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[GRITOS DO SILÊNCIO] O Brasil de volta ao mapa (da fome)

A relação da pandemia e dos aspectos do governo Bolsonaro com o aumento da fome e da insegurança alimentar no país



Uma imagem de fundo vermelho. No centro tem um prato de comida vazio, com um rosto triste desenhado.

“O que vai ter de janta? Não sei, meu filho”. Não é incomum que esse diálogo seja repetido em centenas de lares brasileiros. Em agosto de 2022, a Globo News publicou uma reportagem especial com relatos de pessoas que sofrem com a insegurança alimentar grave no Brasil. Nela, o repórter cinematográfico Joelson Maia reuniu algumas histórias de pessoas que perderam sua renda e passaram a viver em situação de incerteza quanto às suas refeições.

Uma das histórias abordadas foi a de Cássia de Souza, moradora da favela Sol Nascente, local onde 79,94% dos domicílios são próprios em terrenos não regularizados, no Distrito Federal. Naquele momento, Cássia estava desempregada e vivia com seus filhos e sua mãe, também desempregada. Em um trecho da reportagem, ela conta sobre a carência de diferentes refeições e a dificuldade de acesso a uma renda regular: “Todo dia é arroz e feijão, raramente tem um ovo ou uma carne. A gente não tem como comprar porque hoje tudo está caro. Eu queria ter um emprego fixo, assim a gente poderia comer algo diferente e não só arroz e feijão”.

A realidade de Cássia e sua família não é única. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) define a insegurança alimentar como uma situação de irregularidade no acesso a alimentos de qualidade e suficientes para uma nutrição adequada. De acordo com o relatório sobre o Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI), publicado em 2023, pela FAO, o Brasil possui 20,1 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, 9,9% da população. O levantamento revelou, ainda, que 70,3 milhões de brasileiros, ou seja 32,8% da população, estavam em estado de insegurança alimentar moderada, em 2022.

Segundo o mesmo documento, em 2014, o Brasil havia saído do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas. Os dados revelaram que, de 2002 a 2013, caiu em 82% a população de brasileiros considerados em situação de subalimentação, estado de insuficiência alimentar e prejudicial à saúde. Na época, a FAO destacou alguns aspectos eficazes na política de combate à fome no país, como o aumento da oferta de alimentos e da renda dos mais pobres com o crescimento real do salário mínimo, a geração de empregos e a criação do programa do Governo Federal de Acesso à Renda. No entanto, o país retornou a um cenário no qual a insegurança alimentar é grave.

Bolsonaro e a pandemia

Em 2019, no seu primeiro ano de governo, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) extinguiu, por meio da Medida Provisória 870, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão instituído em 1993 no governo de Itamar Franco. O conselho foi idealizado para atuar no combate à fome no país com a elaboração de políticas públicas e coordenação dos Conselhos Municipais de Segurança Alimentar (Comsea).

Para a professora do Departamento de Alimentos e Nutrição da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no campus Palmeira das Missões, Adriane Cervi Blümke, a extinção do Consea representou um retrocesso às políticas de combate à fome no Brasil. “Isso trouxe um impacto obviamente muito significativo, porque houve uma falta de articulação entre os outros setores que trabalham no combate à fome, como o setor da saúde, da agricultura e da educação, por exemplo. O Consea Nacional era responsável pelo planejamento e objetivos no combate à fome de 4 em 4 anos. Então o fato de ter sido extinto em 2019, a gente ficou sem esse plano justamente num período extremamente crítico, que foi a pandemia”, ainda explica Blümke.

Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), desde 2020  –  início da pandemia de Covid-19 -, o número de indivíduos na condição de insegurança alimentar leve, moderada e grave, aumentou em 7,2%. A professora do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSM, Rita Ines Paetzhold Pauli reflete sobre o retorno do Brasil ao Mapa da Fome. “Quando o Brasil entra novamente no Mapa da Fome é porque houve a retração de políticas públicas ou um governo que não deu a devida importância para a questão, mas claro que muitas vezes também temos o problema das crises econômicas, como a crise mundial em 2008”, afirma. 

