O 19 de abril amanhece como qualquer outro dia para os que vivem onde a mata respira mais alto que o concreto. Não há pausa, não há festa. Há vida que insiste. Há corpos que permanecem mesmo quando tudo ao redor tenta apagá-los. No calendário oficial, é o Dia dos Povos Indígenas. No chão da floresta, é apenas mais um dia de luta para continuar existindo. Enquanto nas cidades a data se repete como um gesto automático, às vezes lembrada com cartazes nas escolas ou com cocares de cartolina. Nas aldeias, ela atravessa como uma pergunta não respondida: o que vale um dia quando o restante do ano é invasão, é violência, é esquecimento? A floresta não celebra. Ela observa e sussurra verdades que poucos querem ouvir.
Em um país fundado sobre o apagamento, o que significa dedicar um dia aos povos originários? O que se celebra quando ainda se nega? Quantas escolas urbanas param para dizer às crianças que os primeiros brasileiros ainda estão aqui, vivos e ameaçados? São muitas perguntas e poucas pessoas procurando por respostas.
“Nós, habitantes da floresta, não maltratamos a Terra. Não desmatamos a floresta sem medida. Toda essa destruição não é nossa marca, é a pegada dos brancos, o rastro de vocês na terra. É isso que queremos falar.” diz Davi Kopenawa Yanomami, xamã e líder político yanomami. Ele não acusa, revela a ferida aberta que tantos insistem em negar, com a calma dos que já viram o tempo passar em ciclos e não em relógios. Hoje, a luta continua mais complexa, talvez, mas tão brutal quanto sempre foi. Grileiros, garimpeiros, políticos com discursos envernizados de progresso. Homens engravatados que falam em “desenvolvimento” com a mesma boca que recusa a demarcação. Enquanto isso, indígenas seguem sendo assassinados, suas terras invadidas e seus corpos silenciados.

Enquanto o planeta pede por soluções diante do colapso climático, são justamente os povos indígenas, há séculos silenciados, que sustentam um conhecimento profundo sobre equilíbrio ecológico, ciclos naturais e convivência com a natureza. Não se trata apenas de proteger culturas ameaçadas, mas de reconhecer que essas culturas carregam chaves para outras formas de habitar o planeta. Numa encruzilhada civilizatória, onde o conhecimento acadêmico parece não bastar para conter a devastação, o diálogo com os saberes indígenas surge como um caminho urgente e talvez o mais promissor para construir alternativas sustentáveis e regenerativas.
A emergência climática não começou agora. Para os povos indígenas, o fim do mundo já vem acontecendo há mais de cinco séculos a cada árvore tombada, a cada rio envenenado, a cada palavra interditada. Mas eles seguem. Não como sobreviventes parados, mas como guardiões de um outro futuro possível. A educação indígena, nesse contexto, não é só um direito ou uma política pública é um ato de existência e resistência. E talvez seja também a chave que nos falta para reaprender a viver no planeta sem destruí-lo.
Povos Indígenas no Brasil
O Censo Demográfico 2022, realizado pelo IBGE com apoio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), registrou 1.693.535 indígenas no Brasil, representando 0,83% da população total. Esse número cresceu 88,82% em relação a 2010, quando eram 896.917 indígenas. O aumento se deve tanto a mudanças metodológicas quanto à maior reivindicação da identidade indígena.
Mais da metade (51,25%) dos indígenas vivem na Amazônia Legal. A região Norte concentra 44,48% dessa população (753.357 pessoas) e o Nordeste, 31,22% (528,8 mil). Os estados com maior número de indígenas são Amazonas (490,9 mil) e Bahia (229,1 mil), que juntos somam 42,51% do total. Roraima, apesar de ter o quinto maior número absoluto, é o estado com maior proporção de indígenas (15,29% da população local).
