Em 1990, enquanto o mundo comemorava a libertação de Nelson Mandela na África do Sul; os cientistas lançavam o Telescópio Hubble para sua missão de inspecionar o universo; os homossexuais deixavam de ser considerados doentes pela Organização Mundial da Saúde; e os alemães se preparavam para a reunificação do país; no Brasil, em 13 de julho, era promulgado, de forma pioneira no mundo, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Esse conjunto de leis, específico para cidadãos brasileiros com até dezoito anos de idade, assegura os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana – tais como os direitos à vida, à saúde, à alimentação, ao esporte e ao lazer, à profissionalização, à educação, à cultura, à dignidade, ao respeito e à convivência tanto familiar quanto comunitária. O ECA faz com que o Brasil, há 30 anos, reconheça as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos em condição de desenvolvimento, tornando-as prioridades absolutas do Estado brasileiro. Isso implica não somente no processo de proteção e de promoção dos mecanismos legais para a infância, mas também na criação de políticas públicas e na destinação privilegiada de recursos financeiros.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, que rompeu com a herança militar que ainda ecoava na jovem democracia brasileira, também segue as diretrizes da Convenção sobre os direitos da criança, que, adotada pelas Nações Unidas em 1989, que passou a vigorar em setembro de 1990. A convenção foi assinada por 196 países e é considerada o instrumento de direitos humanos mais aceito na história universal.
Entre os principais direitos assegurados pelo ECA, estão os cuidados desde o período gestacional até o primeiro emprego, perpassando esferas do convívio social e familiar, do acesso à educação ao esporte e à saúde, em uma rede de direitos indivisíveis. Além disso, o ECA também cria um sistema de garantia dos direitos e institui medidas protetivas e socioeducativas para atos infracionais cometidos por crianças ou adolescentes.
Na minha época não era assim
Ao longo dos 30 anos de sua existência, o Estatuto da Criança do Adolescente gerou transformações profundas na sociedade brasileira. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef Brasil), entre 1996 e 2017, a taxa nacional de mortalidade infantil caiu de 47,1 para 13,4 a cada mil nascidos vivos, salvando aproximadamente 827 mil vidas. Entre 1996 e 2006, a desnutrição crônica – medida pela baixa estatura da criança para a idade – caiu 50% no Brasil, passando de 13,4% para 6,7% das crianças menores de 5 anos. Já a desnutrição aguda (baixo peso em relação à altura) passou a ser registrada em apenas 1,5% delas.
Na área da educação, os avanços mais significativos foram na redução da porcentagem de crianças e adolescentes fora das escolas. Em 1990, quase 20% das crianças de 7 a 14 anos (idade obrigatória na época) estavam fora da escola. Em 2009, a escolaridade obrigatória foi ampliada para 4 a 17 anos, sendo que, em 2018, apenas 4,2% de 4 a 17 anos estavam fora da sala de aula. A taxa de crianças de 0 a 3 anos que passaram a frequentar creches entre 2010 e 2020 passou de 12,8% para 28,6%, de acordo com a Fundação Abrinq.
Com a promulgação do ECA, entre 1992 e 2016, 6 milhões de meninas e meninos ficaram livres do trabalho infantil. Apesar de comumente as pessoas atrelarem ao ECA a proibição de qualquer forma de trabalho para menores de 18 anos, a lei apenas estabeleceu parâmetros para o tratamento da relação entre crianças e adolescentes com o trabalho. De acordo com o Estatuto, apenas menores de 14 anos são proibidos de trabalharem – salvo em condição de aprendizes. Além disso, o ECA veda trabalho noturno, perigoso ou que ofereça danos à saúde e à vida, em locais prejudiciais ao desenvolvimento do adolescente e em horários que coincidam com o período escolar. Também é assegurada, pela legislação, a formação profissional adequada às crianças e aos adolescentes.
Asegurados por lei, mas nem sempre cumpridos na sociedade
Apesar dos avanços obtidos com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, muitos direitos ainda não são cumpridos e inúmeras dificuldades sociais colocam à prova uma sociedade mais justa e igualitária. 30 anos após a aprovação do ECA, milhões de meninas e meninos não têm acesso a todos os seus direitos no Brasil.
Em 2018, 2,6 milhões de estudantes de escolas estaduais e municipais foram reprovados no país. As populações preta, parda e indígena tiveram entre 9% e 13% de estudantes reprovados, enquanto, entre brancos, esse percentual foi de 6,5%, de acordo com dados do Unicef Brasil.
