Para iniciar as reflexões sobre a temática da nossa nova edição, nada mais adequado do que uma explanação do professor do Departamento de Comunicação da UFSM que é referência nos estudos em cultura, não é mesmo? Fomos até a Pró-Reitoria de Extensão (PRE), onde ele agora ocupa o cargo de Pró-Reitor, para conversar um pouco com o professor Flavi Ferreira Lisbôa Filho sobre a amplitude do conceito de “cultura”, dos estudos que podem se utilizar dele como referência e o que o profissional da Comunicação pode (e o que não deve!) fazer em se tratando de suas pautas.
O QI: O que, afinal, é cultura?
Flavi: A definição de cultura é bastante complexa porque aciona vários saberes e fazeres. Nós temos uma noção de cultura muito ligada a uma prática, a um fazer cultural, mas antecede a esse fazer um conhecimento, e esse conhecimento faz parte de um arcabouço de conhecimentos de um dado grupo social. Quando falamos em prática cultural, estamos usando de um reducionismo para falar sobre cultura, porque cultura não é só uma ação: precede a ela um saber, um conhecimento específico que a move. Portanto, a nossa noção de cultura tem que ser de um processo, que envolve vários elementos.
Para exemplificar: o nosso aprendizado para a vida em sociedade se dá com base na cultura em que nascemos, no conjunto de conhecimentos que existe nesse grande repositório da cultura do grupo em que nos inserimos. É por isso que nós, nos primeiros anos de vida, agimos de maneira tão parecida com aqueles entes familiares mais próximos. Aprendemos na família, na escola, na religião que frequentamos… E esses conhecimentos da socialização primária vão nos acompanhar por boa parte da vida. Quando saímos para um novo aprendizado, como aprender uma profissão, vamos viver um processo de socialização secundária: teremos um novo aprendizado com um grupo diferente daquele de origem.
E, muitas vezes, esse segundo aprendizado nos coloca em conflito com aqueles conhecimentos anteriores. Aí entramos em discordância com muitas das coisas que ouvimos na escola que frequentamos, na religião que íamos ou que as famílias diziam; entramos em dissenso com isso porque estamos convivendo num novo grupo social, que dispõe de um outro conjunto de conhecimentos e que vai influenciar a nossa vida social.
Mas, sobretudo, cultura deve refletir também o modo de vida de um povo, de um grupo social. Muitas pessoas relacionam a cultura a um conhecimento erudito, que faz parte de uma elite. Tanto é que quando chamamos as pessoas que têm um certo grau de instrução de “cultas”, geralmente estamos falando de uma cultura de erudição. E quando fazemos isso, muitas vezes estamos negando um conhecimento que é popular, da cultura popular. Um sujeito que não tem um grau de instrução, que é analfabeto, também tem cultura: ele tem uma cultura que é de um saber popular, que move o seu dia-a-dia, que representa o seu modo de vida. A cultura, nesse sentido, foi usada como marca de distinção entre os grupos que tinham essa possibilidade de instrução e os que não tinham. Então, aqueles que tinham, traziam para si um status em função de uma distinção cultural erudita desses grupos que não tinham, não querendo reconhecer cultura nesses grupos populares.
Então, trazendo para o nosso dia-a-dia: o hip-hop é cultura? O funk é cultura? Sim! Funk e hip-hop são expressões culturais. O hip-hop, especialmente, nasce como movimento político e amplia sua atuação para outras áreas, se colocando como movimento artístico, também. É um conjunto de expressões artísticas que vai qualificar o hip-hop também como expressão cultural.
Já o funk é a expressão de uma cultura periférica, uma cultura marginal. Muitas vezes, a letra dessas músicas parece que “incomoda” – parece que é uma letra “bagaceira”, que faz muitos apelos eróticos, e até sexuais; mas o que essas músicas refletem? Elas refletem o cotidiano de uma determinada população, que está exposta a tudo isso de maneira muito precoce.
Mas por quê? Porque falta a participação do Estado por meio de políticas públicas dentro dessas comunidades. Políticas públicas que deem condições de educação, de moradia e de segurança. Quando isso não acontece, é por meio dessa música (que às vezes, parece agressiva para a sociedade) que é feita uma manifestação, um lamento, uma expressão daquilo que se vive ali dentro.
Gosto muito de fazer um contraponto com aqueles que dizem que “Cultura é a nativista!”, “Cultura mesmo é o gaúcho que tem!”. Eu digo: “Ah, que beleza… E aquelas letras gauchescas daquelas músicas machistas, não é… Eu sempre lembro daquele trecho da música: ‘Ajoelha e chora, e me desculpa se eu te esfolei com as minhas esporas…’, do gaúcho cantando para sua prenda. Isso sim é poesia, não é…”.
