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Expressão de resistência



A moda afro-brasileira promove a diversidade e a inclusão, transformando o ato de vestir em um símbolo de empoderamento e de luta.

Texto e Fotografia: Ananda Matias Machado

Fatumata Sané, 41 anos, Frederico Westphalen

Nascida na Guiné-Bissau, país da África Ocidental, Fatumata Sané (fotos), 41 anos, ainda é sustentada por suas raízes africanas. Hoje, ela vive em Frederico Westephalen (RS), município com pouco mais de 30 mil habitantes. Mas Fatumata chegou ao Brasil em 2004 para apoiar o sonho do marido, Samba Sané. Ele, que já havia concluído uma graduação no país tropical antes de conhecê-la, decidiu enfrentar um novo desafio: um mestrado. Dessa vez, toda a família embarcou na nova fase da vida. E desde então, mesmo estando no Brasil, junto com Samba, Fatumata compartilha com os filhos Baluta, Djenabu e Adulay a cultura africana, celebrando sua origem.

A cultura afro-brasileira desempenha um papel crucial na formação da identidade nacional. São muitas as manifestações, especialmente na moda. Ao longo dos anos, a moda afro-brasileira vem ressignificando conceitos, tradições e comportamentos, abrangendo tanto pessoas negras como aquelas que se identificam com esse estilo.

A moda afro-brasileira tem raízes na história e na cultura dos africanosescravizados trazidos ao Brasil. Segundo o artigo África, números do tráfico atlântico, de Luiz Felipe de Alencastro, a cifra de africanos introduzidos no Brasil entre 1500 e 1850 foi de 4,8 milhões. Hoje, os negros representam 56% da população brasileira, mais de 115 milhões de pessoas.

Estilistas e designers afrodescendentes têm sido fundamentais na promoção e na reinvenção da moda afro-brasileira. Nomes como Negrif, Santa Resistência e Projeto Trançados têm se destacado ao mesclar elementos tradicionais e contemporâneos em suas criações. Eles não apenas celebram a cultura afro, mas questionam e desafiam os padrões estabelecidos pela indústria tradicional da moda.

Tecidos, padrões, acessórios, cores e estilos de cabelo mostram a herança que atravessou séculos. “No momento que eu pego o algodão cru e transformo ele em roupa, ali ele já tem outro valor. Eu transformo aquele tecido que era considerado ruim, e oferecido aos escravizados, em peças para diferentes ocasiões”, comenta a designer de moda Madalena da Silva, 51 anos, de Salvador (BA), conhecida como Madá Negrif. Filha de uma costureira, iniciou a trajetória na moda ao observar e ajudar a mãe, dona Estelita, a costurar. Mesmo crescendo nesse ambiente, Madá não planejava seguir essa carreira. Sem um objetivo claro, ela se inscreveu em um curso de moda no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) em Salvador.

Sua marca original, Linha Branca, evoluiu para Negrif após receber um retorno inspirador de um amigo de Cabo Verde (África), que sugeriu o novo nome. “Quando meu amigo sugeriu o nome eu acho que fui presenteada pela minha ancestralidade, até porque eu digo que o nome da marca fez a mesma trajetória dos meus ancestrais, saíram do continente africano e vieram para cá”, afirma Madá. Foi quando começou a desenvolver estampas exclusivas, especialmente rostos de mulheres negras, que se tornaram a assinatura da marca.

Um estudo do Central Única das Favelas (Cufa), afirma que, em 2020, oito a cada dez empreendedores negros acreditam que seus negocios são uma forma de resistir ao racismo e promover a cultura afro-brasileira. A moda é um dos principais setores de atuação desses empreendedores.

Resistência e afirmação

A partir do Século 20, movimentos culturais e artísticos, como o samba e o candomblé, começam a incorporar e celebrar esses elementos, trazendo-os para a moda brasileira. No Livro Moda afro-brasileira é design de resistência da luta negra no Brasil, Maria do Carmo Paulino afirma que a moda afro-brasileira sempre foi uma forma de resistência e de afirmação cultural.

Durante as décadas de 1960-70, influências da cultura negra estadunidense, como o movimento Black Power, inspiraram uma revalorização das raízes africanas. Esta era foi marcada por um resgate de símbolos e estéticas tradicionais africanas, adaptadas ao contexto urbano e moderno do Brasil. Turbantes, vestidos estampados e acessórios de miçangas tornaram-se ícones de uma identidade afro-brasileira renovada. “O que eu mais gosto nas minhas roupas é o turbante, não fico sem”, afirma Fatumata, ressaltando a importância do acessório.

Colaborações com estilistas negros e o uso de modelos de diferentes etnias nas campanhas são passos importantes para a democratização e valorização da diversidade na moda. O principal evento da área no Brasil, o São Paulo Fashion Week (SPFW), já teve estilistas negros, como Isaac Silva, em destaque, promovendo uma mudança importante no cenário da moda.

