Uma riqueza da terra sorvendo o resultado da cultura, da economia e da sociabilidade do homem.
Texto e Fotografia: João Vicente Custódio Magalhães
A erva-mate, para o gaúcho, faz parte de uma tradição carregada e transmitida de mão em mão; é una vieja companheira, produzida e comercializada em qualquer estação. Assim, se mistura com o sal da peonada que mantém ainda em pé essa ancestral produção; e, que no fim, vira uma seiva quente, correndo pelo campo, pela carne e em cada vertente, seja no Uruguai, Paraguai, Argentina ou Brasil.
A Erva-Mate se tornou mais que uma planta para nós, andarilhos do cone sul latino-americano. Virou lenda e até ingrediente de receita culinária. Porém, desconhecemos o trajeto da erva até chegar ao pacotinho fechado nas estantes de supermercado, principalmente no Brasil, o maior produtor sul-americano de erva-mate (concentra sua produção nos estados do Paraná e Rio Grande do Sul). Também não conhecemos a identidade de um pé de erva-mate, nem a tradição que ronda as rodas de chimarrão, muito menos o que se passa na mente de alguém que ceva um amargo solito. Portanto, te aprochegue…
Que tal um mate?
O mate – ou chimarrão – é a principal forma de ingerir a Ilex paraguariensis (nome científico da erva-mate). E assim como nós, ela também é nativa dessa região que agrega o oeste do RS, de Santa Catarina e do Paraná, como também o Paraguai e o norte da Argentina. Constrói, assim, uma relação próxima das pessoas com o território, uma planta que faz qualquer vivente com saudade da terra ter um pedaço dela sorvido em cada casa ou galpão.
Essa relação remonta aos indígenas e as antigas reduções jesuíticas, mesmo os padres não obtendo sucesso na proibição da erva-mate. Foi nas reduções que o processo sistemático de extração da erva-mate iniciou, dando partida na história da vasta produção e de consumo atual na Argentina, no Uruguai, no Paraguai e no sul e centro-oeste do Brasil.
Riqueza além da plata
Atualmente, outras plantas dominam essas bandas. Por exemplo, o Rio Grande do Sul é o quarto maior produtor de soja dentre as unidades da federação, superado pelo Mato Grosso, Goiás e Paraná. De acordo com o IBGE, o Estado produziu 13,7 milhões de toneladas em média em 2020-22, mostrando um aperto no ramo da erva-mate no mercado atual.
O Brasil é o maior produtor de erva-mate, tendo o Paraná com 46% da produção nacional, com 261.016 toneladas por ano no período de 2020-22. Em seguida o RS, contribuindo com 39%, produzindo 222.344 toneladas por ano e consumindo 1,2 kg per capita, conforme a pesquisa Dinâmicas de produção e comercialização da erva-mate no Rio Grande do Sul, de Abitante, de 2007.
Por isso o mate foi reconhecido como a bebida oficial do Rio Grande do Sul e símbolo nacional da Argentina. Segundo o governo hermano, o país consome uma média de 6,4 quilos de erva-mate ao ano por habitante, contrapondo o Brasil.
A tradição da erva-mate data de mais de mil anos antes da Era Cristã, sendo consumida e produzida em larga escala desde as tribos indígenas até hoje.
Papel do ervateiro
A extração da erva iniciou com os nativos, sendo industrializada pelos colonizadores, que modificaram esse processo, dando vida, assim, à figura do ervateiro e à uma nova produção, que se inicia pela colheita (normalmente os ervateiros vão em matas profundas ou em plantios de erva-mate e podam vários ramos que são transportadas), indo ao sapeco (tem o intuito de desidratar as folhas, passando-as levemente pela labareda), para, então, ir à secagem (término da desidratação das folhas) que pode ser feita por meio do carijo ou pelo barbaquá; finalizando com o cancheamento ou moagem (trituração das folhas feita pelo soque)
Em qualquer forma de consumo, seja mastigando as folhas igual aos índios charruas faziam no Uruguai; ou bebendo o mate ou o tereré (comum no centro-oeste do Brasil), que passam por esse processo para serem fabricados, as funções da erva no organismo ainda são as mesmas: a eliminação da fadiga, ser uma bebida diurética e auxiliar na digestão. Além disso, no passado, a erva-mate foi objeto de adoração pelos indígenas, como também moeda de troca entre comerciantes, segundo Glênio Fagundes no livro Cevando Mate, de 1986.
A ERVA-MATE EM OUTRAS BANDAS
Antigamente, como o transporte era feito por tração animal, ele era lento; assim cada jornada de tropeiro virava uma epopeia. Esse contexto influenciou muito no gosto da erva. Por exemplo, o produto feito no Rio Grande do Sul demorava para chegar ao Uruguai; fazendo a erva ficar levemente mais amarelada, velha e amarga. Isso diversificou o consumo e as tradições em cada lugar.
