O Brasil oficializou, há mais de 20 anos, a aprovação da lei 10.257, mais conhecida como Estatuto da Cidade, que regulamenta a política urbana presente na Constituição Cidadã de 1988. Essa lei auxilia na garantia de princípios fundamentais para o bem-estar da população, como a função social da propriedade, a participação do povo no planejamento urbano e o reconhecimento da urgência do acesso à moradia e à cidade. Duas décadas se passaram e os problemas relacionados ao processo urbanístico nacional tiveram poucas soluções. Para agravar ainda mais a situação, há cerca de um ano, a pandemia eclodiu e deixou inúmeras vítimas fatais e isso restringiu, ainda mais, o acesso aos espaços públicos que, no caso do Brasil, já eram escassos. Logo, falar sobre a importância e os benefícios de tais ambientes que potencializam o desenvolvimento social, econômico, artístico e cultural, como os das universidades federais, nunca foi tão necessário como agora.
Cada instituição é diferente, pois cada sociedade que a cerca também é. As diferenças socioculturais moldam as formas com que a Universidade se coloca perante o corpo social e modifica a maneira como as pessoas veem essa relação. Apontar essa diferença é relevante para entender um pouco mais sobre a função social das Universidades Federais, assim, duas instituições serão observadas aqui: a UFSM (Universidade Federal de Santa Maria) – situada em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e obteve oito notas máximas e nenhum conceito ruim ou insuficiente no Enade de 2019 – e a UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso) – localizada em Cuiabá, e referência nacional de ensino – alcançando a marca de 98% de aprovação na mesma avaliação, feita pelo MEC.
Como quase todo jovem cuiabano, passei boa parte da minha adolescência sonhando em entrar na UFMT e, em 2018, consegui conquistar uma vaga no curso de Nutrição. Logo de imediato, a primeira coisa que aprendi foi que a responsabilidade pela qualidade do ensino era quase que exclusivamente dos alunos, tendo em vista o descaso do poder público com a ciência e as universidades brasileiras. O meu segundo aprendizado foi entender que quem produz conhecimento científico no Brasil, principalmente em instituições federais de ensino superior, faz milagres, em virtude da escassez de verbas, da péssima infraestrutura e do quase nulo reconhecimento a quem faz ciência.
Durante o tempo em que cursei Nutrição, a visão que a sociedade parecia ter de nós, estudantes, sempre me incomodou. Além da desvalorização dos alunos, a instituição também era constantemente atacada, seja pela descredibilização crescente ou pela anulação de toda e qualquer contribuição que a UFMT fazia para a sociedade como um todo. Quando se está dentro de uma universidade, você passa a entender a real importância do espaço em que está inserido. Tal ambiente está em constante adaptação, sempre em contato com aquilo que acontece ao seu redor, podendo, dessa forma, adaptar o conhecimento científico produzido em suas dependências, a fim de aplicá-los de maneira eficaz no corpo social.
Presenciei um choque de realidades quando, em 2020, comecei a cursar Comunicação Social – Jornalismo na UFSM. A Universidade tem, sobretudo, uma relação de acolhimento e integração com a comunidade de Santa Maria, isso pode ser resultado do caráter extensionista da instituição. Através dos projetos de extensão – mais de 1000, espalhados por 11 estados brasileiros – a Universidade pôde se colocar de uma forma mais palpável e acessível, aproximando-se daqueles que infelizmente não ocupam o espaço acadêmico e científico do Campus. Além dos projetos, a UFSM também atua como espaço cultural e de lazer para a população residente e é isso que gera essa familiarização entre Instituição e Sociedade.
O pró-reitor de extensão da UFSM, Flavi Ferreira Lisboa Filho, explica que a boa relação social está presente desde a fundação da universidade e, devido à construção de diálogos abertos e escuta atenta, os vínculos se tornaram cada vez mais fortes ao longo desses 60 anos de história. De acordo com ele, um dos fatores que auxilia na captação das demandas sociais é a maneira como ela é feita, já que toda a sistematização é realizada através dos fóruns regionais permanentes de extensão que ocorrem duas vezes ao ano.
A fala do pró-reitor revela que, na UFSM, a população é parte do corpo universitário, pois é constantemente ouvida e participa daquilo que acontece. Já em universidades como a UFMT esse cenário é diferente. A forma como a comunidade de Santa Maria se apropria e utiliza os espaços do campus da UFSM também é diferente. A professora e coordenadora do departamento de Cultura e Arte na Pró-reitoria de Extensão, Vera Lúcia Portinho Vianna, comentou um pouco sobre as consequências e os impactos sociais da utilização dos espaços da UFSM pela comunidade, citou também um dos projetos de integração mais conhecidos da instituição, o “Viva o Campus.”.
