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De braços abertos



O acolhimento da cidade de Frederico Westphalen na experiência de oito imigrantes latino-americanos

Camila Oliveira, Isadora de Oliveira Silva, Maria Luísa Lima, Mariana Marçal

Foto: Maria Luísa Lima

“Não é fácil sair de tua terra e ser acolhido por outra pessoa que nunca te viu”. Enrique Luis Rodríguez, venezuelano, 41 anos, pai de família, encontrou em Frederico Westphalen (RS) uma vida melhor. O estrangeiro diz não ter reclamações: “A gente tá agradecido ao povo brasileiro”. Hoje, faz da cidade seu lar junto com a esposa Yamileth del Rosario Boada, 42 anos, e os três filhos Ángel Rodríguez Boada, Angelo Rodríguez Boada e Chiquinquira Rodríguez Boada, de 18, 14 e 10 anos, respectivamente. Tal foi para a família de Enrique, os vínculos com o novo país são positivos também para os outros imigrantes com quem conversamos.

Segundo o Relatório Anual de Imigração 2021, disponível no Portal de Imigração do Ministério da Justiça e Segurança Pública, entre os anos de 2011 e 2020, o Brasil recebeu quase 990 mil imigrantes. Os venezuelanos se destacam como a principal nacionalidade de origem dessas pessoas, a maioria com estadia temporária. Em segundo lugar, vêm os haitianos, principalmente como residentes. Países latinos vêm sendo mais procurados para migração devido à política de endurecimento da vigilância nas fronteiras dos Estados Unidos e da Europa, que dificultam a entrada de estrangeiros.

Mesmo se sentindo acolhido, com um cotidiano estruturado no país, Enrique sente saudade das músicas venezuelanas e de compartilhar momentos com familiares e amigos ao som delas. Independente disso, não pretende voltar a morar na Venezuela, já que o país não está em boas condições, afirma. No Brasil, teve acolhimento e trabalho, que proporcionam muitas coisas que a família não teria na terra natal. O modo de vida estabelecido nos últimos dois anos faz ele buscar ser reconhecido como residente em nosso país de forma fixa. 

Além disso, o pai diz sentir muita falta de comer peixe. O filho, Ángel Rafael Rodríguez Boada, completa a lista de saudades lembrando das praias, da cultura e, principalmente, da comida. O jovem, que sonha cursar gastronomia, mostra uma memória afetiva com um dos pratos típicos venezuelanos, explicando-o em detalhes. “Hallaca é tipo um pastel, só que ele é enrolado em uma folha de banana”, conta.

Yamileth Boada, a mãe, ainda tem dificuldades para se acostumar  com o português. Ela estranhou a diferença nos costumes dos dois lugares, mas,  ainda assim, gosta muito do que vem aprendendo sobre o país. Ela e o marido estão tentando se familiarizar com os novos ritmos, para dançarem juntos como já estavam acostumados em sua terra natal.

Berno diz “olá” ao Brasil

Qual o motivo de ter vindo para cá? Berno Alexis, 24 anos, do Haiti, está em Frederico Westphalen (RS) desde abril de 2021. “Motivos é que… eu não falo muito bem português”, responde, receoso. Talvez até um pouco nervoso. O motivo é que Berno tem o sonho de ser engenheiro agrônomo, algo que ele sempre quis. No país natal, já havia tentado entrar na universidade duas vezes, mas, devido a concorrência, não passou em nenhuma das tentativas. Então, descobriu a oportunidade de vir estudar agronomia no Brasil, exatamente onde está agora, no campus Frederico Westphalen da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). 

Em frente à biblioteca, Berno está em pé com as mãos apertando as alças da mochila e com o olhar direcionado para cima. “Chegar aqui foi muito difícil”. No período da pandemia, as fronteiras foram fechadas, impedindo a entrada e saída de estrangeiros.

Em maio de 2021, o estudante teve que entrar irregularmente no país pela fronteira de Boa Vista (RR). Seu primo Yonel Estawien, 24 anos, estudante de medicina, o aguardava em Foz do Iguaçu (PR), sendo ele a primeira pessoa que recepcionou Berno no país e que o ensinou um pouco de português. Diferente do que ocorreu no Haiti, Berno conseguiu ingressar na universidade por meio de um edital para refugiados e imigrantes. Em sua trajetória, trilhou sozinho cerca de nove mil quilômetros. Sinceramente, não gostou daqui quando chegou: “É bem diferente da cidade em que eu nasci, aqui no fim de semana é ruim, só ficar e estudar”.