◊La yerba hermana: os argentinos costumam tomar mate quase sempre sozinhos. Lá, a erva, após acabarem de produzi-la, é conservada em um processo chamado de descanso, além de ser menos moída que a tradicional brasileira. O descanso se refere ao armazenamento da erva-mate a fim de preservá-la; deixando-a mais amarelada e mais amarga
◊A erva da banda oriental: os uruguaios também fazem o processo de descanso. Porém, ao contrário dos hermanos argentinos, eles separam as folhas dos palos (ramos de erva). Esse processo de moagem se chama “pura folha”
◊A erva tupiniquim: nós brasileiros aproveitamos tanto os ramos como as folhas da erva-mate, deixando-a mais suave, além de ingerirmos ela ainda fresca e com uma cor verde-vivo.
MOAGEM
◊Tradicional: todo o ramo da erva-mate é bem moído
Grossa: usa-se todo o ramo, pouco moída e com sabor mais forte e encorpado
◊Pura Folha: sem palos, usa apenas as folhas, sabor suave mas bem marcado
SECAGEM
◊Carijo: modo primário. Levanta-se um jirau que suspende os ramos por cima de um tapete de brasas. Leva, aproximadamente, sete horas até as folhas ficarem quebradiças
◊Barbaquá: modo mais usado pela indústria. O calor segue um caminho que parte do fogo a um quarto pequeno onde estão depositados os ramos suspensos. Leva por volta de 16 horas para ser concluído
A árvore de erva-mate
Bueno… mas e a árvore? Pertence à região subtropical da América Latina, seu tamanho assemelha-se ao de uma laranjeira e se desenvolve melhor em climas frios. Quando nativa, pode alcançar de seis a oito metros. Quando cultivada, apresenta cerca de três metros. O tronco apresenta uma casca lisa, um pouco rugosa e esbranquiçada; as folhas são perenes – não caem no inverno – com uma margem serrilhada; as flores são brancas e pequenas e o fruto tem formato de globo com uma coloração roxa-escura.
O pé encontrado na natureza, influencia no sabor da erva-mate. Segundo o professor Nilton Mantovani, da Universidade Federal de Santa Maria, a erva nativa cresce sobre a sombra de outras árvores, ou seja, um exemplar que sofre o processo de sombreamento – quando a planta não recebe tanta luz solar. Isso diminui o amargor característico da erva-mate tradicional, cultivada em campo aberto, recebendo mais luz solar: “Quanto mais sombreado, mais suave é o mate depois”, resume o professor.
Por trás da história…
Além de todo estudo, há uma mística por detrás. As lendas da erva-mate são exemplos disso. Uma delas conta que um velho guerreiro guarani, já pesado na idade, começou a sentir os freios que o tempo lhe guardava, restando-lhe apenas a companhia da filha, Yari. Certa vez, receberam a visita de um andarilho pedindo abrigo. Mui generosos, ofereceram sua hospitalidade. Ao amanhecer, o estranho quis agradecer pelo apoio anunciando que era um enviado divino, propondo-lhes realizar qualquer pedido. Assim, o velho respondeu que se recordaria saudosamente do viajante, mas gostaria de ter um companheiro durante o silêncio causado por essas lembranças, que lhe desse a força e a amizade que sentia falta. O enviado divino entregou-lhes uma planta, chamada Caa. Prometeu que o líquido extraído dela seria um amigo silencioso, como também traria vigor ao velho e ao seu povo. O andarilho concedeu à Yari o título de Deusa da Erva-Mate.
A ERVA É O TRATAMENTO, A CUIA A VACINA
Sobre o mate ser uma bebida sagrada, tu já sabes. Mas que a palavra “mate” se refere tanto ao nome da bebida como à “cuia” é algo ainda desconhecido para muita gente. O recipiente, a cuia, pode ser feito de muitos materiais, (porongo, madeira, alumínio, porcelana) e formatos, que influenciam no sabor e no aproveitamento da erva:
◊Galleta: cuia pequena em formato de bolacha
◊Tradicional gaúcha: formato do porongo tradicional. Em geral são grandes e com bocal largo
◊Coquinho: assim como a galleta, é mais usada no Uruguai, parece-se com o formato de um côco
◊“Getulinho”: Getúlio Vargas popularizou um formato de cuia único, o qual apenas ele usava na época
◊Guampa: feita da aspa de boi, usada para beber tereré
SAINT HILAIRE
Em 1823, o naturalista francês Saint Hilaire, em seu estudo Viagem ao Rio Grande do Sul, nomeou de Ilex paraguariensis a erva-mate