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Anotado em um Moleskine



Reportagem: Beatriz Couto e Leandra Cruber – Ilustração: Jessica Tavares e Júlia Goulart

Em 27 de agosto de 1951, na cidade de Santa Maria, Ivone e Oscar tornaram-se pais pela quarta vez. Paulo Roberto de Oliveira Araujo nasceu com o rosto redondinho, a bochecha saliente e os olhos escuros e grandes – feições que pouco mudaram com o tempo. Não chegou a conhecer seu irmão mais velho, Ezinho, que faleceu aos nove anos. Beto, como foi carinhosamente apelidado, nasceu com problemas no coração e cresceu com a superproteção da mãe e a rigidez militar do pai.

A família mudou-se cinco vezes de endereço, mas para os meninos o melhor lugar da cidade sempre foi a casa do avô, na Rua Venâncio Aires. Lá, no quintal verde e florido, Beto brincava com os irmãos, Gilberto e Paulo Ubiratan, a prima Regina e a amiga e meia-irmã Irene. Não era uma criança quieta. A doença cardíaca não o assustou durante a infância, já que a imaginação e a criatividade foram seus eternos aliados. Gostava mesmo era de fazer travessuras, como pegar as uvas do avô sem ser visto e passar trote: para amigos, conhecidos e parentes.

Ainda criança desenvolveu o amor pelos animais. Tudo começou quando ganhou o cachorro Mulato, depois disso o interesse pelo cuidado dos bichos cresceu. Em 1974, entrou para o curso de Medicina Veterinária na UFSM. Graduou-se quatro anos depois com ótimas notas, mas nunca chegou a exercer a profissão. O amor pela literatura fez com que ingressasse também na faculdade de Jornalismo. Formou-se em dezembro de 1978. Foi redator na Rádio Imembuí e repórter do jornal A Razão. Em março do ano seguinte, já lecionava como colaborador. Após dois anos, foi efetivado como professor no curso de Jornalismo.

Paulo dedicou-se à Universidade durante 38 anos. Não ambicionava títulos acadêmicos e acreditava que de nada adiantava possuí-los se não fosse para aplicar em sala de aula. Paulo inspirava a vontade de fazer um jornalismo fora do convencional, mais provocativo e literário. Influenciado por escritores como Guimarães Rosa, Mia Couto, Gabriel García Marquez e Clarice Lispector, estimulava o uso de técnicas literárias e afirmava a importância do olhar, da escuta e da atenção aos detalhes. Em sua biblioteca pessoal, há cerca de três mil livros, entre eles obras de cunho técnico e algumas raridades autografadas.

Dentro e fora do ambiente acadêmico, tratava os alunos mais próximos como filhos, abraçava-os e demonstrava interesse em conhecê-los em suas mais profundas individualidades. Era uma pessoa inconformada, no sentido jornalístico, e não deixava que os alunos se acomodassem nas pautas superficiais. Incentivava-os a ir para as ruas, buscar fatos que não fossem do senso comum, entrevistar as pessoas e conhecer suas histórias de vida, muitas vezes ignoradas pelos meios tradicionais de comunicação.

No café da Cesma (Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria), um dos seus locais preferidos, encontrava os estudantes para falar de jornalismo e literatura. De forma divertida e enriquecedora, as conversas transcorriam sem a formalidade dos ambientes acadêmicos. Era a didática adotada por Paulo que atraía seus alunos. A Cesma também foi o local escolhido para lançar, em 2012, a primeira edição da proa – uma revista experimental de jornalismo literário que tinha a coordenação editorial do professor.

Na Cesma, experimentava todos os cafés do cardápio, mas tinha um preferido: o espresso romano, um cafezinho perfumado e com um toque cítrico, devido às raspas de limão que leva na receita. Como a bebida não fazia parte do menu fixo, Paulo levava de casa o limão para a barista preparar a bebida especialmente para ele.