Para a coordenadora, debater sobre como a comunidade utiliza os espaços acadêmicos é de suma importância, ainda mais em um ano em que as pessoas se viram reclusas devido ao isolamento social. Vianna é responsável pelo projeto “Viva o Campus”, conhecido regionalmente, que consiste em aproximar a comunidade, trazendo-a para conhecer, frequentar e valorizar o campus como um espaço capaz de promover o conhecimento, a arte, a cidadania e o bem-estar. Além de gerar oportunidades de inclusão sociocultural e servir como uma espécie de vitrine para os outros projetos de extensão da UFSM.
De acordo com o ex-aluno e ex-professor da UFMT, Jasson André Ferreira Sobrinho, foi esse tipo de debate e projeto que faltou no período em que cursou Licenciatura em Música na Instituição. Para Ferreira Sobrinho, há um certo distanciamento entre o que acontece dentro da academia e aquilo que existe fora dos seus limites, pois muitas vezes o próprio colegiado não entendia a realidade dos alunos e da comunidade ao redor: “Queria colher frutos em uma terra na qual a instituição não havia sequer fertilizado e a integração com a sociedade não é tão grande”, lamenta.
Foi esse tipo de situação que me frustrou no período em que fui estudante de Nutrição na UFMT, pois isso faz com que a universidade forme apenas números e não indivíduos capazes de atuar e fazer a diferença no corpo social. Consoante a isso, Ferreira Sobrinho cita: “Do meu ponto de vista, pelo menos dentro do Departamento de Artes, faltava muitos projetos que criassem uma conexão melhor com o público externo, não só para atrair novos alunos, mas também para fomentar a preparação destes para o mercado de trabalho e assim encarar uma realidade diferente daquela produzida ali na graduação”.
De maneira oposta ao que foi citado pelo ex-estudante de Música, a UFSM se mantém à disposição da sociedade ao atuar em campos fundamentais: produz conhecimento e ciência e, por meio dos projetos de extensão, aplica aquilo que foi construído em sala de aula no cotidiano de mais de cinco milhões de pessoas ao redor do mundo. Além disso, a Universidade contribui também como espaço de lazer, cultura, arte e interação social. Projetos como o “Viva o Campus” comprovam que as instituições de ensino superior do Brasil deixaram de ser lugares elitizados e academicistas e passou a se configurar, também, como lugares públicos de construção de vínculos e de troca de experiências.
Logo, é necessário destacar que esse papel precisa ser constantemente reforçado pelas personagens ativas da educação como estudantes, professores e autoridades do poder público brasileiro para que assim o acesso a esses espaços seja democrático. De acordo com o graduando em Relações Internacionais da UFSM, Patrick Müller Depner, é primordial que os cursos desçam ainda mais do pedestal acadêmico e aproximem-se da comunidade, uma vez que o potencial existente dentro da universidade é enorme.
Depner ainda vai além e cita que em 2018, as universidades foram muito atacados por figuras públicas, por isso, se torna fundamental ressaltar “nosso papel como alunos de uma universidade pública federal, até para fazer com que a sociedade não se esqueça da magnitude dessas instituições e o peso da sua representatividade para toda a cidade”. Esse tipo de pensamento precisa ser mais difundido por todo o país para que o reconhecimento de outras faculdades seja alcançado de um modo que faça a sociedade entrar na luta em defesa desses espaços, pois compreendem o poder existente dentro deles.
O geólogo formado na federal do Mato Grosso, Renan Kauan Gomes Camargo, concorda com essa visão de que aquilo que se produz dentro das universidades precisa ser difundido de maneira ampla e extensa para toda a população. Para ele, só assim haverá de fato uma democratização no ensino e na utilização daquelas práticas feitas dentro da academia. Camargo conta que há uma certa dificuldade na hora de criar essas pontes entre o mundo universitário e o real, uma vez que a população não entende muito bem a linguagem acadêmica. Ele também avalia que não há um empenho, por parte do corpo estudantil, em fazer essa tradução e, por isso, é compreensível que a comunidade não saia em defesa de tais espaços.
Dessa forma, fica implícito dizer que o caminho escolhido pela Universidade Federal de Santa Maria é sem dúvidas o ideal para a construção de uma sociedade mais democrática, uma vez que ao fazer dela um espaço público que agregue no cotidiano da população é também dar ferramentas e poder de transformação para os cidadãos.
Reportagem: Felipe Ferreira