Nos últimos anos, ampliaram-se as discussões e as práticas voltadas para a integração de estudantes com o Transtorno do Espectro Autista (TEA) no ensino superior, mas muito ainda precisa ser feito. De acordo com o portal de notícias G1, no Brasil, existem mais de oito milhões de estudantes em universidades públicas e privadas, mas menos de 500 possuem o Transtorno, o que representa 0,006%.
A falta de compreensão sobre o que é o autismo faz com que as pessoas vejam o assunto como um tabu e os obstáculos da inclusão fiquem ainda mais difíceis. O TEA é um transtorno do neurodesenvolvimento e a forma como se apresenta varia de acordo com cada caso. Segundo o Hospital Israelita Albert Einstein, o Transtorno é uma condição que afeta a capacidade de se comunicar e interagir.
O psicólogo e especialista em autismo, Carlo Schmidt, explica que normalmente o TEA é percebido na infância através de “sinais de alerta” que indicam que a criança pode vir a desenvolver o Transtorno posteriormente. Os sinais mais comuns afetam três áreas: comunicação (verbal e não verbal), interação social e comportamento. Além disso, incluem o atraso do desenvolvimento da linguagem, dificuldade de contato físico e visual e gestos ou comportamentos repetitivos. Desde o diagnóstico, são planejados tratamentos e quanto mais cedo isso ocorrer, melhores serão os resultados.
Conforme a criança cresce, as suas necessidades mudam. Carlo salienta a importância da presença de um educador especial para auxiliar os professores. Também enfatiza que a comunicação entre a instituição de ensino e a família do estudante é essencial no desenvolvimento e suporte do aluno com autismo. Adaptações em sala de aula e alterações nas dinâmicas de ensino e avaliações devem ser feitas, quando necessárias, para que o aluno consiga aprender de forma satisfatória e para evitar a evasão escolar, comum devido às dificuldades de adaptação encontradas pelos estudantes com autismo.
Segundo o Núcleo de Acessibilidade da UFSM, existem cinco alunos regulares com o diagnóstico de autismo na instituição, sendo três do campus de Santa Maria, um em Palmeira das Missões e outro em Cachoeira do Sul. A coordenadora do Núcleo, Tatiane Negrini, informa que “Tem aumentado o ingresso de autistas no ensino superior, o que é um fator positivo, inclusive em função da reserva de vagas.”.
A finalidade do Núcleo de Acessibilidade é fazer o acompanhamento desde o ingresso até o término do curso com o foco na permanência do estudante. “Nosso objetivo não é que eles evadam e nem que eles fiquem muito tempo a mais na universidade”, ressalta Tatiane. O Núcleo, criado em 2007, faz a mediação entre os professores, a coordenação, o aluno e seus colegas, além de oferecer atendimento com educador especial. Caso necessário, a UFSM disponibiliza um monitor para acompanhar o estudante. Desde o momento que o aluno ingressa na universidade pela reserva de vaga, o Núcleo entra em contato porque “é a partir do que vem deles que a gente vai orientar as coordenações, não temos que partir do pressuposto de que todos vão precisar da mesma coisa” explica Tatiane.
Como cada estudante com autismo possui diferentes dificuldades, as necessidades variam: menor acúmulo de conteúdo para as provas, atendimento diferenciado, estratégias de ensino distintas, mudança na didática, controle do barulho e o cuidado com trabalhos em grupo. Caso tenham dúvidas de como lidar com alguma situação, os professores podem entrar em contato com o Núcleo. Tatiane conta que um dos maiores empecilhos para a permanência do estudante com o Transtorno é a exigência de autonomia.
Ângela* é mãe de um estudante autista da UFSM que está no terceiro semestre da graduação e já sofreu inúmeras reprovações. Com a troca de professores a cada semestre, acontecem falhas na comunicação e, até maio deste ano, uma professora ainda não sabia da condição do seu filho. “Cheguei ao extremo de ouvir na universidade, de chefias, que em determinada disciplina ocorreu grande número de reprovações e que isto por si só justifica a reprovação do meu filho” relata Ângela.
