Deméter, a deusa da agricultura e do ciclo da vida, desolada com o sequestro de sua filha (Perséfones) pelo deus do inferno (Hades), secou a terra e tornou o solo improdutivo. Quando a vida sobre o planeta estava quase extinta, Zeus mandou seu mensageiro para resgatar Perséfones. Hades, astuto como um deus que é, obrigou a prisioneira a comer uma romã antes de a libertar. Desse modo, Perséfones ficou prisioneira eterna de Hades e, durante um período do ano, ela é obrigada a retornar ao inferno. Nesse período, a tristeza de Deméter assola o planeta novamente, deixando a terra infértil — nós chamamos esse período de inverno.
Ana Primavesi — agricultora, professora e mãe da agroecologia no Brasil — talvez tenha conhecido outro Hades, que raptou seus dois irmãos para a morte, seu pai como refém inglês e tornou o solo europeu estéril. O Hades de Ana Primavesi foi a Segunda Guerra Mundial, talvez um dos motivos de sua mudança da Áustria para o Brasil em 1948. Apaixonou-se pelo solo durante seus estudos na Universidade Rural para Agricultura e Ciências Florestais, ainda na Áustria. Aos 22 anos tornou-se mestra. Aos 28 mudou-se para o Brasil.
Casada com Arthur e trazendo seu filho mais novo (Odo), Ana Primavesi passou pelo Rio de Janeiro, por São Paulo e por Minas Gerais. Nas terras mineiras nascem Carin e Arturzinho, seus dois filhos mais novos. Novamente mudando-se para a capital paulista, Ana recebe o convite de Mariano da Rocha para lecionar na Universidade de Santa Maria. Aceita o convite e muda-se para o Sul do Brasil.
Quando a Universidade de Santa Maria, após muitas lutas, torna-se, enfim, a primeira universidade pública fora de uma capital brasileira, Ana Primavesi já fazia extensão com toda a magnitude que merecia. Criou a primeira animação sobre solos do mundo, mostrando, em forma de longa-metragem, as dinâmicas da terra. A primeira exibição do longa foi durante o 2º Congresso Latino-Americano de Biologia e Microbiologia, realizado, em Santa Maria no ano de 1968, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
Ana Primavesi também foi uma das fundadoras do programa de Pós-Graduação em Biodinâmica do Solo, 1971, quando os programas de pós-graduação no país eram escassos e mal-distribuídos. Certamente, Ana, que vivenciou o Hades humano devastando os solos na europa da Segunda Guerra, tinha a preocupação de que, no país tropical, o solo fosse tratado com o respeito que merecia.
Escreveu inúmeros textos que até hoje servem como referência mundial para os estudos do solo. Seu livro Manejo Ecológico do Solo revolucionou a agroecologia tropical. Na obra, Ana coloca a sua principal preocupação: a vida em equilíbrio com os solos — uma questão tratada há três décadas, mas que permanece atual.
Ana também fundou várias organizações voltadas à agricultura, como a Associação de Agricultura Orgânica (AAO) e o Movimento Agroecológico Latinoamericano (MAELA). Em 2012, Ana Primavesi ganhou o One World Award, prêmio concedido pela Federação Internacional de Movimentos pela Agricultura Orgânica (IFOAM, em inglês). Ana Primavesi revolucionou o contato do homem com a terra e nos deixou ontem, 04 de janeiro de 2020, aos 99 anos. À doutora Ana, os eternos agradecimentos da Pró-Reitoria de Extensão da UFSM.
Assim como Deméter ensinou o homem a cuidar da terra, Ana veio com o mesmo objetivo. E enquanto a deusa chora o período longe de sua filha, Ana Primavesi tenta amenizar esse sofrimento mostrando para os seres humanos que, sem cuidado com o solo, nada é possível.
Texto: Wellington Hack/ Pró-Reitoria de Extensão
Revisão Textual: Erica Medeiros/Pró-Reitoria de Extensão
Foto: Arquivo Pessoal