Pequenos agricultores nos contam sobre as transformações no clima.
Texto e foto: Caroline Schepp
O início do dia na casa dos meus pais é sempre igual. Meu pai, Leandro Schepp, acorda às 5 da manhã, prepara o chimarrão, e logo chama minha mãe, Maristela de Fátima Schepp. Eles assistem o telejornal estadual para saber a previsão do tempo e planejar como será o dia. Depois, vão ordenhar as vacas e cuidar dos outros animais da propriedade. Quando viajo para casa deles nos finais de semana, em Braga (RS), sempre tento acordar cedo e ajudar na ordenha.
Em um desses dias, resolvi fotografá-los no galpão, enquanto ordenhavam as vacas e tomavam chimarrão, companheiro de todas as horas. As fotos ficaram muito boas, minha mãe sorrindo com a cuia na mão, meu pai na lavoura, observando os buracos que as fortes chuvas fizeram na terra. Foi nesse momento que resolvi conversar com eles sobre como estavam enfrentando as alterações que temos percebido no clima. As mudanças climáticas estão afetando a produção leiteira na propriedade?
Você deve saber que, desde junho de 2023, o Rio Grande do Sul está enfrentando eventos extremos, com um grande volume de chuvas, decorrentes da intensidade da ação do fenômeno El Niño. Apesar desse fenômeno ser natural, ele foi mais intenso agora, sob influência das mudanças climáticas. O resultado, aqui no estado, foram enchentes nos meses de junho, setembro e novembro de 2023 e em maio de 2024.
Clima e leite
As fortes chuvas que vêm afetando o estado trouxeram prejuízos graves para a agricultura familiar. Cerca de 420 famílias sem terra, assentadas em várias regiões do Rio Grande do Sul, foram atingidas. Os estragos não afetaram somente os lares, foram muito além, impactando a produção de alimentos, instalações, equipamentos e a vida de animais.
A pecuária leiteira, que está em 80% das propriedades agrícolas familiares do Brasil, também foi atingida, com uma vasta extensão de pastagens prejudicadas e perda de animais. Além dos bovinos de leite e de corte, aves, suínos, peixes e abelhas foram perdidos. O Relatório de perdas referente à calamidade climática, que atingiu o Rio Grande do Sul, em maio deste ano, elaborado pela Emater/RS-Ascar (Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural), prevê um impacto direto na produção de leite e de carne nos próximos meses.
Meu pai, o agricultor Leandro Schepp, 46 anos, do noroeste do estado, me contou que nos últimos meses, com as adversidades climáticas, a produção de leite diminuiu cerca de 30%. Além disso, o aumento de preços nos alimentos para os animais, e também nos insumos, somado à instabilidade nos preços pagos aos produtores, e a concorrência com produtos importados, são alguns dos desafios que ele e grande parte dos agricultores familiares, que trabalham com a produção e comercialização de leite, vêm enfrentando.
Segundo a pesquisadora Gizelli Moiano de Paula, do Departamento de Ciências Agronômicas e Ambientais da UFSM/FW (Universidade Federal de Santa Maria, campus Frederico Westphalen), existe um consenso entre pesquisadores que os efeitos das mudanças climáticas vêm intensificando fenômenos como El Niño e La Niña. O El Niño é um fenômeno natural que provoca o aquecimento anormal das águas do oceano Pacífico na sua porção equatorial, provocando, no Brasil, secas prolongadas e calor na região Norte e Nordeste e chuvas intensas e volumosas no Sul. Já o La Niña, gera secas severas e muito calor no Sul e chuvas torrenciais no Norte e Nordeste.
Com áreas de atuação em agrometeorologia, modelagem agrícola e estudos de séries históricas de dados meteorológicos, Gizelli diz que as mudanças climáticas e a variabilidade climática afetam significativamente a agricultura familiar, tanto nas culturas agrícolas como na criação de animais, impactando diretamente a produtividade e a renda dos agricultores. As altas temperaturas podem reduzir a produção de leite, pois afetam o bem-estar animal.
Produção agroecológica
Além de conversar com meus pais sobre como as mudanças climáticas estão afetando a agricultura familiar, falei com Ibanez Gonçalves, 53 anos, e com a família dele. Eles são agricultores agroecologistas de Vicente Dutra (RS). Segundo Ibanez, nos últimos três anos é perceptível a instabilidade dos fenômenos climáticos naturais, como as chuvas e o calor, que acabam prejudicando a produtividade na propriedade. Apesar de cultivarem palhada para a cobertura do solo, que evita a erosão, além de não praticarem ações que revolvem a terra, a família vem notando queda na produção. Uma das estratégias de Ibanez para a adaptação às mudanças climáticas é a implementação do sistema agroflorestal na propriedade.
A agrofloresta é um sistema de produção que imita o que a natureza realiza habitualmente, dispensando o uso de agrotóxicos. No sistema, encontramos um solo coberto pela vegetação, várias espécies de plantas juntas, uma mistura de culturas anuais, árvores perenes, frutíferas e leguminosas, além da criação de animais, e a própria família vivendo nessa mesma área.
Ibanez ainda conta que na produção agroecológica, com todas as transformações que vêm ocorrendo no clima, é cada vez mais difícil ter um planejamento para plantar. Dessa forma, o produtor está realizando o cultivo de várias espécies em diferentes épocas do ano e observando em qual há maior produção.
Apoio a Agricultura Familiar
Conversando com meus pais e com Ibanez, quis saber sobre o apoio técnico que recebem como agricultores familiares. “Nós temos acesso ao apoio técnico oferecido pela Emater do município, mas não temos incentivo financeiro para desenvolver estratégias para nos adaptarmos às mudanças climáticas, por exemplo, áreas de irrigação para os períodos de estiagem”, relatou, Leandro.
