos de racismo desde o ano passado. Na opinião de dois em cada três brasileiros, o conceito de que os Direitos Humanos servem apenas para defender criminosos está cada vez mais difuso. Apesar de ainda não existirem estudos comprobatórios, o Brasil é um dos países no qual o cerceamento à liberdade da população LGBTQI+ levou à morte de pelo menos 445 pessoas, no ano passado. Conforme a Pastoral Carcerária, o Brasil possui a terceira maior população de presos no mundo, tendo, hoje, cerca 725 mil presidiários, em um cenário onde a desobediência aos Direitos Humanos por parte das autoridades ganha força.
Foram sobre esses assuntos citados, entre outros, que Erasto Fortes Mendonça, docente aposentado da Universidade de Brasília (UNB), conversou com a reportagem da Revista Arco, antes da palestra que ministrou, no dia 5 de dezembro, durante a abertura do 1º Fórum dos Direitos Humanos da UFSM. O tema da conferência foi Educação em Direitos Humanos à luz dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, abordando suas origens históricas, pela coincidência que existiu entre a data de celebração dos Direitos Humanos com os 30 anos da Constituição Federal.
Erasto foi conselheiro do Conselho Nacional de Educação e presidente da Câmara de Educação Superior, além de ter sido professor dos cursos de Pedagogia e Licenciaturas na UNB. Ele também foi convidado pelo ex-ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi (2005-2010), durante o governo Lula, para atuar na coordenação de um programa nacional de educação e Direitos Humanos, no Ministério da mesma área.
Veja a entrevista que a reportagem da revista Arco fez com o professor Erasto Mendonça a seguir:
ARCO: Segundo uma pesquisa do Instituto Ipsos feita neste ano, seis em cada dez brasileiros afirmaram que os Direitos Humanos “defendem mais bandidos do que vítimas”, como, por exemplo, criminosos e terroristas. Por que o cidadão brasileiro criou tal concepção?
Erasto Mendonça: Existem algumas reflexões que nos remetem à tentativa de explicar o porquê, no Brasil, o que diz respeito aos Direitos Humanos é entendido como defesa de bandido por uma parcela expressiva da população. É uma característica nacional que vem de uma parte muito importante da sociedade, em que a defesa dos Direitos Humanos se consolidou durante a ditadura militar. No golpe de 64, nós vivemos períodos de obscurantismo e perseguições políticas, mortes, desaparecimentos forçados e exílio. E nós temos pessoas que eram defensoras dos direitos civis e políticos daquelas pessoas perseguidas. Nessa época, essas pessoas eram consideradas bandidas. Eram as chamadas subversivas pelo estado ditatorial. Essa é uma forma muito rasa de depreciar a importância dos Direitos Humanos, já que agora essa questão se consolida, de maneira muito forte, pelo que se expressou nesta eleição presidencial, de 2018.
ARCO: Neste ano, houve o assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol), que defendia a bandeira dos Direitos Humanos. Seu falecimento repercutiu, inclusive internacionalmente, e gerou muitas discussões acaloradas, com a propagação de Fake News vindas de algumas partes, sob alegação de que a política defendia bandidos. Afinal, por que existe este conceito, por parte da população, de que defender os Direitos Humanos, também é defender criminosos?
Erasto Mendonça: É uma tendência que o nosso país tem de conservadorismo. A sociedade brasileira é claramente conservadora. A eleição é a prova disso. É uma questão de projeto de país. Daí a importância da educação em Direitos Humanos. O caso Marielle reflete, de maneira exata, o que é essa distorção da prisão e do respeito aos Direitos Humanos. Marielle não foi morta por outra razão, creio eu, apesar da paralisação das investigações. Mas eu creio que ela tenha sido morta exatamente por defender Direitos Humanos para todos, indistintamente, inclusive das pessoas que estão no mundo do crime, porque nós não podemos esquecer que essas pessoas também são pessoas humanas, tendo a dignidade de qualquer outro. Eu acho que não se recupera uma pessoa que está em confronto com a lei sem respeitar a sua dignidade, numa situação de presídio.
Professor Erasto palestra durante o 1° Fórum dos Direitos Humanos da UFSM
ARCO: Em novembro deste ano, uma caravana de migrantes partiu de Honduras e chegou a Tijuana, no México, que fica na fronteira com os Estados Unidos. Sabe-se que muitas dessas pessoas chegaram a ser recebidas a pedradas. Qual o papel dos Direitos Humanos na mediação de conflitos dessa magnitude?
