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A realidade de quem vive na casa do estudante: desafios que vão além da pandemia



 Com apenas uma semana de aula, no dia 16 de março, a UFSM decretou a suspensão das atividades presenciais por conta da pandemia do novo coronavírus. A medida resultou no retorno de muitos alunos, que moram na casa do estudante, para suas cidades de origem. Entretanto, houve quem precisou permanecer nas instalações universitárias. A .TXT conversou com cinco acadêmicos, que após quase quatro meses de isolamento social dentro das moradias da universidade, vivem experiências diferentes, mas em comum, sofrem com a saudade da família, falta de rotina nos estudos e as incertezas para o futuro.

 Referência no Brasil, a Casa do Estudante Universitário (CEU) da UFSM é um dos benefícios oferecidos pela assistência estudantil da instituição. Destinada aos alunos de baixa renda, a assistência busca contribuir para igualdade de oportunidades no acesso ao ensino público e diminuir a evasão, decorrente da falta de condições financeiras.  Atualmente, a CEU II acomoda mais de 1.800 estudantes, e no cenário atual cerca de 400 ainda seguiam nas moradias do Campus no final de junho.

 A pandemia obrigou uma mudança repentina de hábitos que antes eram comuns entre os moradores. A partida de vôlei no fim da tarde, a roda de chimarrão e o vai e vem de pessoas entre os apartamentos perderam espaço para conversas online, atividades físicas individuais e saída somente uma vez na semana para ir ao mercado.

Quando ir embora não é uma opção

 No início do ano, quando Wesley Pereira Rocha, 28 anos, saiu de Ariquemes, em Rondônia, para cursar Gestão em Turismo do outro lado do país, não imaginava que o impacto da disseminação de um vírus sem precedentes o faria ficar isolado a mais de 3 mil quilômetros de sua família. Foi justamente essa distância um dos motivos que o impediu de voltar para casa, além do medo de contrair o vírus no percurso e transmitir para os pais, que são do grupo de risco. Por ser calouro, Wesley ainda está alojado na União Universitária, uma moradia provisória para os estudantes de fora da cidade que chegam e não tem onde ficar. Apenas ele e mais quatro pessoas permaneceram no local, durante a pandemia. Com ambientes de uso coletivo, como dormitórios, banheiros, cozinha e área de estudo, os acadêmicos estabelecem regras para manter a organização do lugar. Wesley conta que, pelo baixo número de pessoas, o convívio entre os moradores tem sido tranquilo, situação contrastante com a rotina agitada da União em tempos normais, que já chegou acomodar 200 pessoas no início do ano. “Na época em que a União estava cheia, onde eu ia tinha gente. Para ficar sozinho, eu literalmente tinha que sair daqui. E agora não, tem momentos que ficamos todos juntos, como nas refeições, e tem horas que cada um fica no seu canto”, relata. 

Descrição de Imagem: Fotografia horizontal e colorida de várias camas enfileiradas. As camas são do tipo beliche nas cores marrom e branco; na primeira fileira, quatro camas, sendo que somente a segunda possui um colchão na parte inferior do beliche. Não é possível contar a quantidade de fileiras e camas a partir da segunda fileira. As camas estão em uma sala grande, com a parede traseira composta por janelas na cor azul, e a parede esquerda da imagem é composta por azulejo na cor branca. O piso é quadriculado na cor marrom e na parte superior, luzes brancas acesas no teto de cor branca.
Moradores da União, tem rotina alterada pela Pandemia

 Estudar longe de casa também é a realidade de Nati Castro Fernandes, de 26 anos que é natural do Piauí. A estudante do 6° semestre de Arquitetura e Urbanismo e moradora da CEU, até tentou o retorno para casa, mas com a emergência da pandemia já não havia mais passagens disponíveis para o estado.

 Também houve outros motivos que fizeram alguns moradores permanecer na casa do estudante. Alice Figueiredo, 20 anos, cursa o 4° semestre de Zootecnia e possui uma bolsa remunerada em um projeto da universidade voltado para o cuidado de animais em situação de abandono. Diferente de outras atividades, essa é considerada essencial e por isso, Alice ainda realiza o serviço mesmo durante a pandemia. A companhia dos animais, segundo ela, é o que torna os dias de isolamento um pouco mais leves.