Berno mora em uma pensão próxima à universidade. Divide a casa com mais oito pessoas, porém tem quarto individual. A proximidade com o campus permite que ele vá caminhando e o trajeto leva poucos minutos, mas, tanto a pensão quanto a universidade, no entanto, ficam a sete quilômetros de distância da cidade. Nos finais de semana, às vezes, restam apenas Berno e mais dois imigrantes na pensão. Os demais colegas vão frequentemente para casa, visitar suas famílias, o que não é possível para os estudantes estrangeiros. Na verdade, ele não retornou ao Haiti desde sua chegada ao Brasil e não sabe se conseguirá ir antes de terminar os cinco anos de graduação. A saudade fica estampada no olhar. A voz embarga quando toca no assunto. A família, os amigos e os costumes ficaram todos lá. As lembranças são acalentadas pela música da terra natal, o que ajuda a manter a cultura viva na memória.

Berno também gosta muito da música brasileira e dos brasileiros. Mesmo assim, prefere não arriscar ficar de papo, tem um pouco de vergonha de conversar fora das línguas maternas, o crioulo haitiano e o francês. Entende claramente o que dizem a ele em português, entretanto. Diferente do início, quando não sabia absolutamente nada sobre a língua portuguesa, hoje só tem dificuldade com a pronúncia. “Foi difícil, tudo o que os outros falavam eu entendia muito pouco. Mas agora me acostumei, tenho que aprender”. Aprender é certamente o que mais interessa a Berno Alexis. Foi o que o encorajou a dar “au revoir” ao Haiti e aprender a falar “olá” para o Brasil, não só pelo diploma mas também por um motivo maior, o de poder estar finalmente estudando e aprendendo, algo que ele sempre sonhou.

O lugar que acolhe Omega

Como nativo de em outro país, seja nos Estados Unidos, na Alemanha, na Síria, ou em um país asiático, se uma pessoa é perguntada sobre o Brasil, talvez as respostas mencionem o carnaval, o futebol, as belas praias e paisagens. Tudo isso também faz parte do cenário,  mas o Brasil é muito mais. É, fundamentalmente, o lar de muitas pessoas, é um país que acolhe quem está aqui e quem acabou de adentrar nesse paraíso de diversidade.

“O Brasil que as pessoas falam lá fora é totalmente diferente do Brasil por dentro”, diz Omega Saul, 26 anos. Também natural do Haiti, sempre teve o sonho de ser agrônomo, igual a Berno, que só conheceu no Brasil. Desde a infância, acompanhava os pais no cultivo da terra no país natal, criando uma relação afetiva com a profissão, mas antes disso, tinha ainda outro sonho, o de ser padre. Foi onde começou sua trajetória com os estudos. Em 2017, começou a participar de seminários na Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, onde teve a oportunidade de vir ao Brasil para continuar a estudar em Caxias do Sul (RS). Tudo começou a mudar. Depois disso, foi para Florianópolis (SC) e a Santa Maria (RS), onde ingressou na Universidade Federal de Santa Maria para cursar Filosofia e dar seguimento ao seu objetivo de ser padre. Depois, iria cursar Teologia, mas, após um certo tempo, ele abandonou esse sonho. “As coisas não estavam dando certo”, alega. 

Em busca de outra vocação em sua vida, lembrou do sonho de cursar agronomia. Morando em uma cidade universitária, tinha costume de frequentar o campus em Santa Maria, mas decidiu dar uma olhada nos outros campi entrelaçados à universidade. Foi quando achou Frederico Westphalen, no noroeste do Rio Grande do Sul. Omega recorda que essa pareceu a melhor opção. Segundo ele, o fato da  Universidade estar no meio rural é muito importante para quem faz agronomia. “Em Frederico, há uma grande área que você pode utilizar para praticar melhor o curso”. Além disso, acrescenta: “Aqui tem gente de todo lado, é uma diversidade muito grande, eu gosto disso”, uma multiplicidade cultural assim, diz, ele não conhecia no país de origem.

