
Para muitas pessoas, o real status da ilha caribenha de Porto Rico ainda é desconhecido, assim como sua história. A fim de expor a luta do povo boricuo contra o sufocamento de sua identidade, o cantor porto-riquenho Bad Bunny lançou, em janeiro deste ano, o álbum “Debí tirar más fotos” (em tradução do espanhol para o português: “Devia ter tirado mais fotos”).
O projeto acompanha um curta-metragem e aborda as mudanças do arquipélago em tom nostálgico. Repleta de identidade latinoamericana, a obra possui 17 faixas e passa por alguns dos gêneros musicais mais populares na ilha, como o reggaeton e a salsa.
Suas letras românticas e melancólicas, como a da faixa “Baile Inolvidable”, trazem consigo uma denúncia sobre o apagamento cultural da ilha, tema principal do curta-metragem. A produção é protagonizada por um idoso, vivido pelo ator Jacobo Morales, e seu amigo, o sapo Concho. Ao andar pela ilha, o senhor observa mudanças culturais como a substituição do espanhol pelo inglês, o uso do dólar e o consumo de músicas norte-americanas. Isso gera o sentimento de que ele deveria ter guardado mais lembranças da ilha antes de seu “declínio cultural”.
Os temas abordados no álbum
Benito Antonio Martinez Ocasio, mais conhecido como Bad Bunny, nasceu na capital porto-riquenha San Juan em 10 de Março de 1994. Desde 2018, quando lançou seu primeiro álbum “X 100PRE”, o artista é um dos principais nomes da música latina. Mas foi com o projeto “Un verano sin ti” que ele se consolidou no cenário musical falando sobre problemas de seu país.
Antes de “Debi tirar mas fotos”, Bad Bunny já falava sobre as causas de Porto Rico em seus trabalhos. Em 2022, ele lançou um videoclipe em formato de documentário da música “El apagón” do álbum “Un verano sin ti”. Tanto a música como o videoclipe denunciam os apagões de energia elétrica frequentes na ilha.
Agora, com um álbum inteiro dedicado à valorização da identidade cultural porto-riquenha, o cantor dá destaque às expressões culturais da ilha. Os títulos de faixas como “KLOuFRENS” e “NUEVAYoL”, por exemplo, podem soar estranhos à primeira vista, mas fazem referência à pronúncia boricua de Close Friends e Nueva York.
Já faixas como “DtMF” e “Lo que paso a Hawaii” falam diretamente sobre o resgate da identidade das pessoas daquela região. Na primeira, Bad Bunny fala que deveria ter tirado mais fotos de como a ilha era antes e também sobre seu desejo pelo resgate cultural do país. Na segunda, o cantor faz uma comparação entre Porto Rico e o estado americano do Havaí.
Na faixa, Benito fala que não quer que aconteça em Porto Rico o mesmo que aconteceu com a ilha do Pacífico. O Havaí também foi anexado aos EUA em 1898 e obteve o status de estado em 1959. A música denuncia as privatizações de praias e ilhas do país para grandes empresas hoteleiras que restringem o acesso dos nativos de Porto Rico.O mesmo processo foi sofrido pelo Havaí.
“Querem me tirar o rio e também a praia
Querem o meu bairro e que a vovó vá embora
Não, não solte a bandeira e nem esqueça o ‘lelolai’
Porque não quero que façam contigo o que fizeram com o Havaí”
– Trecho em livre tradução da letra de “Lo que paso a Hawaii”.
Denúncias como essa também aparecem na faixa “La Mudanza”. Na música, o artista conta a história de seus pais e utiliza o verso “Aqui mataram gente por mostrar a bandeira” para referenciar a repressão histórica do governo contra os levantes independentistas. Outros versos como “Obrigado mãe por me parir aqui” e o clímax de “Eu sou de P-R” evidenciam o amor de Benito pelo seu país e cultura.
“Daqui eu não saio, daqui ninguém me tira
Fale para eles que esta é a minha casa, onde o meu avô nasceu”
– Trecho em livre tradução da letra de “La Mudanza”.
O resgate da identidade cultural de Porto Rico se consagra como a principal temática do projeto. Bad Bunny abre espaço para a discussão de como a dominação cultural pode ser tão nociva quanto a política e econômica. O cantor põe em evidência o livre exercício das culturas populares, principalmente nos países subdesenvolvidos, como agente de resistência à dizimação cultural de um povo.