Descrição de Imagem: Fotografia vertical e colorida de Alice e um cachorro. A fotografia foi tirada em contra-ploungé, de baixo para cima. Alice tema pele morena, olhos escuros e cabelos lisos de tamanho médio e na cor castanho. Na frente dela, mais próximo da câmera, um cachorro de pelagem caramelo, porte médio, que olha para a frente. Alice está com roupas em cor cinza e olha para a câmera com expressão neutra. Seu braço passa por cima do cachorro e segura a câmera que retrata a imagem. Ao fundo, há galhos e folhas de uma árvore e entre eles vê-se partes do céu azul.
A companhia dos animais tem tornado os dias mais facies para Alice Figueiredo

A adaptação ao ensino remoto e a falta de estrutura

 Muitos professores da UFSM adotaram o ensino de forma remota, que vão desde indicações de leituras até encontros virtuais nos horários das aulas. Manter uma rotina de estudos diante de um cenário repleto de incertezas não é tarefa fácil para nenhum estudante. Na CEU, essa realidade não é diferente. Alice conta que nem sempre se sente disposta a realizar as atividades relacionadas à faculdade e, por isso, não conseguiu estabelecer uma organização diária de estudos. Mas, ressalta que não deixa as tarefas acumularem e tenta fazer quando se sente bem. Para Roselaine Piber, 54 anos, que faz mestrado em Extensão Rural, o distanciamento da sua rotina normal também refletiu na nova dinâmica de estudos: “O meu orientador me deixou bem livre para fazer algumas leituras, mas no início eu me cobrava muito. Não fazia, mas mesmo assim me cobrava”. A mestranda diz que com o passar dos dias deixou de se cobrar tanto, pois soube que poderá optar pela prorrogação da defesa de dissertação caso se sentir prejudicada.

Descrição de Imagem: Fotografia horizontal e colorida de Roselaine sentada à uma mesa. Ela tem a pele branca, olhos escuros e cabelos na altura do ombro e grisalhos. Usa óculos e veste uma camiseta na cor vermelha e calça na cor azul escuro. Ela sorri levemente para a câmera. Está sentada em uma cadeira bege na cozinha; apoia as mãos na mesa e segura um garfo e uma faca por cima de um prato com legumes nas cores verde, amarelo e vermelho. A mesa é coberta por uma toalha estampada em xadrez, com cores predominantes em tons vermelho e verde. Sobre a toalha, há pratos com verduras coloridas e outros objetos. No fundo há uma parede branca. No lado esquerdo, uma janela; ao centro, uma prateleira de vidro com utensílios de cozinha e alimentos; canto direito, uma estante e um microondas, ambos na cor branca. O chão é de cerâmica branca.
Roselaine Piber, 54 anos, utiliza o tempo para mudar seus hábitos alimentares.

 Problemas como a frequente falta de água, luz ou internet, são outros fatores que atrapalham o ritmo de estudos de quem vive na casa do estudante. Os moradores relatam que já chegaram a ficar alguns dias sem acesso a internet e que, frequentemente, essa falta coincide com o horário de alguma aula. A ausência de água e luz é ainda pior nesse momento, porque impede que se sigam as recomendações de higienização após chegar da rua. Alice, que precisa sair muitas vezes para atender as demandas da sua bolsa, demonstra preocupação quanto a esse problema, pois tem receio de entrar ‘suja’ para dentro de casa.

 Ainda há quem não tem acesso ou enfrenta problemas com a tecnologia, é o caso de Igor Prado, 22 anos, aluno do curso de História Licenciatura, que no momento se encontra com o notebook danificado e tem de fazer as atividades pelo smartphone. Assim, até o aparelho voltar da manutenção, ele tem optado por leituras de livros e materiais impressos, pois de acordo com ele, a leitura no celular não é tão proveitosa.

