Time de futebol feminino gaúcho supera o preconceito e cativa o país
Andrei Sartori, Irênio Silva e Luís Guilherme Schmitz
Em uma equipe de futebol do interior gaúcho, 22 mulheres vestem um “manto” vermelho e preto, que não representa somente o time. O uniforme é uma identidade. Histórias individuais, mas um objetivo em comum: viver profissionalmente do futebol. No município de Tenente Portela (RS), com seus 13 mil habitantes, está o Esporte Clube Flamengo, equipe profissional fundada em 2021, mesmo ano em que conquistaram o Troféu do Interior, o primeiro título do clube.
O educador físico Tiago Rodrigues, 26 anos, foi um dos responsáveis pela conquista das Gurias do Yucumã. O atual treinador da equipe fazia sua estreia naquela competição. “Era o primeiro ano de projeto, passamos por muitas dificuldades. A emoção de conquistar o título não tem nem como descrever. Éramos uma equipe desacreditada, com poucos recursos. Vencer a competição foi algo único para nossa região”, destaca Tiago.
No começo, o time feminino não teve grande apoio do município e da região. A grande virada de chave foi quando o programa Esporte Espetacular, da Rede Globo, veiculou, em maio de 2022, para todo o país, uma matéria sobre a equipe. Naquele momento, a comunidade e os patrocinadores começaram a conhecer e a apoiar o projeto. “Depois da reportagem, veio a ascensão do Flamengo, crescemos nas redes sociais. Por causa do título naquele campeonato, conquistamos visibilidade. Mas faltou apoio no começo. Tinha algumas viagens que o Ildo [fundador do Flamengo] mesmo organizava o café da manhã. Parávamos num posto, e o café era do lado [de fora] do ônibus”, ressalta Tiago.
O elenco das Gurias do Yucumã é diverso. Além da oportunidade para jogadoras da região, a equipe conta com integrantes de cinco diferentes estados do Brasil, de três aldeias do RS e da Argentina. Na temporada de 2023, as Gurias do Yucumã disputam pela terceira vez o Gauchão Feminino. Neste ano, o clube ficou na 80ª colocação no Ranking da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que aponta os melhores clubes brasileiros.
O começo
O futebol feminino no Brasil teve origem por volta de 1920, quando a reunião de mulheres para jogar era tratada como uma performance ou show, muitas vezes em circos. Só em 1983, surgem oficialmente dois clubes de futebol para mulheres, o Radar, no Rio de Janeiro, e o Saad, em São Paulo. A grande mudança dentro dos cenários nacional e estadual, em busca da valorização da categoria, foi em 2016, quando a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) obrigou as equipes que disputavam suas competições a terem, até 2019, um time profissional de futebol feminino. Em 2017, dentro do cenário estadual, surgia o Campeonato Gaúcho de Futebol Feminino, organizado pela Federação Gaúcha de Futebol (FGF).
Impulsionado pelo campeonato gaúcho, Ildo Scapini, 62 anos, morador de Tenente Portela, decidiu criar um clube de futebol profissional na cidade. Ildo enfrentava uma complicada situação pessoal. “De 2007 a 2015, mantive uma escolinha de futebol masculino. Em 2015, tive uma temporada parado por conta de uma depressão. Retornei a pedido da minha médica. Ela disse que eu precisava voltar ao futebol. Então, tive a ideia de montar um time feminino”, conta Scapini. Mesmo com o projeto em mãos, Ildo demorou para concretizar o sonho. Foram cinco anos para, só em 2021, conseguir a regularização na Federação de Futebol. O Flamengo pode, então, fazer a estreia no Campeonato Gaúcho Feminino.
Na primeira participação, o time foi afetado pelo pouco apoio de patrocinadores e da comunidade. “Tivemos grandes dificuldades para organizar os treinamentos, os materiais esportivos, as primeiras bolas para treinar. Tive que adquirir no Paraguai. Comprei 50 bolas, por 8 reais cada”, completa Ildo Scapini. Mesmo assim, as Gurias do Yucumã, na primeira participação no certame, já encantaram o Brasil com simplicidade e com talento. Foi quando a cidade começou a abraçar o clube, determinante para a conquista do Troféu do Interior no Gauchão e a vaga para o Brasileirão Série A3.
Futebol como profissão
Mesmo com a paixão compartilhada pelo futebol, a realidade das atletas do Flamengo é diferente. Muitas têm um trabalho além do esporte, e buscam conciliar de uma maneira produtiva as duas funções. A seriedade com os compromissos está dentro e fora de campo, no trabalho diário e na rotina de treinos, mas sempre com a ambição de chegar mais longe nos campos.
Carla Dalla Cort, 31 anos, é uma das jogadoras mais longevas do elenco atual, tendo ingressado na equipe no começo do projeto. A volante das Gurias do Yucumã conheceu o time quando ainda jogava futsal em Erval Seco (RS). “Quando me mudei para Erval Seco, acabei jogando o estadual de futsal dois anos pelo Cometa e um ano pelo Guarani. Quando o projeto do Guarani acabou, meu namorado foi avisado por um amigo que o Flamengo precisava de jogadoras. Nisso, decidi fazer o teste e passei”, conta a jogadora. Mesmo sendo um dos pilares do plantel, Carla não esconde a admiração pela profissão que exerce fora dos gramados. Ela é cirurgiã dentista e tem sua própria clínica de odontologia na cidade onde mora. “Eu não vivo do futebol, trabalho como dentista. Normalmente, consigo gerenciar bem as duas profissões já que a gente acaba treinando e jogando somente no fim de semana”, conclui Carla.