A Emater é uma instituição pública que oferece serviços para agricultores, principalmente os pequenos e os produtores familiares. A missão da organização é promover o desenvolvimento rural sustentável e melhorar a qualidade de vida dos agricultores e de suas comunidades.
Ibanez Gonçalves tem uma situação diferente. Ele e a família recebem assistência de técnicos de uma rede certificadora e do Senar-RS (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural), que trabalham com o planejamento dentro da produção orgânica. Além disso, informam sobre possíveis tendências na agricultura e as mudanças que estão acontecendo no clima. “Nós vamos nos adaptando com culturas, variedades diferentes, mudando um pouco a forma de fazer para nos adaptarmos. Mas no caso das chuvas em excesso, não temos como fazer um planejamento”, explica Ibanez.
Além da Emater, existem outras instituições e políticas públicas que visam o apoio à agricultura familiar. A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, vinculada ao Ministério da Agricultura e Pecuária), por exemplo, é voltada à inovação, com o objetivo de gerar conhecimentos e tecnologias para a agropecuária brasileira. Além disso, o Brasil tem sido reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) pelo apoio à agricultura familiar. Atualmente, existem quinze políticas públicas voltadas ao setor, entre elas o PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), Pnater (Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural) e o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar).
O PRONAF é uma das políticas públicas de maior relevância para a agricultura familiar. Criado em 1995, tem como objetivo fortalecer a agricultura familiar por meio de financiamento subsidiado de serviços agropecuários e não agropecuários. Além disso, garante a diversificação de atividades agrícolas nas propriedades familiares, possibilitando o empreendedorismo através da agroindustrialização de alimentos produzidos pelos agricultores. Com esse programa, a agricultura familiar adota práticas conservacionistas, visando uma produção ambiental, econômica e socialmente sustentável.
A Pnater foi concebida para promover o desenvolvimento sustentável com uma abordagem ampla. Ela enfatiza métodos participativos e a construção coletiva do conhecimento, seguindo os princípios da Agroecologia. A Pnater respeita as identidades dos agricultores familiares e das comunidades tradicionais, valorizando o potencial interno dessas comunidades. Ela também busca resgatar e integrar os conhecimentos tradicionais, incluir enfoques de gênero, geração, raça e etnia, e priorizar os grupos historicamente mais excluídos dos processos de desenvolvimento.
O PNAE visa garantir a oferta de alimentação adequada e saudável aos alunos da rede pública de ensino. O programa foi instituído em 1955 e, ao longo dos anos, passou por várias atualizações e melhorias para atender às necessidades nutricionais dos estudantes e contribuir para o desenvolvimento biopsicossocial dos alunos. Priorizando a compra de alimentos variados e saudáveis, incluindo produtos da agricultura familiar, o que também incentiva a economia local e a produção sustentável, é um dos maiores programas de alimentação do mundo.
Com o desastre ambiental que o Rio Grande do Sul sofreu neste ano, medidas foram tomadas para ajudar os agricultores familiares, como o prolongamento de dívidas e das parcelas do crédito rural.
O Governo Federal, por meio do PRONAF, abriu um crédito especial de 600 milhões de reais, com 120 meses para pagar, três anos de carência e um desconto de 30%. Para ajudar a agroindústria familiar, principalmente os produtores de queijo e derivados, o Ministério da Agricultura e Pecuária, liberou por 90 dias, a comercialização interestadual de produtos de origem animal do Estado.
Perspectivas futuras
Leandro e Maristela buscam um pouco de esperança para continuarem com a produção de leite. “É muito difícil pensar em continuar na atividade leiteira, com os preços pagos para nós muito baixos, falta de incentivo, às mudanças no clima. Continuamos aqui, mas o cenário é desanimador,” relatou Maristela.
Para o futuro na agricultura familiar, meu pai vê que é necessário planejamento na produção. “Quando produzir alimento para o gado, por exemplo, armazenar o quanto puder para ter sempre uma reserva e estar preparado para possíveis períodos de estiagem”, concluiu Leandro.
Ibanez olha com apreensão, insegurança e incerteza para o futuro da agricultura familiar. O agricultor me contou que apesar de trabalhar com a diversidade de culturas e estratégias de adaptação na propriedade, há uma preocupação muito grande em relação à produção de alimentos no futuro. Com os eventos climáticos que estão acontecendo, Ibanez diz que os governantes não estão oferecendo respostas imediatas, além de não existir um compromisso com o meio ambiente.
Compartilho dos mesmos sentimentos de meus pais e de Ibanez em relação ao futuro do pequeno agricultor. Há uma desvalorização muito grande da agricultura familiar. São inúmeras as dificuldades enfrentadas pelos produtores, entre elas, falta de assistência técnica, de boas estradas para realizar a comercialização dos produtos, instabilidade nos preços pagos aos agricultores e custos de produção muito altos.
Atualmente, no Rio Grande do Sul, segundo a Emater/RS-Ascar, 48.674 produtores de grãos, grande parte de milho e soja, foram prejudicados. Mais de 19 mil famílias tiveram perdas referentes às estruturas das propriedades rurais. Cerca de 200 agroindústrias foram atingidas. Na pecuária, as perdas de animais afetaram 3.711 criadores gaúchos, além disso, uma vasta extensão de pastagens foi prejudicada. Os citros e a banana, foram as culturas mais prejudicadas e o abastecimento de hortaliças nos centros urbanos foi fortemente afetado. Os agricultores estão buscando se reerguer e se adaptar ao cenário atual.
BRAGA, RS
VICENTE DUTRA, RS