Para a professora, esse regresso tem a ver com desmonte de políticas públicas, principalmente no período pandêmico, quando houve demora na resposta do governo Bolsonaro na elaboração de medidas. Devido a esse cenário, em fevereiro de 2023, o presidente da república, Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto que reinstalou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

Distribuição de renda e o acesso a alimentação

De acordo com Pauli, o Brasil é visto como um “celeiro”. “Do ponto de vista do nosso desenvolvimento na agricultura, sempre se pressupõe que no Brasil não deveria haver fome, pois nós produzimos e exportamos muito. O problema da fome e da insegurança alimentar não tem sempre a ver com a possibilidade de oferta, mas sim com dificuldade na acessibilidade de renda”, explica.

A economista ainda aponta que a fome é uma consequência do sistema econômico capitalista, vigente na maioria dos países do mundo, inclusive no Brasil. “A gente não consegue reduzir totalmente, por exemplo, o desemprego. Ele é uma categoria do capitalismo que não vai ser extinta. O nosso governo já consolidou o Seguro Desemprego, porque já existe o reconhecimento de que sempre terá uma parcela da população desempregada, o mesmo funciona para a questão da fome, ela sempre vai existir, porque a fome é uma categoria do capitalismo”, elucida Pauli.

Conforme Blümke, é preciso garantir a segurança alimentar da população brasileira por meio de investimentos em equipamentos públicos, ou seja, mecanismos de acesso à alimentação adequada, como bancos de alimentos, restaurantes populares e cozinhas comunitárias. Entretanto, essas ferramentas não funcionam isoladamente, sem que haja uma ação conjunta dos outros setores sociais. “Em lugares onde o centro fica distante dos bairros periféricos, por exemplo, uma passagem de ônibus acessível é essencial para que as pessoas tenham acesso aos bancos de alimentos, às cozinhas, entre outros. É importante fazer essa coordenação para facilitar o acesso à população, não só uma parcela”, exemplifica Blümke.

Qualidade do alimento e consequências à saúde

Por muitos anos, a principal preocupação no combate à fome era a falta de recursos. No entanto, a qualidade nutricional dos alimentos acabou sendo negligenciada. Blümke alerta sobre as consequências de uma alimentação irregular e desbalanceada à saúde da população: “Existem sim efeitos negativos no desenvolvimento, no crescimento, no desenvolvimento cognitivo. Pensando nessa dimensão de saúde física e mental, a gente vai ter uma uma repercussão notável daqui alguns anos”.

“Hoje, vivemos num cenário não apenas de fome, mas de um acesso a uma alimentação totalmente desqualificada, por estarem mais disponíveis os alimentos ultraprocessados. Nos mercados mais periféricos, por exemplo, os produtos mais industrializados são os mais consumidos, já que a população dessas localidades, muitas vezes, não possui conhecimento sobre as consequências do consumo desse tipo de alimento”, acrescenta Blümke.

No Brasil, a agricultura familiar contribui para o fornecimento de alimentos mais saudáveis para a população. Segundo levantamento do IBGE, a agricultura familiar é responsável por cerca de 70% dos alimentos consumidos no país. “A agricultura familiar produz para as novas demandas urbanas que querem alimentos orgânicos e mais ecológicos. Isso permite uma acessibilidade da população a esse nicho de mercado que busca por esses alimentos livres de agrotóxicos, por exemplo”, conclui Pauli.

Embora muitos agricultores familiares busquem uma produção mais sustentável e livre de agrotóxicos, nem toda a agricultura familiar no Brasil é isenta desses produtos químicos. Diversos produtores ainda utilizam agrotóxicos devido a questões de custo, acesso a informações, pressão por altos rendimentos ou falta de alternativas viáveis para lidar com pragas e doenças. Em 2022, por exemplo, foram importadas 283 mil toneladas de agrotóxicos, conforme o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Pedro Pagnossin

Repórter do Gritos do Silêncio, estudante de Jornalismo pela UFSM. Contato: pedro.moro@acad.ufsm.br

Foto: Acervo de imagens sem copyright.

Revisão: Kemyllin Dutra, repórter do Gritos do Silêncio, estudante de Jornalismo pela UFSM. Contato: kemyllin.dutra@acad.ufsm.br

Publicação: Elisa Bedin, repórter do Gritos do Silêncio e estudante de jornalismo pela UFSM. Contato: elisa.bedin@acad.ufsm.br

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