É engraçado… Quando é dos outros, é ofensivo; quando é nosso, parece que é naturalizado e nós aceitamos, como se tivéssemos uma certa superioridade cultural – outra ideia fadada ao insucesso. As pessoas não são superiores às outras em termos culturais. Na verdade, isso é uma herança colonialista de quando nos submetíamos a uma metrópole e pensávamos que tudo o que vinha da Europa era melhor do que o que tínhamos aqui, nacionalmente. Mas enfim… Isso é para mostrar como é complexo o conceito de cultura.
O QI: Que temáticas podem ser tratadas sob o ponto de vista da cultura? Que pesquisas vêm sendo desenvolvidas no grupo de pesquisa “Estudos culturais e audiovisualidades”?
Flavi: As temáticas que podem ser trabalhadas pelo viés da cultura são as mais variadas. Cada área vai fazer uma análise conforme a sua estrutura, sua ordem epistemológica. A Sociologia vai olhar para a cultura de uma forma, o antropólogo vai olhar de outra, a Psicologia de outra e nós, da Comunicação, vamos olhar para a cultura através das suas manifestações, das suas expressões que acabam sendo midiatizadas de diferentes formas.
No meu grupo de pesquisa, trabalhamos com a representação dos grupos sociais minoritários na mídia. Quando falo em grupos sociais minoritários, estou falando sobre as classes populares, sobre as identidades de gênero e orientações sexuais do grupo LGBTQI+, sobre a questão étnico-racial (em especial do negro e do indígena), sobre questões de gênero envolvendo, especialmente, a mulher – ou melhor, o feminismo, para ser um pouco mais amplo e dar conta também da transgenia.
Tem toda uma cultura instituída na nossa sociedade que estabeleceu como padrão a heteronormatividade, e eu sempre gosto de brincar: não tem problema nenhum as pessoas serem heterossexuais, pelo contrário, é uma orientação que elas têm. O único problema é definir a heterossexualidade como padrão normalizante da sociedade, como se todos tivessem que se espelhar nele.
A branquitude: a nossa sociedade é pautada pelo homem e pela mulher brancos, em detrimento de todas as outras etnias que dão essa configuração diferenciada e plural para nossa sociedade. Além disso, é uma sociedade patriarcal e machista, centrada na figura do homem, delegando à mulher um segundo plano.
Então: todas as pesquisas que procuram trabalhar de maneira responsável com a pauta desses grupos sociais minoritários encontram vazão no meu grupo de pesquisa. Eu poderia citar como exemplo o documentário “Tudo acaba em funk”, que foi um trabalho experimental feito pelo Julien Moretto que tenta desmistificar essa temática. Para vocês terem ideia, eu aprendi que existem 32 tipos diferentes de funk… Eu achava que funk era funk, mas não: além disso, é uma representação cultural, a manifestação de um grupo específico, e assim vale para todos os outros grupos sociais.
O QI: Como nós, enquanto profissionais da Comunicação, podemos atuar em prol da cultura? O que podemos e o que não devemos fazer?
Flavi: Não existe um manual do “politicamente correto” na hora de trabalhar com Comunicação, mas eu acho que todo o comunicador que tem a oportunidade de ter uma vivência próxima a esses grupos vai ter uma postura bem mais respeitosa. Muitas vezes, quando nós escrevemos de forma negligente as pautas desses grupos, é por pura ignorância, por não conhecermos da luta, da história, da origem ou até mesmo da militância desses grupos. Acabamos sendo embalados pelo senso comum, que menospreza todas essas atuações diferentes em nome de uma atuação hegemônica de um grupo específico. Acho que nos permitirmos conhecer um pouco mais desses grupos, dessas atuações, nos deixa menos ignorantes na hora de fazer uma pauta.
E outra coisa: evitar falar pelos grupos, mas sim dar voz a esses grupos, encontrar os espaços em que essas vozes podem aparecer, tratando de forma respeitosa, sem editar suas falas para dar o sentido que se quer dar em detrimento do que se tem na origem. Falar com e nunca falar por, quando estamos falando de grupos sociais minoritários, é o fundamental. No mais, é agir sempre de forma ética, íntegra e respeitosa com as diferenças, e deixando (ou tentando, pelo menos) os nossos preconceitos de lado.
Publicado originalmente no blog do WordPress em 05 de Abril de 2018