Em 2018, segundo a Fiocruz, 45.875 óbitos perinatais foram registrados no Brasil. Este luto é sentido pelas milhares de mães que perdem seus bebês entre a 22ª semana de gestação e o 7º dia após o parto. Dor, vazio e tristeza são os sentimentos das três mulheres com idades, experiências e vidas diferentes, que desejaram seus filhos, esperaram por eles e não puderam sequer levá-los para casa. O sofrimento do luto perinatal é o que une as histórias de Jeniffer Weschenfelder, Jaqueline Sandra Rigon e Bruna Fani.
A estudante de Biomedicina, Jeniffer Weschenfelder, aos 19 anos, descobriu a gravidez e, mesmo sem ter sido planejada, a partir da primeira consulta, ao ouvir os batimentos cardíacos de Helena, encarou a gestação com felicidade. A emoção dela e do marido Leonardo Schneider Vega, logo compartilharia lugar com a preocupação. Ao realizar os primeiros exames de rotina, sua médica observou alterações e percebeu que Helena tinha um cisto na nuca. Os pais foram orientados a buscar uma análise mais detalhada em Porto Alegre. Na capital, o médico informou que o diagnóstico do bebê só poderia ser dado de fato, na hora do nascimento, portanto, não seria possível garantir que a menina não tivesse complicações futuras.
Com quase oito meses de gestação, Jeniffer sentiu-se mal e notou que Helena não estava se mexendo. Acompanhada por seu esposo, foi ao Hospital Vida & Saúde, em Santa Rosa para fazer um ultrassom. No exame, após mostrar a neném para a mãe, o médico responsável apontou para o coraçãozinho de Helena no monitor e disse: “aqui está parado”. Naquele momento, a mãe relata que sentiu o coração parar e, ao saber sobre o falecimento da pequena, desejou petrificar aquele momento para as duas ficarem para sempre juntas. “A Helena foi muito desejada, a gente a queria do jeito que fosse, só queríamos ela viva”, disse a mãe relembrando o caos do momento.
Após o parto, ela e seu marido tiveram um tempo com a filha, puderam escolher a roupa, pegar no colo e fazer algumas fotos para recordação. Em tom emotivo, Jeniffer conta: “se eu fechar os olhos agora é como se eu sentisse o cheirinho dela”. Após um ano e três meses, a jovem mãe diz estar finalmente se permitindo ser feliz de novo, mas ressalta que o luto é para vida toda, a dor nunca passa.
A professora de ensino fundamental, Jaqueline Sandra Rigon, de 49 anos, sempre teve o sonho de ser mãe. Ao encontrar dificuldades para engravidar, no ano de 2006, realizou um tratamento que resultou na gravidez das gêmeas, Luísa e Lara. As meninas vieram ao mundo no Hospital Vida & Saúde de Santa Rosa, com oito meses e peso abaixo do esperado, algo comum no desenvolvimento de uma gravidez gemelar.
As bebês recém-nascidas foram para a UTI Neonatal. Luísa foi para casa no quinto dia e Lara ficou hospitalizada, pois ainda não estava dentro dos limites de peso. No sétimo dia após o nascimento, o hospital informou à família que a menina estava sentindo falta de ar e seus batimentos estavam irregulares. Foi constatado que Lara possuía problemas cardíacos e deveria ser submetida a uma cirurgia em Porto Alegre. O pai Carlos Vladimir Petry acompanhou a neném em seu procedimento de emergência e Jaqueline, em casa, se recuperava da cirurgia e cuidava da recém nascida Luisa.
Após ouvir comentários sobre a cirurgia ser muito comum em bebês, Jaqueline estava esperançosa e confiante, sentimentos que logo foram suprimidos quando o ex-marido ligou para comunicar o falecimento de Lara durante a cirurgia. “A expectativa era muito grande: iria ter duas meninas. Estava tudo preparado, tinham duas caminhas, pares de tudo. Já se passaram 16 anos desde a perda da minha filha, mas a dor ainda existe”, destacou a mãe.
“Ele nasceu mal”, isso foi tudo que a professora de português e redação, formada pela UFSM, Bruna Fani ouviu de seu pediatra ao dar à luz ao seu filho Vicente. Grávida aos 23 anos, ela relata ter sido vítima de um caso de violência obstétrica no Hospital Casa de Saúde em Santa Maria, no ano de 2016.
O fato, que ganhou repercussão nacional, mobilizou a comunidade materna em busca de respostas. Bruna relata que teve suas palavras deslegitimadas ao explicar para as enfermeiras sobre a dor que estava sentindo, de fato, não ser normal. Segundo ela, seu corpo não suportava o sofrimento. Após Fani ficar horas sem receber nenhuma observação, as enfermeiras concordaram em ouvir os sinais do bebê e perceberam que algo não estava certo com Vicente.
O parto ocorreu durante a troca de plantão do hospital. A médica obstetra, apressada, disse: “vamos mãe, você não está se ajudando. Precisamos de mais força, senão vamos ficar aqui até de noite…”. Quando Vicente nasceu, a mãe não ouviu o choro. Sem demora, ele foi encaminhado para a sala do pediatra. Esses instantes foram apenas uma prova dos momentos tensos que Bruna viveria em seguida.