A história da ocupação porto-riquenha

O território de Porto Rico foi ocupado pelo exército norte-americano em 1898, como consequência da guerra hispano-americana. Em entrevista à BBC News Brasil, a professora da Universidade de Porto Rico, Sílvia Curbelo, afirmou que, inicialmente, a invasão americana foi comemorada pelo povo porto-riquenho. “A Espanha significava atraso, enquanto os EUA significavam modernidade, inovação e democracia”, explicou.
Os EUA usurparam do império espanhol as poucas colônias que lhe restavam na América. Um armistício que previa a independência de Cuba e a retirada da Espanha de Porto Rico foi assinado com o fim do conflito. A ilha permaneceu ocupada até 1902 pelos americanos.
A ocupação de Porto Rico e a construção do Canal do Panamá eram os principais objetivos dos EUA no continente, em uma época em que as guerras eram travadas no mar. Em 1902, o Tratado de Paris que vendeu as Filipinas, então colônia espanhola, aos americanos também deu o status de república (não independente) a Porto Rico.
Curbelo destaca que a ocupação da ilha se dá pela sua localização no chamado “corredor mexicano” no Caribe. Portanto, um território essencial para a garantia do acesso americano ao Canal do Panamá que interliga os oceanos Atlântico e Pacífico.
Entretanto, os levantes pela independência da ilha aconteciam desde a ocupação espanhola. A instauração de governos militares, o uso da espionagem e da repressão policial foi como o governo estadunidense lidou com a situação. Táticas semelhantes às demais ditaduras que seriam impostas na América Latina mais tarde.
Um caso interessante ocorreu em 1954, quando os atos pela independência superaram os limites da ilha. A líder nacionalista porto-riquenha Dolores Lebrón Sotomayor (1919-2010), conhecida também como Lolita Lebrón, liderou um ataque a tiros contra o congresso americano. O ataque deixou 5 feridos e rendeu 25 anos de prisão nos Estados Unidos a ela e outros ativistas envolvidos.
Lolita foi solta em 1979 por um indulto concedido pelo ex-presidente estadunidense Jimmy Carter. Em 1997, 43 anos após o atentado, ela retornou ao Capitólio como presidente do Partido Nacionalista de Porto Rico, em um comitê onde defendeu que o ocorrido de 1954 “não foi um ato de ódio, foi o terceiro grito de liberdade de um povo ameaçado de extinção”.
Atualmente, a ilha possui o status de Estado Livre Associado aos Estados Unidos. Uma situação que divide opiniões de seus populares que pensam em três alternativas para o futuro: manter a condição atual, se oficializar como o 51° estado norte-americano ou finalmente se tornar uma nação independente.
Acontecimentos recentes
Há poucos meses, durante a eleição americana, o humorista Tony Hinchcliffe chamou Porto Rico de “ilha de lixo” em um evento do então candidato Donald Trump. “Há literalmente uma ilha de lixo flutuante no meio do oceano neste momento. Acho que se chama Porto Rico”, disse ele em tom de piada. A declaração provocou reações de porto-riquenhos.
O cantor Ricky Martin, nascido em Porto Rico, postou o vídeo da declaração e escreveu: “é isso o que eles pensam de nós”. Já Jennifer Lopez, filha de pais porto-riquenhos, se pronunciou declarando apoio à candidata Kamala Harris. E, finalmente, Bad Bunny postou um vídeo de seu show em Porto Rico de 2021 e escreveu como legenda: “lixo”.
O ocorrido não impediu a eleição de Jennifer González, integrante do Novo Partido Progressista de Porto Rico (PNP) e apoiadora de Donald Trump, como governadora da ilha. Em Setembro de 2024, Bad Bunny acusou o PNP de tentar silenciá-lo após se manifestar contra os escândalos de corrupção de seus governos. Na ocasião, ele afirmou que muitos meios de comunicação são controlados pelo partido.
O futuro de Porto Rico parece incerto, mesmo com a vitória de Gonzales na última eleição, foi a primeira vez que um candidato do Partido da Independência de Porto Rico teve chances reais de vencer. Agora, os olhos se voltam para Washington, onde as agressões aos povos latinos têm avançado. E no meio de tudo, Bad Bunny deixa claro que, se depender dele, a identidade boricua nunca vai morrer.

Thomas Machado
Thomas Machado
Repórter do Gritos do Silêncio, estudante de Jornalismo pela UFSM. Contato: thomas.souza@acad.ufsm.br
Revisão: Camila Castilho, repórter do Gritos do Silêncio, estudante de Jornalismo pela UFSM. Contato: camila.castilho@acad.ufsm.br