Saídas para preservar a saúde mental

 “Tudo bem não estar bem”. É assim que Igor responde quando questionado sobre sua saúde mental durante a quarentena. Ele diz estar aprendendo a respeitar seus sentimentos, mesmo que sejam de infelicidade. “Tento canalizar essas dores psíquicas que estão na minha cabeça para outro lugar”, afirma. Igor já utilizou o serviço de acompanhamento psicológico oferecido pelo Setor de Atenção Integral ao Estudante (SATIE) da UFSM, mas explica que no momento optou por não seguir com as consultas, pois não se sente tão à vontade com o modelo virtual adotado durante a pandemia. Ele encontra amparo ao acompanhar os vídeos de uma psicóloga no Youtube que trata sobre a relação entre saúde mental e o momento atual. 

 Além dos momentos de angústia e instabilidade, o isolamento social também tem proporcionado a adoção de novos hábitos. Cultivar uma horta, começar uma nova leitura e voltar a escrever poemas são atividades que passaram a fazer parte da rotina de Igor. O jovem permaneceu sozinho no apartamento, que antes da pandemia dividia com outras sete pessoas, e explica que as atividades ocupam a mente e servem como refúgio da situação que vivemos. 

Descrição de Imagem: Fotografia horizontal e colorida de Igor agachado em frente à uma planta. Ele está enquadrado do centro à direita da foto. Igor tem pele branca, cabelos pretos e curtos e barba, também, preta e curta. Veste um moletom bege e uma calça cinza. Está agachado, olha para baixo e mexe na terra com uma pazinha de jardinagem na cor laranja. Ao fundo, o céu azul claro e, na metade da imagem.
Lidar com a própria horta é uma válvula de escape para Igor Prado, 22 anos

 Nati lembra que no início se sentia mais triste, quando as notícias sobre a doença se intensificaram no país, mas com o passar dos dias se acostumou. Além de se dedicar às atividades acadêmicas, a maior parte do seu dia tem sido vazio, por isso usa o tempo para navegar na internet e descansar. Ela menciona que ter a companhia da colega de quarto ajuda: “Tendo outra pessoa, eu posso dividir o que eu sinto. É bom ter alguém para cozinhar e limpar a casa juntas”.

Descrição de Imagem: Fotografia vertical e colorida de Nati parada em frente a um prédio. Ela está enquadrada no centro da foto, de corpo inteiro. Tem tom de pele morena, cabelos pretos e amarrados; usa uma máscara branca, veste blusa rosa, casaco lilás, saia jeans azul sobre meia calça preta e tênis pretos. Ela olha para a câmera e está de pé em cima de uma madeira, com as mãos nos bolsos do casaco. O prédio é branco, na entrada superior central, feita com vidros, “46” em cor preto, abaixo. O sol reflete em uma das portas que está aberta.
Nati Castro Fernandes, 26 anos, só tem saído de casa uma vez na semana para ir ao supermercado

(Sobre) viver com o mínimo

 Com intuito de reduzir o fluxo de alunos e garantir a segurança dos moradores, a UFSM orientou que, aqueles que pudessem, retornassem para suas casas. Para isso, a instituição subsidiou o custo das passagens de ônibus ou avião. Os que precisaram ficar, passaram a receber um auxílio alimentação mensal no valor de R$ 250,00, disponibilizado pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE), já que o Restaurante Universitário (RU), o qual era responsável pelas três refeições diárias dos alunos, foi fechado. 

 Apesar dos acadêmicos valorizarem a assistência estudantil oferecida e reconhecerem a importância desse direito, demonstram preocupação com a situação atual. Com o constante aumento de preços dos alimentos nos supermercados, esse valor tem sido insuficiente para dar conta das refeições básicas. “Quem não tem uma ajuda e não pode trabalhar, é bem difícil, acho que é muito pouco, não corresponde com as alimentações que tínhamos no RU. Deveria ser revisto”, destaca Roselaine. Em transmissão online da Sessão do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), em 5 de maio, o reitor Paulo Burmann alegou que existe um teto para o pagamento desse tipo de auxílio e que não pode ser alterado. Citou ainda as dificuldades orçamentárias pelas quais a universidade passa. 