Segundo o pediatra de plantão, seu filho teve uma asfixia durante o parto: seis longos minutos sem respirar. Após ser reanimado, foi encaminhado à UTI Neonatal do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), onde foi entubado. Após dias de luta e agonia, três paradas cardíacas tiraram a vida de Vicente. Quando foi informada sobre o quadro do menino, a mãe se desolou: “a pediatria era no sexto andar, acredito que os seis andares ouviram os meus gritos, meu choro… ninguém me continha”.
Protocolo médico
Não existe um protocolo hospitalar, propriamente dito, apenas para informar os familiares sobre um óbito perinatal, segundo a pediatra neonatal do HUSM, Roseli Henn. Contudo, há uma série de ações, não obrigatórias, que a equipe médica costuma realizar prezando o zelo para com os familiares. O óbito é informado pela equipe em um ambiente secundário. Em seguida, são oferecidos a ida até o leito para ver o bebê, o pegar no colo, a opção de gravar alguma digital, ou outro registro, e a oportunidade de vesti-lo com alguma roupinha da preferência.
A pediatra ressalta que, durante a estadia do neném na UTI neonatal, nenhuma informação sobre a gravidade do caso pode ser omitida. Apesar de a maioria dos casos não evoluírem ao óbito, é necessário que se oriente sobre a possibilidade. Em situações de extrema emergência, como em um quadro de evolução para uma paralisia cerebral, é recomendado que a equipe dos cuidados paliativos seja acionada para comunicar aos pais sobre o que, de fato, está acontecendo.
Em situações de falecimento intrauterino, acima de 20 semanas de gestação, é realizado o parto vaginal ou o parto cesáreo, de forma cirúrgica. Conforme a enfermeira obstétrica do HUSM, Amanda Zubiaurre de Barros, a escolha do parto baseia-se em uma série de fatores: é preferível que seja realizada a indução ao parto normal, ou de forma espontânea. Caso a mulher tenha cesarianas anteriores ou algo que contraindique o parto vaginal, opta-se pelo método cirúrgico.
É ideal que em todo parto haja um acompanhante – companheiro, familiar ou amigo – de escolha materna, para notar as ações do obstetra e do pediatra, em casos de complicações durante a operação, como asfixia (mais comum), visto que a mãe se encontra em situação vulnerável. Ter a certeza de que foi realizado o possível para reanimar o recém-nascido, porém sem resultado, facilita a compreensão. Além disso, caso não haja alguém presente, a mãe terá que ser informada sobre o óbito sozinha.
Tabu
“Você é jovem, terá outros filhos”, “quem sabe você não seria uma boa mãe”, “foi a vontade de Deus”. Esses são exemplos de comentários que as mães ouvidas nesta reportagem relataram ter ouvido de familiares, amigos, conhecidos, e que tiveram impactos negativos ao invés de confortar. A psicóloga Janete Judite De Conti explica que existe uma dificuldade na sociedade em falar e entender o luto perinatal.
Depressão e síndrome do pânico foram citadas pelas mães como consequências do vivenciado. Tanto Jeniffer quanto Jaqueline e Bruna buscaram acompanhamento psicológico para expressar a dor e criar novos sentidos (existenciais) à experiência da perda e do sofrimento. O HUSM oferece atendimento psicológico e assistência social para mães e pais durante a internação da criança e após o óbito, conforme a enfermeira obstétrica Amanda Zubiaurre de Barros.
O suporte emocional e os vínculos saudáveis são necessários para que a mãe possa realmente sentir a ausência, caso contrário, o luto pode se tornar silencioso e negado, podendo evoluir para um luto complicado, segundo a psicóloga. Pela resistência que algumas pessoas e famílias têm em entender o fato da perda perinatal como um luto, cria-se uma barreira ou impedimento para que o outro possa sofrer e viver sua dor. Com isso, o sentimento acaba sendo reprimido e, internamente, devastador, complementa a psicóloga.
Segundo o relato das mães, os comentários religiosos feitos em redes e círculos sociais, na tentativa de acolher, provocaram revolta e descrença. Frases como: “Vivi uma situação parecida, mas graças a Deus meu filho sobreviveu” provocaram em Jeniffer e Bruna inúmeras revoltas contra suas crenças divinas. “Por que Deus ajudou essas crianças e o meu filho não?”, indagou-se Bruna ao relatar não entender como o amor e a piedade podem se transformar em preconceito e críticas.
Dor transformada em ativismo
Nas redes sociais, Bruna recebeu mensagens de mulheres que haviam passado por situações semelhantes. A partir disso, ela buscou engajar-se na causa e lutar para que casos como o de Vicente não se repitam. “O amor e a energia da minha maternidade foram para o ativismo. Vivi minha maternidade nas ruas, por meu filho e pelas crianças que virão.”, destacou a mãe.
A ONG Amada Helena, de Porto Alegre, realiza projetos focados na transformação social acerca do luto parental. Entre eles, uma cartilha de orientação, com instruções sobre o que é positivo e o que é negativo de se dizer aos pais que perderam seus filhos recentemente, para não causar uma reação contrária ao seu objetivo: acolhê-los na dor.
Para mais informações sobre a ONG, acompanhe o Instagram: @ong.amadahelena ou visite o site: amada-helena.org
Reportagem: Gabriela Wohlenberg e Nathalia Espindola
Ilustração: Andressa Gonçalves
Galeria: Arquivo pessoal de Bruna Fani