A pobreza afeta de forma mais expressiva as crianças, que estão concentradas nos 30% mais pobres da população. A exclusão atinge, em especial, crianças e adolescentes negros e indígenas.
Segundo a Pnad Contínua 2016, há mais de 2,4 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em situação de trabalho infantil no país – 64,1% são negros. Somente nas cidades-sede da UFSM (Santa Maria, Frederico Westphalen, Palmeira das Missões e Cachoeira do Sul), de acordo com o IBGE, em 2010, havia mais 1.220 crianças entre 10 e 13 anos trabalhando.
E ainda há a violência, indicador que vem piorando no Brasil nas últimas três décadas. Entre 1990 e 2017, os homicídios de adolescentes mais que dobraram no Brasil. Em 2018, houve uma pequena redução, mas os dados continuam altos: foram 9.781 meninas e meninos mortos, mais de um homicídio por hora no país – desses, 81% eram negros, conforme aponta o Unicef.
Os Direitos Humanos como elo principal entre a Extensão e a infância
A Extensão Universitária liga o conhecimento popular e o conhecimento científico através do intercâmbio de saberes entre a academia e a sociedade. Além disso, é um instrumento fundamental na formação de novos agentes socialmente comprometidos e que lutem pelos direitos básicos dos cidadãos. Diante dos avanços e das dificuldades encontradas na promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes, a Extensão é fundamental.
Quando o tema envolve crianças e adolescentes, o trabalho extensionista se desdobra em diversas faces: no apoio ao ensino e à aprendizagem, através de ações com professores, alunos e familiares; no atendimento em saúde e em campanhas de promoção do bem-estar; em convênios com instituições públicas e privadas que desenvolvam ações junto à infância; e na promoção da cultura e valorização do contexto no qual os menores estão inseridos.
Na UFSM, o principal elo entre a Extensão e os grupos vulneráveis é o Observatório de Direitos Humanos UFSM. “Desde 2018, o Observatório de Direitos Humanos (ODH) tem aberto um edital de fomento a Projetos de Extensão que atuem com pessoas em situação de vulnerabilidade social. Um dos eixos abrangidos pelo edital é justamente o da infância e adolescência, que vem sempre sendo o eixo populacional com o maior número de projetos contemplados”, ressalta o chefe do ODH, Victor De Carli Lopes.
O Observatório apoia o desenvolvimento de ações nos quatro campi da UFSM. Além do financiamento da atividade extensionista, o ODH é responsável por acompanhar alguns convênios e termos de cooperação assinados entre a UFSM e instituições públicas e privadas do Rio Grande do Sul. Um destes termos é com o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) e a Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE), que desenvolve Ações de Extensão com jovens que cumprem medidas socioeducativas nas unidades do sistema FASE de Santa Maria: o CASE e o CASEmi. Os projetos atuam para incentivar os processos de reinserção social dos adolescentes, abrangendo diversas áreas e contando com uma resposta muito positiva do público.
Outra ação desenvolvida junto ao Observatório é o Projeto Inspira. “A ação é um convênio [da UFSM] com a Polícia Federal e com a Superintendência de Serviços Penitenciários (SUSEPE), que, desde 2016, vem aproximando famílias separadas pelas condenações das mães – que cumprem pena no Presídio Municipal de Santa Maria. Esse momento de aproximação das famílias acontece três vezes por ano, uma em maio – próxima ao dia das mães-; uma em outubro – em referência ao dia das crianças -; e outra em dezembro, ensejada pelo natal. A única oportunidade que muitas dessas crianças têm de ver suas mães durante o ano é nesses encontros, carregando o espaço de uma sensibilidade incrível, onde se nota a importância desse vínculo para ambos os lados”, lembra Victor.
O Projeto Esperançado, ação criada em 2019 com apoio do Observatório, auxilia os adolescentes que estão em instituições de acolhimento em Santa Maria através da criação de redes de apoio e colaboração que possibilitem a conquista da autonomia desses jovens.
Os projetos apoiados pelo Observatório de Direitos Humanos da UFSM, bem como os convênios que ele participa e outras ações, você poderá conhecer ao longo da série de reportagens publicadas pela UFSM ou através do site do ODH.
A promoção dos direitos das crianças para além dos arcos
Para além das cidades que abrigam os campi da UFSM, a PRE também atua na promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes em outros territórios gaúchos. Através do projeto Geoparque Quarta Colônia, a instituição financia 30 Ações Extensionistas para o desenvolvimento local sustentável e a conservação do patrimônio dos nove municípios da Quarta Colônia – região central do Rio Grande do Sul.