Renata de Oliveira, 26 anos, é natural de Santa Bárbara do Sul (RS), mas mora hoje em Panambi (RS). Seu amor pelo futebol é antigo. Ela conta que, desde antes de nascer, já estava envolvida com o esporte. “Meu amor pelo futebol surgiu na barriga da minha mãe. Ela jogava quando estava grávida de mim”, comenta Renata. O futebol não é sua principal fonte de renda, pois além de jogar, Renata trabalha em uma loja de suplementos e dedica-se a manter uma rotina disciplinada. Ela acorda cedo todos os dias para treinar na academia. Os finais de semana são momentos dos treinos com o time, conta Renata, que concilia diferentes áreas da vida e atua como uma verdadeira amante do futebol.
Algumas delas não exercem uma profissão extra, mas buscam hoje uma formação universitária. Andressa Kreski, 17 anos, chegou nesta temporada à equipe. A atleta já passou pelo Brasil de Farroupilha e Avaí Kindermann. Hoje, faz faculdade de Educação Física e equilibra os estudos com os treinamentos. “Meu maior objetivo dentro do futebol é crescer, evoluir e poder representar clubes maiores. Mas caso isso não aconteça, estou cursando a faculdade para, pelo menos, poder estar dentro deste mundo. O futebol é algo muito importante para mim, não me vejo fora dele”, destaca.
Andressa é uma das dez jogadoras que moram na casa das atletas, moradia mantida pelo time para jogadoras que não são da região e não teriam suporte financeiro para viver em Tenente Portela. “Morar na casa das atletas é uma experiência única porque podemos conviver com diferenças. Com isso, posso evoluir bastante. É uma verdadeira família, tem briga, discussão, mas sempre aquela conversa resolve os problemas”, completa.
O Flamengo criou o projeto “Casa das Atletas”, que oferece hospedagem gratuita para as jogadoras. O fundador do clube, Ildo, é responsável pelo alojamento. As atletas que ocupam esse espaço são responsáveis por preparar suas próprias refeições, mas recebem suplementos alimentares fornecidos pelo clube. Além disso, elas têm acesso a uma academia em Tenente Portela, que é bancada pelo time e pode ser utilizada três vezes por semana.
Sonhar e conquistar
A preparadora física da equipe, Mônica Botton, ocupa esta função desde a fundação do clube. Com a preparação sendo feita da melhor maneira, as expectativas e objetivos para esse ano são as melhores possíveis. “As atletas se preparam semanalmente. Mandam vídeos de treinos extracampo no grupo durante a semana. Estamos fazendo o melhor do nosso trabalho para poder conquistar novamente o Troféu do Interior”, afirma.
Sendo técnico do Flamengo de São Pedro, Tiago Rodrigues demonstra que tem sonhos altos com sua equipe para esta temporada. “Eu tenho o sonho de nós participarmos novamente do Brasileirão Série A3, este é o objetivo deste ano”, ressalta. Além de correr atrás dos títulos, a formação de atletas também é algo a ser trabalhado pelo clube, que serve como espaço de projeção de atletas. “Esse é um dos objetivos também do Flamengo, dar oportunidade para essas gurias alavancarem ainda mais o projeto, para que elas consigam ir para um clube maior e realizar o sonho delas de profissional, com uma estrutura melhor”.
Os sonhos de todos eles são possíveis graças ao grande desenvolvimento que a categoria teve nos últimos anos. Um relatório da Federação Internacional de Futebol (FIFA), demonstra que o crescimento de patrocinadores nas principais competições de futebol feminino aumentou de 11% para 77% após 2021. Atualmente, no cenário nacional, todos os grandes campeonatos na categoria têm transmissão em rede aberta. O Brasileirão tem transmissão na TV aberta a partir da fase de quartas de final, os jogos da primeira fase são por conta de um canal pago. Na TV aberta, a maior audiência de uma partida do futebol feminino foi com a Rede Globo, na transmissão de Estados Unidos e Holanda, na final da Copa do Mundo de 2019.
Ildo Scapini, tem muitos sonhos para realizar com o clube, o principal deles é conquistar novamente o título do interior e poder disputar o Brasileirão Série A3. “Queremos novamente conquistar essa competição para poder organizar melhor, ter melhores condições e o principal objetivo é não depender dos órgãos públicos, e ter nossa própria receita”, conta. O fundador do clube sabe que a principal função do Flamengo não é só formar atletas para o futebol e, sim, formar seres humanos melhores. “O nosso projeto não tem como principal objetivo somente ensinar a jogar futebol, mas retirar meninas da rua, formar o caráter delas dentro do clube”, finaliza Ildo.
* Tenente Portela/RS
*Esta é uma produção laboratorial e experimental, desenvolvida por estudantes do curso de Jornalismo da UFSM Campus Frederico Westphalen. O material não deve ser reproduzido sem autorização. Contato: meiomundo@ufsm.br.