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A morte não é um medo da enfermeira Martha Azevedo. Com 32 anos, ela comunicou à família o destino que deseja para seu corpo: a doação aos laboratórios e salas de aula do Departamento de Morfologia da UFSM. A profissional de saúde é uma das 54 inscritas no Programa de Doação Voluntária de Corpos, que registra um crescimento de 40% após a pandemia.
No Brasil, há 39 programas semelhantes. O Rio Grande do Sul concentra uma em cada quatro iniciativas no país. São dez espalhadas pelo Estado. A UFSM tem o quinto programa de doação mais antigo do Estado. Criada em 2016 para estudos e pesquisas, a iniciativa auxilia na formação acadêmica de mais de mil alunos por ano. Desde a fundação do projeto, 11 corpos foram doados e 54 intenções foram formalizadas.
Comunicar em vida o desejo de doar o próprio corpo é uma prática assegurada por lei desde 2002. O texto diz, no artigo 14, que “É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte”. Martha fala que o desejo de ser doadora surgiu durante a graduação em enfermagem, há seis anos: “Ter contato com um corpo foi essencial para minha formação. Fiquei pensando em uma forma de retribuir o gesto de quem já se foi, e também poder ajudar outros alunos assim como eu”, contou a enfermeira.
Crescimento de doadores
As intenções de doação cresceram na UFSM até 2019, mas foram prejudicadas com o início dos casos de Covid-19. Em 2020, o programa não recebeu nenhuma declaração. No entanto, o número aumentou depois de 2021 e chegou a sete em 2023, uma alta de 40% com o fim da pandemia. No primeiro semestre deste ano, o departamento recebeu cinco documentos.
Mais da metade das pessoas que manifestam formalmente a vontade têm idade superior a 40 anos e cerca de 60% são mulheres. No entanto, não há um perfil socioeconômico definido dos doadores, como informa o professor Carlos Eduardo Seyfert, coordenador do programa. “Tivemos, por exemplo, pessoas que são gratas à ciência, por serem curadas de câncer ou doença rara. Outros simplesmente querem encontrar uma forma de continuar sendo úteis após a morte”, afirmou.
A terapeuta Marisa Zuse, 54, é outro exemplo. Ela já comunicou à família sobre o desejo de destinar seu corpo à ciência. Residente em Santa Maria, tomou a decisão após um encontro com familiares, quando um estudante de Medicina comentou sobre os programas que existiam. “Na mesma hora já decidi. Posso contribuir de alguma forma. Quero ser útil”, completou.
O que é feito com os corpos?
Os corpos que chegam no Departamento de Morfologia do Campus de Santa Maria passam por um processo de fixação. A etapa inclui formol ou salmoura para evitar a decomposição. Cerca de seis meses após a aplicação do produto, o corpo poderá ser usado.
Os materiais são utilizados em aulas de anatomia humana, como informa o chefe do Departamento de Morfologia da UFSM, professor João Cezar Dias. Ele destaca a importância do contato direto com corpos humanos reais, que proporcionam a compreensão detalhada – algo que modelos anatômicos não conseguem replicar.”Todos os cursos da saúde têm disciplinas de anatomia, às vezes mais de uma, inclusive. Nosso respeito é total, com todo corpo sobre a bancada. Mantemos a ética com quem está ali nos ajudando”, afirmou João Cezar.
Como ser um doador?
Qualquer pessoa maior de 18 anos pode doar o corpo para fins acadêmicos e científicos. A única excessão é que não são aceitos corpos em caso de morte violenta, ou seja: decorrente de acidentes de qualquer natureza, homicídio ou suicídio. Isso porque os corpos devem ser submetidos à necropsia e, conforme necessidade da investigação, devem estar à disposição para exumação.
A declaração de doação de órgãos e restos mortais é feita com base em um modelo disponível no site da universidade (acesse aqui o documento). Para reconhecimento é preciso procurar um cartório ou realizar a assinatura digital por meio do cadastro online no Gov.br (acesse o serviço aqui). O professor orienta que pelo menos uma pessoa – de preferência familiar – assine como testemunha, pois apesar de declarar o desejo em vida, a família é superior na decisão da destinação do corpo após a morte. O documento deve ser preenchido em três vias: uma é entregue diretamente no Departamento de Morfologia da UFSM e as outras duas ficam com o doador e a família. No caso do indivíduo manifestar interesse para a família em destinar o corpo para a universidade, mas não formalizar o desejo, a família pode optar por destinar mesmo assim.
Depois do falecimento, a família deve fazer contato com a Universidade para informar o óbito. É permitido que o corpo seja velado antes de ser encaminhado ao Departamento. A decisão cabe à família, que também arca com o custo do transporte entre a funerária e a UFSM. Participar do programa não exclui a possibilidade de doar órgãos para transplante e é possível doar apenas partes do corpo.
Reportagem: Francine Castro e Tayline Manganeli
Contato: francine.castro@acad.ufsm.br/tayline.alves@acad.ufsm.br