Dos 5.570 municípios brasileiros, 4.832 têm pelo menos um residente indígena (86,7%). Os três com maiores números absolutos são Manaus (71,7 mil), São Gabriel da Cachoeira (48,3 mil) e Tabatinga (34,5 mil), todos no Amazonas. Municípios como Uiramutã (RR) e Santa Isabel do Rio Negro (AM) têm os maiores percentuais relativos de indígenas (acima de 96%).
Em 2022, o Brasil tinha 630.041 domicílios com ao menos um indígena (0,87% do total de domicílios). Destes, 21,79% estavam em Terras Indígenas e 78,21% fora delas. A média de moradores nesses domicílios era superior à média nacional: 4,6 pessoas em Terras Indígenas e 3,37 fora delas, contra 2,79 no total do país.

Desde 1991, o IBGE inclui a categoria “indígena” em seus questionários, mas avanços significativos só ocorreram a partir do Censo de 2010, com melhorias metodológicas e maior visibilidade estatística para essa população. Esses dados são fundamentais para orientar políticas públicas e garantir direitos constitucionais aos povos indígenas.
Vinte anos de APIB
Em 2025, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) celebra 20 anos de luta e mobilização pelos direitos originários garantidos na Constituição de 1988, como território, autodeterminação, cultura e políticas públicas específicas. Criada durante o Acampamento Terra Livre (ATL), a APIB se consolidou como referência nacional do movimento indígena, que hoje ocupa espaços no Governo Federal. No entanto, representação sem estrutura não é suficiente: é urgente garantir orçamento, autonomia e respeito à diversidade dos povos indígenas.
O cenário político atual, marcado pelo avanço da extrema-direita, representa sérias ameaças aos direitos indígenas. No STF, a criação da Câmara de Conciliação, sem consulta à APIB, e o novo anteprojeto de lei proposto pelo ministro Gilmar Mendes fragilizam garantias constitucionais, como o direito à consulta prévia e à demarcação. No Congresso, propostas como as PECs do Marco Temporal (48) e da indenização da terra nua (132), além da CPI contra a demarcação, tentam anular conquistas históricas. Durante o 21º ATL, em 2025, mais de 8 mil indígenas marcharam pacificamente em Brasília, sendo recebidos com violência policial, inclusive contra a deputada Célia Xakriabá, vítima de racismo e violência política.
Diante da emergência climática, os povos indígenas reafirmam seu papel como guardiões da Terra e da Constituição. Seus saberes tradicionais, expressos na agroecologia, na gestão coletiva dos territórios e na espiritualidade, oferecem caminhos concretos para regeneração do planeta. No ATL 2025, foi lançada a Comissão Internacional Indígena para a COP30, articulada com o Caucus Indígena, como espaço de protagonismo indígena nos fóruns globais.
Ailton Krenak e o chamado para adiar o fim do mundo
Entre as vozes indígenas que se projetaram para além de suas aldeias, levando seus saberes para universidades, parlamentos e praças públicas, está Ailton Krenak. Líder indígena, ambientalista, escritor brasileiro do povo krenak e Imortal da Academia Brasileira de Letras. Pode-se dizer que Krenak tem sido uma das figuras mais relevantes do Brasil contemporâneo no debate sobre a crise civilizatória e ecológica. Em suas falas e livros como “Ideias para adiar o fim do mundo”, “A vida não é útil” , “O amanhã não está à venda” e “Futuro ancestral”, Krenak propõe uma ruptura radical com o modelo ocidental de desenvolvimento, que ele aponta como insustentável e destrutivo.

Para Krenak, a emergência climática não é apenas uma questão técnica ou científica, mas um sintoma de uma doença mais profunda: o rompimento entre o ser humano e a Terra. “Nós descolamos da natureza, nos separamos do rio, da montanha, da floresta, e passamos a nos ver como algo à parte do mundo”, afirma. Seu pensamento nos convida a reconhecer que o planeta não é um recurso a ser explorado, mas um organismo vivo do qual fazemos parte e do qual dependemos.
