Extensão universitária como escuta e confluência. Essa é uma das maneiras de se descrever a atuação do projeto “Encruzilhada de saberes e fazeres: partilhas e cirandas”. A iniciativa atua no Território Imembuy, com atividades feitas em cooperação com comunidades tradicionais e segmentos populares. Entre os principais grupos e entidades co-produtoras do projeto estão o Ilê Àse Iyá Omin Òrun, em Santa Maria, e o Clube Recreativo Harmonia, em Caçapava do Sul.
“O intuito é entender a potência da Universidade fazer essa escuta plena destes saberes e fazeres que não são saberes canônicos e hegemônicos”, explica Flávio Campos, coordenador do projeto e professor do curso de bacharelado em Dança da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). As atividades do Encruzilhada incluem rodas de conversa, oficinas, palestras e participações em eventos temáticos, como o “Julho das Pretas”.
Mais do que abrir as portas da Universidade para diferentes saberes ancestrais e populares, o projeto busca promover partilhas equilibradas, ou seja, os grupos e pessoas da comunidade não apenas participam, mas constroem junto as ações de extensão. “Fazendo um trocadilho mas que é elevado muito a sério, nós estamos aqui para dar escuta”, afirma Flávio Campos.
De acordo com ele, a iniciativa surgiu justamente do contato com essas manifestações culturais de grupos, por vezes, negligenciados no universo acadêmico. Atualmente, o projeto está realizando uma série de oficinas de danças em escolas públicas da região. As duas primeiras a receberem as atividades foram as escolas municipais Patrício Dias Ferreira e Elaine Bassi de Melo, ambas em Caçapava do Sul.
Extensão em confluência e partilha
“A nossa participação nesse projeto foi determinante no processo de recuperação da memória e da ancestralidade da dança afro aqui em Caçapava”, conta Cátia Cilene Morais Dutra, professora e integrante do Grupo Clara Nunes de Dança Afro-Brasileira, um dos responsáveis por promover as ações de extensão junto ao projeto Encruzilhadas de Saberes e Fazeres. Formado em 1988, o grupo atua junto ao Clube Recreativo Harmonia e foi criado com objetivo de valorizar a cultura, a música e a dança afro na Região Sul. Cátia Cilene pontua que as trocas por meio do Encruzilhadas ajudam a quebrar barreiras que antes dificultavam a atuação do grupo, como a falta de visibilidade e espaços em eventos oficiais.
O grupo conta com a participação de cerca de 30 pessoas, incluindo representantes de diferentes faixas etárias. “No caso, a pessoa com a menor idade no grupo tem 6 anos de idade e a mais velha tem 81”, complementa Cátia Cilene. Desde as músicas, passando pelas coreografias e incluindo os trajes e figurinos, o grupo também resgata o legado da cantora Clara Nunes, importante nome da música brasileira.
Na visão de Cátia Cilene, a dinâmica adotada pelo projeto permite que se coloque em pauta a realidade da comunidade preta e periférica. “Da mesma forma que a gente aprende com a Universidade, é importante que a gente esteja presente dentro da Universidade para que ela também possa evoluir e levar em conta o que nos afeta”, descreve a professora e bailarina.
Essa atuação em prol do fortalecimento mútuo também é percebida pela Iyalorixá Silvia de Osun. Matriarca do Ilê Àse Iyá Omin Òrun, ela afirma que as atividades ajudam a envolver a comunidade do bairro João Goulart, onde fica o terreiro, fundado em 2013. “Motiva nossa juventude periférica a estudar e ingressar na Universidade também”, ressalta Silvia de Osun.
Em geral, cerca de 50 a 80 pessoas participam das atividades, que duram um dia todo, descreve a Iyalorixá,. Além das oficinas de dança, os encontros do Encruzilhadas contam com almoço com pratos típicos e espaços para diálogo. Segundo ela, um dos temas que têm ganhado ênfase nos encontros são os cuidados com a natureza.
“Precisamos da mata, da água e da terra. Então a gente tem feito uma conscientização da importância do cuidado com o meio ambiente, até mesmo na questão de materiais que muitas vezes vão ser entregues como oferenda. Ter esse cuidado de não levar o papel ou plástico”, explica a matriarca do Ilê Àse Iyá Omin Òrun.
Como o projeto surgiu?
O projeto “Encruzilhada de saberes e fazeres” começou em 2016, a partir do contato que Flávio Campos começou a estabelecer com esses grupos, nomeados por ele como “escolas existências”. Ele explica que a metodologia utilizada no trabalho junto dessas comunidades se baseia no método do Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI), o que, segundo o professor do curso de bacharelado em Dança, permite uma abertura para conhecer e aprender com o outro.
De acordo com Flávio Campos, entre as bases que orientam as ações da iniciativa estão os ensinamentos e saberes de autores como Antônio Bispo dos Santos, pensador quilombola conhecido como Nêgo Bispo. “Talvez assim possamos aprender a somar e pensar os nossos modos de produzir conhecimento, de forma mais acolhedora, mais afetuosa e respeitosa. Para falar de conceito, em uma perspectiva contracolonial”, explica o docente da UFSM.
Além disso, as ações promovem uma troca de saberes e visitas, fazendo com que o professor e os estudantes vão até às comunidades, mas também trazendo seus representantes para serem escutados no espaço acadêmico. Ao mencionar o impacto do “Encruzilhadas”, Flávio Campos ilustra o papel que o projeto exerce de conectar ensino, extensão e pesquisa, considerando um projeto para mapear as atividades culturais e os segmentos socioculturais de Santa Maria e da região.
A perspectiva dos estudantes
Natural de Toledo (PR), Felipe Soares é um dos estudantes do bacharelado em Dança da UFSM que atuam como bolsistas do projeto. Ao falar sobre as atividades, ele menciona as diferentes rodas de conversa e oficinas com as comunidades. “A partir dessas ações, pude partilhar dos vários conhecimentos que se desenvolvem na sociedade e que nos auxiliam nas compreensões e fomentações da arte enquanto ferramenta de transformação e discussão social”, afirma o estudante do 4° semestre do curso.
Para Felipe, mais que apenas atividades para conhecer outras perspectivas sobre o universo da dança, as ações permitem romper com exclusões e desigualdades que afastam a cultura popular da Universidade. “As atividades do programa deslocam as oportunidades de fala e de compreensão para além de uma hierarquia designada em alguns ambientes, proporcionando um contato direto da comunidade com a Universidade”, destaca ele.
Perto de se formar, Anna Beatriz Souza de Campos começou a participar das atividades do “Encruzilhadas de Saberes e Fazeres” para conhecer mais detalhes da cultura afro-diaspórica. Nascida em Itaqui, na fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, ela acredita que a participação e os conhecimentos compartilhados nos encontros podem a ajudar também depois de formada.
“Apesar de todas as dificuldades, com nossos esforços conseguimos fazer esse projeto virar realidade e espero poder continuar apoiando e acompanhando o projeto, mesmo quando não fizer mais parte da comunidade acadêmica”, afirma Anna Beatriz. Além da extensão, o projeto também faz parte de suas pesquisas para o trabalho de conclusão do curso.
É possível acompanhar a programação de atividades do “Encruzilhadas de Saberes e Fazeres” pelo Instagram @encruzilhadasufsm.
Texto: Micael dos Santos Olegário, da Subdivisão de Divulgação e Eventos da PRE.
Revisão: Catharina Viegas de Carvalho, da Subdivisão de Divulgação e Eventos da PRE.