Proa

Aos estudantes, gostava de citar o escritor alagoano Jorge de Lima, para estimular seus pensamentos e ampliar suas visões sociais: “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”. Por buscar uma forma alternativa de ensinar Jornalismo, era um professor sincero em suas críticas, sempre em busca de mostrar as potencialidades dos textos produzidos. Nem de longe poderia ser considerado um professor tradicional: as aulas começavam a partir de uma conversa e não de conteúdos escritos no quadro. Entendia a universidade como um lugar para o aluno explorar e potencializar as maravilhas da criatividade.

Nos anos 1980*, Paulo assumiu a coordenação dos projetos da Rádio Universidade com a ideia de levar os estudantes para dentro da emissora. Na época, foi uma ideia ousada. Junto com a então diretora da Rádio Universidade, Áurea Fonseca, coordenou programas de debate, de entrevistas e de notícias produzidos e apresentados pelos alunos.

O modo como ele tratava as pessoas é inesquecível para quem teve o prazer de conviver com o amante dos livros, das artes, do cinema e da música. Um abraço bem apertado, um segredo guardado, um telefonema de feliz aniversário. Como lembra a colega e amiga, Luciana Mielniczuk, Paulo era uma companhia para os tempos mais tristes e tinha um sorriso que iluminava até mesmo o inverno frio e cinza de Santa Maria.

Em um determinado momento, o budismo passou a influenciar a sua maneira de viver: falar com as pessoas sem ser autoritário, valorizar as coisas positivas e defender que a vida é muito curta para guardar mágoas, mas é grande o suficiente para dedicar-se às amizades. Cultivou muitos afetos, dentre os quais, seu companheiro Karim Wahhab, que conheceu em abril de 2002. No começo, quando ainda estavam se conhecendo, as conversas eram por trocas de e-mails. Daí para frente, seu companheiro o visitava, em especial nos finais de semana, quando saía de Cacequi em direção a Santa Maria. Paulo e Karim viveram quase 15 anos de companheirismo e amor.

Nas horas vagas, gostava de sair para comer seus pratos preferidos: massa Carbonara di Torriani, comida chinesa e, de sobremesa, Camafeu, o seu doce preferido. Seu apartamento retratava a peculiaridade da sua personalidade, com as paredes coloridas, as portas vermelhas e enfeites que decoravam cada cantinho. Paulo gostava de assistir na televisão ao noticiário espanhol. Grande apreciador da música, ouvia com paixão Marisa Monte, Cesária Évora, Maria Bethânia, Pizzarelli e Chico Buarque. Era um entusiasta das artes cinematográficas, sendo Pedro Almodóvar seu diretor favorito. Os temas polêmicos retratados nos filmes e o humor refinado do espanhol chamavam sua atenção.

Era um amante de coleções, que iam de cadernos Moleskines pautados e lisos até canetas e relógios de todos os tamanhos. Os relógios evidenciavam a forte ligação que tinha com o tempo, embora não fosse neurótico com horários. Outra coleção que despertava a curiosidade dos amigos era a de bengalas. Seu fascínio começou quando, ao entrar numa loja de decoração para comprar incensos, resolveu comprar uma. Nessas idas e vindas, as bengalas foram se multiplicando pela casa. Mesmo que não houvesse necessidade em usá-las, Paulo acreditava que as bengalas atribuíam elegância.

Bastante metódico, tinha hábitos peculiares como o de revisar ao menos três vezes a maçaneta e a grade da casa antes de sair. Também não era permitido andar de sapatos dentro de casa, a sujeira e as energias ruins ficavam na entrada do apartamento. Lá dentro, só de chinelo. Dividia a casa com Ava, Miró, Piaf e Anis, os gatos que resgatou durante os últimos seis anos. Um lembrete de seu amor incondicional pelos animais.

Guimarães Rosa usava a palavra desencantou para mencionar a morte de alguém. Paulo costumava utilizá-la para expressar seus sentimentos ao saber da morte de algum dos seus autores favoritos. Na noite de cinco de outubro de 2016, foi ele, o menino travesso e apaixonado por livros, que desencantou. O céu nublado e chuvoso daquela noite logo se transformou em um dia de sol, os raios aqueciam a todos ao seu redor. Uma manhã inquieta, assim como Paulo.

*Observação: O professor Paulo Roberto Araujo entrou na Rádio Universidade no ano de 1994 e não em 1980.

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