Veio para o Brasil sem saber uma única palavra em português, não sabia sequer dar “bom dia”. Dedicou o primeiro ano aqui ao estudo da língua portuguesa, estudando dia e noite, dando seu máximo. “Com apenas um ano de estudo, eu já podia dar qualquer palestra sobre qualquer assunto”, recorda. Depois disso, estudou ainda a língua inglesa e, em apenas seis meses, já falava quase tudo. Omega Saul se tornou professor de francês após visitar comunidades em Santa Maria e começar a dar aulas para essas pessoas. Desde então, vem se aperfeiçoando na profissão, ensinando de forma remota ou presencialmente, sendo essa a fonte de renda para se manter no Brasil enquanto estuda. Além disso, sabe também a língua crioula haitiana, a sua língua materna, canta, toca violão e bateria desde pequeno.

Desde que veio para cá, nunca mais voltou ao país de origem, nem ao menos para uma visita. São quatro anos sem dar um abraço na mãe, sem participar das rodas de músicas de kompa e merengue, tão famosas na cultura haitiana pelos movimentos e estilo, exercidos com alma e graciosidade, uma mistura de raízes africanas, francesas e indígenas. Relembra, saudoso, dos finais de tarde com amigos e familiares, no sofá de casa, reunidos para conversar e dar boas risadas. “É uma saudade grande e, quando aperta, dá vontade de chorar”, completa.

Saudade essa que é compartilhada por todas as pessoas que precisam deixar seu lar para ir em busca de novas oportunidades e qualidade de vida. Sonhos que são tecidos durante tempos de angústias e de tormentos, e abraçados por lugares vizinhos, portas e abraços que se abrem, em um acolhimento quente e tropical. A saudade consegue dialogar com as boas lembranças, acalentadas pelo novo.

Tomás mira o futuro

Foto: Isadora de Oliveira Silva

Tomás José Brito Ramos, 37 anos, encontrou no Brasil um novo lar. “A cultura das pessoas de Frederico tem muito a ver com as pessoas do meu país”, relata o barman, destacando o caráter generoso do povo que conheceu aqui. Há seis anos, Tomás deixou a Venezuela, sozinho.

Com objetivo de ir até o Uruguai, ou quem sabe sair da América Latina, foi surpreendido pelas oportunidades que apareceram. Mesmo conhecendo pouco sobre o país, e menos ainda sobre a língua portuguesa, decidiu ficar. Os primeiros meses foram complicados, Tomás chegou ao país dispondo apenas de sinais para se comunicar. Com o passar do tempo, foi se adaptando ao idioma local: “Eu passei três meses direto escutando rádio, assistindo jornal, para tentar me adaptar ao idioma”, conta o venezuelano.

Depois de um tempo, com o dinheiro que conseguiu guardar, trouxe quase toda a família. Hoje, a mãe e três de seus irmãos também moram em Frederico Westphalen, e, com a vinda do próximo irmão, que já está sendo planejada, todos estarão reunidos mais uma vez. “Vieram bastante oportunidades para a minha família. Estamos trabalhando, ganhando um salário básico. Um salário bom para viver, pelo menos. Então estamos, graças a Deus, bem”, explica Tomás. 

A saudade da Venezuela não dá trégua. Ele acorda pensando no país de origem e, no fim do dia, a terra natal permeia os pensamentos antes de dormir. Mas a busca por oportunidades faz com que permaneça na cidade que o abraçou. A situação econômica e política do país natal não está em seu melhor momento, afirma. Tomás fecha os olhos, refaz mentalmente o trajeto de suas antigas viagens, saboreia comidas e visita as praias venezuelanas em seus pensamentos.

Tomás pensa em voltar ao país para uma visita, talvez para adquirir uma propriedade, mas não tem planos de morar na Venezuela novamente. “Vou me radicar aqui. Vou, sei lá, construir uma família e trabalhar aqui. Ou, de repente, eu saio do Brasil, vou para outro país, mas não para o meu país de origem. A gente não sabe o que acontece no dia de amanhã. Por enquanto, porém, minha visão é só para frente!”, conta, com brilho nos olhos, sobre seus planos.

Rafaela quer ver o mundo

“Silla… Silla…”, murmura a vendedora ambulante, enquanto busca a palavra certa na língua irmã. A palavra é cadeira. Nos primeiros dias do percurso pelo Brasil, foi abordada, de surpresa, por um senhor que ofereceu a ela uma cadeira. Rafaela estava em um semáforo vendendo artesanato. Sentiu-se acolhida pelo gesto do desconhecido. “No Uruguai, chamam a polícia”, conclui rindo. A cadeira acabou ficando para trás, mas se mantém na memória da viajante, conta sobre a receptividade que experimenta no Brasil.