Em 2016, o SPFW teve um destaque especial com o desfile da marca LAB, criada pelo rapper Emicida e seu irmão Evandro Fióti. Este evento foi um marco significativo, não apenas pela qualidade e originalidade das peças apresentadas, mas também pelo impacto cultural e social que ele trouxe à maior semana de moda do país. O desfile da LAB foi muito mais do que uma apresentação de moda; foi um manifesto cultural. Emicida e Fióti utilizaram a plataforma do SPFW para promover a inclusão, a diversidade e o empoderamento das comunidades negras e periféricas.

A moda afro-brasileira não está restrita às passarelas e aos ateliês. Ela é visível nas ruas, nos eventos nas periferias e nas manifestações culturais de resistência. Nos bairros e comunidades, a moda afro aparece de maneira vibrante e autêntica, refletindo o cotidiano e a realidade dessas comunidades. “Essa moda tem origem nas periferias, nos terreiros, nos quilombos e nas marchas e manifestações de resistência negra. Ela é criada por pessoas pretas que desejam ver nas passarelas a representação da estética negra, incluindo o cabelo crespo e os traços negroides — rostos pretos, peles retintas, narizes e lábios largos” cita Maria do Carmo. Essa moda é utilizada como uma estratégia de visibilidade negra, transformando o ato de se vestir em um ato político. Emicida por meio do documentário AmarElo afirma isso, relembrando que é por meio do rap, do break e do grafite que os jovens da periferia paulistana encontram uma plataforma para se expressar.

O estilo segue pelas periferias do Brasil e se torna um movimento de conscientização a respeito do racismo e da desigualdade social.

Eventos como a Feira Preta em São Paulo (SP), que em 2024 ocorreu em maio com o tema “Ser Feliz é a Nossa Revolução”, e a Marcha do Orgulho Crespo, que acontece anualmente em Curitiba (PR), são exemplos de como a moda afro-brasileira se manifesta como uma forma de resistência e afirmação. Esses eventos celebram a cultura e promovem a conscientização sobre questões sociais, raciais e econômicas. A Feira Preta, desde 2002, tem sido um espaço crucial para a visibilidade de empreendedores, designers e artistas negros, criando uma plataforma para a promoção da economia criativa afrodescendente.

A moda afro-brasileira é uma das armas de resistência contra a discriminação racial, funcionando como um meio de empoderamento e luta por igualdade.

Ainda, ela tem influenciado a indústria da moda em geral, incentivando marcas a adotarem práticas mais inclusivas e diversificadas. Colaborações com estilistas negros e o uso de modelos de diferentes etnias nas campanhas publicitárias são passos importantes para a democratização e valorização da diversidade na moda. Um exemplo dessa transformação é o comunicador de moda Edhie Colucci, 30 anos, de São Paulo (SP), que começou seu trabalho digital aos 15 ao criar um blog de moda, em 2009. Edhie sente a falta de representatividade em desfiles de moda, onde quase não vê pessoas pretas. E observa que a inclusão de pessoas não brancas muitas vezes não ocorre de forma espontânea. Ele relata ter ouvido frases como “a roupa em um corpo preto não vende”, refletindo o maior desafio que enfrenta: a escassa representatividade.

Joias afro-brasileiras

A joalheria escrava baiana é um exemplo da contribuição africana ao design de joias brasileiro. A construção histórica do design de joias no Brasil é profundamente influenciada pela herança africana, afirma Ana Beatriz Simon Factum em sua dissertação Joalheria escrava baiana: a construção histórica do design de jóias brasileiro. A utilização de ouro, pedras preciosas e técnicas tradicionais de manufatura são traços distintivos dessa joalheria, que continua a inspirar designers.

A existência de jóias confeccionadas exclusivamente para mulheres negras sugere que essas peças possam representar a manutenção ou, mais precisamente, a reconstrução de uma identidade cultural para quem as usa. Podem ser vistas como símbolos de poder, ancestralidade, liderança ou mesmo imposto pela força.

A moda afro-brasileira é mais do que uma tendência estética; é uma poderosa expressão de identidade, resistência e criatividade. Ela resgata e reinventa tradições, promovendo um diálogo contínuo entre o passado e o presente. À medida que a sociedade avança na luta por igualdade e reconhecimento, a moda afro-brasileira continuará a desempenhar um papel central na celebração e valorização da cultura afro no Brasil e no mundo. “A cultura nunca morre, ela vive na gente” afirma Fatumata Sané, lembrando-nos da importância da herança africana em todos os aspectos de nossas vidas, inclusive na moda. O

FREDERICO WESTPHALEN, RS, SALVADOR, BA, SÃO PAULO, SP

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