Além disso, Krenak denuncia a ideia de humanidade como um conceito excludente, que historicamente deixou de fora os povos indígenas, os negros, os pobres e os ribeirinhos. Para ele, o que chamamos de humanidade é, muitas vezes, apenas uma parcela dela: a que colonizou, explorou e devastou. Adiar o fim do mundo, nesse sentido, é também construir outros mundos possíveis, onde caibam todas as formas de vida, todos os modos de existência.

Krenak nos ensina que resistir não é apenas sobreviver, mas continuar sonhando e plantando esses sonhos na terra, como quem acredita que ainda há futuro.
Educação indígena como saída a crise ambiental
A educação indígena surge como uma alternativa necessária para enfrentar as múltiplas crises ambientais que o planeta atravessa. Mais do que um conjunto de práticas pedagógicas, ela representa uma cosmovisão, um modo de entender o mundo baseado no equilíbrio entre o ser humano e a natureza. Esse modelo educativo traz consigo um profundo respeito pelos ciclos naturais, pela biodiversidade e pelos saberes ancestrais que orientam o uso sustentável dos recursos.
Ao contrário do paradigma ocidental dominante, que historicamente promoveu a exploração intensiva da natureza com fins econômicos, os povos indígenas têm cultivado, por milênios, formas de convivência harmônica com o meio ambiente. A educação indígena não dissocia o ser humano do seu território: ela integra o saber local, a oralidade, as experiências práticas e espirituais, formando cidadãos com senso de coletividade, responsabilidade ambiental e pertencimento.
Inserir esses saberes nos currículos escolares, respeitando a autonomia e as línguas originárias, amplia a compreensão sobre o que é sustentabilidade verdadeira. Essa abordagem pode oferecer caminhos concretos para o combate ao desmatamento, à degradação de biomas e à crise climática, através da valorização de práticas agrícolas regenerativas, da proteção de mananciais, e da preservação de sementes nativas, por exemplo. Num momento em que os efeitos da crise climática se intensificam, pensar a educação indígena é também repensar o modelo de mundo que escolhemos seguir.
Neste dia 19 de abril é importante refletir sobre o tipo de celebração que fazemos, ao tratar esta data como algo folclórico, com encenações, que servem mais para lavar a culpa colonial do que para reconhecer a potência da diversidade indígena. Inclusive, você sabia que existem mais de 300 povos e mais de 270 línguas indígenas no país? O Dia dos Povos Indígenas, então, não deveria ser um dia de homenagens vazias. Mas sim, de escuta ativa. De reverência. De rever o que somos. Porque, no fundo, não é sobre eles. É sobre todos nós, porque eles sempre estiveram aqui.
Por Franchesco de Oliveira Y Oliveira.
Dica de Podcast
Ouça o podcast da Agência Pública, “Especial Mundo em colapso com Ailton Krenak, Carlos Nobre e Daniela Chiaretti”
Fontes:
ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). A resposta somos nós: vinte anos de APIB e a emergência climática. 11 abr. 2025. Disponível em: https://apiboficial.org/2025/04/11/a-resposta-somos-nos-vinte-anos-de-apib-e-a-emergencia-climatica/. Acesso em: 17 abr. 2025.
FUNDAÇÃO NACIONAL DOS POVOS INDÍGENAS (FUNAI). Terras Indígenas: dados geoespaciais e mapas. Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br/atuacao/terras-indigenas/geoprocessamento-e-mapas. Acesso em: 17 abr. 2025.
FUNDAÇÃO NACIONAL DOS POVOS INDÍGENAS (FUNAI). Página institucional. Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br. Acesso em: 17 abr. 2025.
KEREXU, Juliana; JULIÃO, Cristiane. Emergência climática: povos indígenas chamam para a cura da Terra! [Material da Semana dos Povos Indígenas]. Português. 32 p., 2024.
NEXO JORNAL. Como a mudança do clima afeta os povos indígenas no Brasil. 26 abr. 2023. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2023/04/26/como-a-mudanca-do-clima-afeta-os-povos-indigenas-no-brasil. Acesso em: 17 abr. 2025.