 Há um grande distanciamento entre o valor ofertado pela PRAE, de R$ 250,00, e o gasto mensal do RU com cada estudante. Em tempos normais, a soma do café da manhã (R$ 5,50) e do almoço e jantar (R$ 9,40 cada) resulta em R$ 651,10 mensais, quase o triplo do valor pago pelo auxílio alimentação durante a pandemia. 

Descrição de Imagem: Captura de tela de um e-mail que traz em destaque, na parte superior, em letras azuis marinho e fundo cinza “Universidade Federal de Santa Maria. Sistema de Restaurantes Universitários. Alerta de agendamento não comparecido”. Abaixo, em fonte menor, com o texto em azul marinho, está “Prezado(a). Verificamos que você agendou um Almoço no RU – Campus I no dia 16.03.2020 e não compareceu. Isso gerou um custo de R$ 9,40 para a UFSM. Lembre-se de cancelar e evitar o desperdício. Caso você tenha comparecido, desconsidere este e-mail. Notificação automática do Módulo de Restaurante Universitário do SIE. Não responder este e-mail.” O valor do custo do almoço está em vermelho. O fundo é branco.
Notificação de não comparecimento do Restaurante Universitário

 Em outras Universidades Federais do estado, a assistência estudantil também precisou ser repensada para atender os moradores das casas de estudantes. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), os restaurantes universitários passaram a oferecer marmitas diariamente para aqueles que permanecem nas moradias. Já na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), além da distribuição das três refeições diárias, também foi concedido aos residentes um auxílio no valor de R$ 200,00 para casos de emergência. 

 Para conseguir dar conta de todos os gastos, alguns recorrem a outras alternativas. Como Wesley, que passou a receber uma bolsa com remuneração de R$ 250,00 para auxiliar na SATIE durante o período de pandemia, além de contar com uma pequena economia que fez antes de vir para o Sul. Entretanto, o estudante se mostra preocupado com as outras pessoas que não dispõem das mesmas condições. O Auxílio Emergencial de R$ 600,00 concedido pelo Governo Federal também foi uma possibilidade, porém, mesmo que os moradores se enquadrem em situações financeiras parecidas, nem todos foram contemplados. Esse foi o caso de Nati, que ainda está com seu beneficio em análise no aplicativo, e sem muitas esperanças de consegui-lo. 

As incertezas acerca do futuro

 Enquanto a retomada da vida normal ainda parece algo distante, os estudantes tentam lidar com as angústias do confinamento, diante de um cenário que expõe de forma escancarada as desigualdades sociais e econômicas do país. As pessoas em situação de vulnerabilidade, temem não apenas a contaminação do vírus, mas também como sobreviver financeiramente. A falta de planejamento por parte dos governantes sobre essas questões é justamente uma das preocupações de Nati, que não enxerga a vida das pessoas como prioridade na atuação do Estado: “Eu não sei até que ponto vamos ter que ficar em isolamento, porque não se planeja nada”. 

 Apesar das incertezas, a expectativa para o recomeço das aulas é mais um sentimento comum a todos entrevistados. Wesley que se sente satisfeito com o curso escolhido, não vê a hora de estar em sala de aula para trocar experiências com os professores e colegas. Alice também diz estar ansiosa para rever os amigos, mas reconhece que a volta deve acontecer no momento que a saúde de todos possa ser garantida.

Descrição de Imagem: Fotografia vertical e colorida de Wesley, homem branco de barba preta comprida. A foto está na diagonal e ele está enquadrado no centro da foto. Usa uma touca na cor preta, camiseta verde escura e calças pretas, seu olhar está voltado para a frente. Possui um notebook branco apoiado em suas pernas, que estão cruzadas; o notebook possui 4 adesivos. Ele está sentado em uma cama do tipo beliche, que tem fronha branca com estrelas pretas. A parede atrás dele é composto por uma janela na cor azul, com entrada de luz solar, e, do lado esquerdo, uma parede branca.
Wesley Pereira Rocha, 28 anos, é um dos cinco moradores da União Universitária nesse período

Reportagem: Caroline de Souza e Luís Gustavo dos Santos

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