Erasto Mendonça: O exílio está na Declaração de Direitos Humanos. Existe o direito de você ser recebido no país, como exilado, algo que está, também, na Declaração Universal. A questão da migração é muito anacrônica e contraditória. Os países da Europa, que são os mais avançados em sua organização interna para a colaboração com os Direitos Humanos, particularmente a França, pelo que representou a revolução francesa, da declaração dos direitos do homem e do cidadão, deveriam ser os mais abertos. No entanto, infelizmente, são esses países que mais se fecham para receberem quem vem em situação que, humanitariamente, deveria ser compreendida.
ARCO: O que significa a ONU em um contexto histórico que começou após a segunda Grande Guerra, fazendo um paralelo com a nossa atualidade, em relação à consolidação dos Direitos Humanos?
Erasto Mendonça: Eu acho que ela foi um organismo importante – e continua sendo – no sentido de reunir os países para que eles façam a sua adesão àquilo que é consensual. Isso está em vários tratados e pactos. É nesse sentido que entram os temas focais: questões raciais, questões das pessoas com deficiência, idosos, crianças, etc. Nesse sentido, a ONU induz os Estados Nacionais a respeito dos Direitos Humanos.
ARCO: Pelos episódios que se passam ao nosso redor e internacionalmente, com governos cada vez mais nacionalistas e reacionários, como no caso do presidente filipino Rodrigo Duterte, que manda executar, inclusive, usuários de qualquer tipo de droga, você acha que o mundo caminha em uma direção em que não haverá mais Direitos Humanos?
Erasto Mendonça: Não creio. Vivemos em um período de profundo retrocesso ao conservadorismo, mas, se você analisar a linha da história, vai ver que vivemos em pêndulos. Uma hora a sociedade está bastante conservadora, na outra, como reação a isso, ela fica mais progressista. Eu não creio que tenhamos um retrocesso tão absoluto ao ponto de não pensarmos mais na existência de Direitos Humanos. Tenho a firme convicção de que, após um período de retrocesso, que eu não sei quanto tempo durará, voltaremos a uma vida mais aberta, de respeito aos Direitos Humanos. Vou citar uma frase do ex-ministro Ayres Britto, que já foi presidente do Supremo Tribunal Federal, que é um poeta também, além de jurista, que ele diz assim: “os Direitos Humanos são parte de um processo civilizatório da humanidade, irreversível, não tem retorno”. E eu quero acreditar nessa crença de que é um processo sem retorno. Você pode ter momentos de fluxo que andam para trás, mas, logo a seguir, damos dois passos à frente.
ARCO: Existe uma preocupação bem expressiva, especialmente pensando em 2019, no que tange à violação dos Direitos Humanos no sistema prisional brasileiro, que hoje aloca mais de 700 mil presos. Você sente que a violência vinda do Estado policialesco possa vir a aumentar e infringir isso?
Erasto Mendonça: Ele já existe. Mas vai ser recrudescido pela forma como se está declarando. No projeto de transição, isso está ficando mais claro. Isso se espalha em setores, não é só na questão carcerária. Tentar resolver os problemas de segurança pública pela errônea ideia de distribuir armas para o cidadão chamado de “bem” é um erro crasso do ponto de vista público em Direitos Humanos, mas ele se espalha em outros setores. Só para dar um exemplo local, aqui, em Santa Maria, eu tenho conhecimento de que ontem (terça-feira, dia 4 de dezembro), na Câmara Municipal, houve o recebimento de uma manifestação intensa de estudantes e de entidades a respeito da questão do projeto de lei da “mordaça”, que eles chamam de Escola sem Partido. É uma coisa de uma violência absoluta total, que atinge a universidade, que atinge a Educação Básica e seu direito de liberdade de opinião, de manifestação de opinião, sob a alegação de uma doutrinação ideológica que os professores estariam supostamente fazendo. A ideologia que está por trás disso é o que exatamente é uma tentativa de doutrinação que a escola poderá sofrer daqui para frente, se um projeto desses for aprovado. E eu não creio que ele deixará de ser aprovado, porque existem períodos em que esses retrocessos estão acontecendo.
ARCO: Diante de tudo isso que já conversamos, você teria mais alguma preocupação a expressar?
Erasto Mendonça: Veja bem: o Brasil é o país que mais mata a população LGBT. Se você olhar os indicadores sociais, quem são os principais assassinados? Os jovens negros. Nós entramos na estatística da fome, novamente, depois de décadas de trabalho. A mortalidade infantil está aumentando progressivamente, depois de décadas de grandes avanços que o Brasil teve. Então, o que mais a gente poderia dizer para expressar concretamente que os direitos estão sendo cada vez mais violados pelo Estado, que deveria ser o garantidor dos Direitos Humanos?
Reportagem: Guilherme de Vargas, acadêmico de Jornalismo
Edição: Luciane Treulieb, jornalista
Fotografia: Rafael Happke
Fonte: Revista Arco