No caso de Pedro*, a mãe conta que os professores não têm flexibilizado muito a didática, inclusive têm aplicado as mesmas provas e trabalhos para o filho. Ela relata que solicitou um monitor para seu filho, pois ele possui dificuldade em lembrar das atividades e trabalhos e acaba atrasando. Ele também não entende as falas do professor e, por conta disso, não anota o conteúdo. “Mesmo falando com o coordenador, ele acha melhor que seja assim, pois acabará por se organizar sozinho, mas até agora vem apresentando dificuldades. Eu mesma acabo contatando colegas para pedir informações e passo pra ele.” conta Ângela. Além dos desafios acadêmicos, a mãe revela que o filho não tem amigos: “[Ele] sofre com isso. É que ele não sabe chegar nas pessoas, iniciar uma conversa ou dar sequência. Diz que não é convidado a participar de festas, sair…”.
Quando questionada sobre como a Universidade poderia melhorar a acessibilidade, Ângela sugere o oferecimento de um trabalho diferenciado ao aluno com deficiência. Ela exemplifica maneiras para fazer esse trabalho dando atenção às dificuldades individuais desses estudantes: avaliá-los de forma diferente, garantir a comunicação entre os docentes para que todos estejam cientes de quem são os alunos e disponibilizar ou indicar colegas que possam dar assistência ou orientação às necessidades básicas, como datas e locais de provas, trabalhos e eventos.
Enquanto Pedro passa pelos seus desafios e luta pelos seus direitos na Universidade, Raul conseguiu se adaptar bem à rotina acadêmica. Raul Javorsky cursa Educação Física no campus de Santa Maria e conta que apesar de sempre saber, aceitar o diagnóstico de Asperger – um transtorno do espectro autista – foi difícil e demorado. “O processo de aceitação, se deu por volta de 2016, onde fui pesquisar mais a fundo sobre o tema e foi um alívio pra mim. Ainda hoje sofro algum tipo de deboche, porém bem menos acentuado que no colégio. Me arrependo de não ter explicado para os meus coleguinhas na época que era autista, para eles me entenderem melhor”, ressalta.
Ainda com esse sentimento de esperar que os outros o compreendam, ele usa suas redes sociais para divulgar conteúdos sobre a temática e luta para conscientizar as pessoas sobre o autismo. Desde que passou a se compreender melhor, decidiu investir no que realmente importava para ele. Hoje, Raul se dedica muito aos estudos e é um atleta e participa de diversas competições de natação.
Por mais que existam casos de sucesso como o de Raul, enquanto houver situações como a de Pedro, mudanças precisam ser realizadas. Há um caminho longo para ser trilhado e ele começa com o entendimento de que todos merecem ser respeitados pelas suas diferenças. Tatiane Negrini conclui: “Assim como tem esse [colega] com autismo, pode ter outro com outra condição, e eu sou diferente de vocês. Então nós estamos vivendo no diferente, cada um dentro do seu modo.”.
BASTIDORES
A ideia da matéria surgiu quando fizemos um programa de rádio com o autismo como temática central. A partir disso, notamos que nunca tínhamos visto uma reportagem sobre o autismo na educação superior. O nosso objetivo era descobrir como a Universidade Federal de Santa Maria lidava com a acessibilidade e se o apoio que eles ofereciam era o suficiente.
Para compreendermos melhor como a UFSM atende os alunos com autismo, entramos em contato com o Núcleo de Acessibilidade. Entrevistamos a Silvia Pavão, Chefe da Coordenadoria de Ações Educacionais, e Tatiane Negrini, Chefe do Núcleo de Acessibilidade. Elas nos deram as informações necessárias para entendermos todo o funcionamento e o suporte prestado aos estudantes.
Como o conceito era mostrar a realidade de quem vive com o Transtorno do Espectro Autista na Universidade, conversamos com o acadêmico de Educação Física, Raul Javorsky. Ele nos contou sobre como é a sua vida universitária e os desafios da autoaceitação. Também falamos com a mãe de outro estudante com autismo. Ela relatou os problemas que seu filho passa e sugeriu mudanças que podem ser feitas pela UFSM e pelos professores para melhorar o cotidiano dele.
Reportagem: Martina Irigoyen e Nathália Brum