Foto: Isadora de Oliveira Silva

Conhecemos Rafaela, 25 anos, em uma situação similar. Passando pelo semáforo próximo à rodoviária da cidade, a uruguaia nos abordou com um sorriso amigável. Notamos o sotaque, que orna a força de suas palavras. A insegurança com o português logo denuncia que não é brasileira e chegou há pouco tempo. Entregamos alguns trocados e recebemos uma pequena rosa que Rafaela confeccionou em EVA. A conversa fluiu calorosa e bem humorada.

Hospitalidade pode ser definida como a generosidade de um agrupamento humano, seja uma comunidade, etnia, cidade, nação, estado ou país. É a ternura da gente de um lugar em relação ao estrangeiro e os seus mistérios. Com o objetivo de escapar do inverno uruguaio, e descontente com a rotina em Montevidéu, a jovem lançou-se, em junho de 2022, em uma viagem rumo ao nordeste brasileiro. De cidade em cidade, acompanhada de Flávio Amaral, 29 anos, amigo e conterrâneo, e Lupe, a cachorrinha que está com ela há dez anos, Rafaela vende artesanatos nas ruas para conseguir dinheiro, e garante que tem o suficiente para pagar a passagem de ônibus. “Pagamos até meia passagem para Lupe. Mas nem sempre, depende do motorista”, explica a uruguaia.

Ainda não deu tempo de sentir saudades de casa, com exceção da mãe e de alguns amigos. No estilo mochilão, o lar agora são algumas malas, uma barraca e cobertores. O olhar radiante transparece empolgação pelos lugares e pessoas que conheceu e que conhecerá nesta jornada, que mal começou, diz ela. “As pessoas te recebem de braços abertos, tem muita gente boa aqui no Brasil”, declara. Mas Rafaela não pretende ficar, ao contrário do companheiro de jornada. Quando a viagem completar um ano, o plano de Rafaela é retornar ao Uruguai, levando consigo uma bagagem de novas vivências. Flávio pensa diferente.

Flávio gostou e ficou

Ficar no Brasil não estava nos planos. O intuito era ir à Argentina. “Trombei com um amigo e cheguei aqui”, recorda Flávio Amaral. Algo no Brasil o cativou. Hoje, além de vender artesanato, faz malabares nos semáforos.

Chegado por volta de setembro de 2021, o uruguaio está decidido: vai ficar por aqui. Sem moradia fixa, Flávio não tem intenção de voltar a morar no país de origem. “É, eu vou ter que voltar, né? Só pra visitar meu pai, meu irmão. Mas, não tenho nada no Uruguai. Eu gostei muito daqui e estou querendo tirar o CPF também”, diz. Na conversa, ele revela não ter data para a visita à terra natal. A meta é se estabelecer como brasileiro.

Viver em um país diferente pode ser bastante desafiador. Além da necessidade de se acostumar com uma língua diferente, a adaptação a uma nova cultura exige jogo de cintura. Com um pouco de sorte e muito carisma, o uruguaio tem conhecido o lado caloroso e hospitaleiro do povo brasileiro, mas isso não o impede de conhecer, também, uma face mais hostil de nosso país. Essa realidade não abala seu espírito, pois segundo ele, o preconceito existe em todo lugar.

O uruguaio se apaixonou pelas paisagens. A geografia de nosso país chama atenção. Entre os maiores países do mundo, cada uma das cinco regiões que compõem o Brasil apresenta uma imensa variedade climática e de formas de relevo. “Aqui tem serra, lá no Uruguai é muito plano. Aqui tem cachoeira, lá não tem cachoeira. Tem uma geografia muito distinta aqui”, destaca Flávio, que está alojado temporariamente na rodoviária de Frederico Westphalen.

Com ar nostálgico, Flávio conta sobre os vinhos e milanesas que ainda não encontrou no Brasil e sobre a família e amigos que ficaram para trás. Mantendo o alto astral, conclui que amizades ele faz em todo o mundo.

Frederico Westphalen, RS

*Esta é uma produção laboratorial e experimental, desenvolvida por estudantes do curso de Jornalismo da UFSM Campus Frederico Westphalen. O texto não deve ser reproduzido sem autorização. Contato: meiomundo@ufsm.br.

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