Uma dessas ações é o projeto Geoparque vai à escola, que busca produzir kits pedagógicos para as escolas públicas do território. Além da produção de jogos e materiais com conteúdos de descobertas tanto científicas quanto históricas da região e de preservação ambiental, o projeto contribui para a qualificação profissional dos jovens – em especial na área do geoturismo – e no despertar do interesse desses alunos para atuarem na região.
Outra ação apoiada pelo projeto Geoparques, através do projeto Geoparque Caçapava do Sul, cidade histórica localizada ao sul de Santa Maria, é a ação Teatro e Comunidade. O projeto objetiva o enriquecimento cultural e intelectual da população do território, contribuindo para que, através de técnicas teatrais, os participantes da ação possam construir uma identidade expressiva e fortalecer os vínculos da comunidade com o seu patrimônio natural e cultural.
A rede de promoção dos direitos das Crianças e dos Adolescentes, mantida pela Extensão da UFSM, também tem parcerias internacionais. Uma delas é com o Coletivo Amarrações, que, criado em 2017, reúne pesquisadores de diversas universidades brasileiras, além de docentes da Colômbia, da Argentina e da França. A ação, que atua em rede nacional e internacional, dialoga com executores de políticas públicas dirigidas à juventude, promovendo não só novas perspectivas sobre o valor da vida juvenil, mas também rotas alternativas à violência urbana, à criminalidade e à mortalidade dos jovens.
Nos campi da Instituição, as Ações de Extensão são desenvolvidas em diversas áreas abordadas pelo ECA. Em Frederico Westphalen, o projeto Uso de tecnologias digitais na inclusão escolar de alunos surdos, apoiado pelo Edital Fiex 2019, busca a inclusão de alunos com deficiência nas atividades educacionais do ensino básico regular. No campus de Palmeira das Missões, mesmo antes da pandemia da covid-19, o projeto Também sou cientista integrava alunos do ensino fundamental e discentes dos cursos de graduação da UFSM PM, aproximando conhecimentos sobre os microrganismos e sua relação com a saúde.
Em Cachoeira do Sul, a ação Pedala Kids vem promovendo a interação de crianças com a mobilidade e o espaço urbano, contribuindo para a sua formação cidadã através de atividades não apenas lúdicas em sala de aula, mas também práticas, com base no uso de bicicletas. Já no campus de Santa Maria, o projeto Anemia na Infância objetiva reduzir as taxas de anemia e de parasitoses em crianças do primeiro ano do ensino básico de escolas públicas do município de Santa Maria; e o projeto Adote Ação Politécnico, que, referenciado pelo artigo 62 do Estatuto da Criança e do Adolescente, visa à formação profissional de jovens que estejam em acolhimento institucional em Santa Maria.
Além de ações na sociedade, a Extensão da UFSM também mantém espaços de divulgação científica e de relacionamento com a sociedade, como o Museu Educativo Gama D’Eça, o Planetário UFSM e a Antiga Reitoria. Esses espaços, além de receberem visitantes, são casas de Ações Extensionistas desenvolvidas com diversos públicos. Uma dessas Ações é fruto da parceria com a Associação Orquestrando Arte, que tem como objetivo a promoção da assistência social, educacional e cultural de crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade e/ou risco social.
Saiba mais sobre o papel da Extensão nos 30 anos do ECA
Para comemorar os 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e o papel da Extensão neste cenário, a Pró-Reitoria de Extensão UFSM convida você a conhecer mais sobre as Ações desenvolvidas pela instituição nas quatro cidades que abrigam os campi da Universidade. Ao longo do mês de outubro, você conhecerá um pouco mais das atividades apoiadas pela PRE na luta pela efetivação dos direitos básicos dos cidadãos menores de 18 anos.
Desse modo, queremos que você também faça parte dessa rede extensionista que está preocupada com o presente e com o futuro de nossas crianças e de nossos adolescentes.
Reportagem e produção: Wellington Felipe Hack/PRE UFSM
Apoio de produção: Rubens Santos e Bernardo Abbad/ PRE UFSM e Observatório de Direitos Humanos.
Revisão: Erica Medeiros/PRE UFSM
Edição: Aline Saldanha/PRE UFSM
Social Media: Carla Ernesto/PRE UFSM
As ações de Extensão apresentadas neste texto atendem aos seguintes Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Acesse as imagens para saber mais sobre cada um deles.