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A exaustão invisível



O esgotamento físico e emocional das mulheres é despercebido e naturalizado há anos

Texto e foto: Mabel da Rosa

Era início do ano letivo e eu estava mudando de apartamento. Minha rotina voltaria ao normal em três dias, imaginava. Mas eu estava carregando um cansaço imenso de lidar com contratos, viagens, namoro e um novo semestre da faculdade. Eu e meu namorado nos mudamos e fomos dividindo as tarefas, seguindo assim por um mês inteiro. Na primeira semana, com a volta das demandas, a minha cabeça não parava. Eu pensava na faculdade enquanto organizava as coisas, e na montagem dos móveis enquanto estava nas aulas. A exaustão já tomava conta de mim. 

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem cerca de 104 milhões de mulheres no Brasil. Os dados do Censo Demográfico de 2022 mostram que elas são 51,5% da população do país. O estudo Esgotadas, da organização não governamental Think Olga, que aborda empobrecimento, sobrecarga de cuidado e o sofrimento psíquico das mulheres, fez um relatório sobre as áreas da vida delas, e concluiu que nenhuma está minimamente satisfeita em nenhuma área da vida.  

Ninguém nasce mulher, e sim torna-se mulher, nos mostram os estudos feministas. É uma construção que se dá em meio aos desafios da vida. A transição mental e física da infância para a pré-adolescência traz inúmeras mudanças, assim como a fase de menina para mulher, que gera grande impacto, e para muitas, um impacto assustador. 

Essa idade, geralmente, traz o aumento de responsabilidades, da pressão, e uma rotina que leva ao cansaço. Os compromissos surgem todos os dias e só aumentam. A pressão social e a ansiedade parecem ser companheiras para lidar com as provas da escola e da faculdade, para cuidar de uma casa, para se manter estudando, para ter um trabalho. Além disso, vigiar a saúde e o bem estar da família, função historicamente atribuída  às mulheres. 

É comum que a sociedade responsabilize o sexo feminino por vários papeis, dentro de um esteriótipo do que cabe e do que é ser mulher. Dona de casa, casada, que cuida do lar e dos filhos. É quem lava a louça, a roupa, alimenta as crianças, assim como quem trabalha fora, chega em casa à noite e brinca com enfrenta a jornada interna do lar, mesmo com o estresse e o cansaço de um dia que já foi cheio.

Desde a infância, as mulheres são cobradas sobre como se portar e o que fazer, como que destinadas a determinadas funções. A necessidade de repesar estas questões já apareceu até como tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Em 2023, o Exame solicitou uma redação sobre o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil. Uma realidade presente na maioria das famílias brasileiras, mas invisibilizada. Nos últimos dez anos, o país testemunhou um acréscimo de 1,7 milhão de mães que assumiram a responsabilidade exclusiva pela criação dos filhos, sem a colaboração dos pais. 

CANSAÇO MENTAL 

Em 2019, a Síndrome do Burnout faz parte da Classificação Internacional de Doenças (CID-11). Desde lá, muitas pessoas passaram a identificar com mais clareza os episódios de  sobrecarga que já tinham ou tiveram. Burnout é uma alteração psíquica provocada por exaustão extrema e diretamente relacionada ao ambiente de trabalho. Por isso, ela é conhecida também como a “síndrome do esgotamento profissional”, que tende a surgir devido ao acúmulo de estresse.

A estudante Camila Fagundes de Lima, 20 anos, desde criança teve o sonho de ser médica. Desde 2022, vem se preparando para ingressar na faculdade. No primeiro ano de cursinho, ela não conseguiu ser aprovada. Foi um choque de realidade. Havia mudado de cidade, de casa, e de vida para conquistar o objetivo. Tentou recuperar o tempo perdido estudando até dez horas por dia. A crença de que precisava dar conta do conteúdo era grande ao ponto de não se permitir descansar, até mesmo quando estava passando mal. Como a demanda do cursinho estava muito pesada, a ansiedade chegou em um nível muito maior do que imaginava, resultando em um problema gástrico.

Eu parecia que estava dando tudo de mim e não conseguia ver resultado. Em algum momento, quando dava uma evoluída, baixava de novo [no resultado das provas]. Estava muito difícil e eu comecei a ver que eu não estava buscando auxílio médico, porque eu estava nessa coisa de ‘não posso perder tempo’. Estava acontecendo de eu me sentir muito mal. Era o meu corpo dando sinais do estava acontecendo com a minha parte mental. Minha psicóloga me falava disso em todas as sessões”, relembra. 

Muitas meninas se veem na obrigação de dar uma melhor condição de vida para si e para a família. Elas lutam por isso todos os dias, e mesmo seu cansaço sendo desvalorizado e diminuído, dar um futuro melhor para a família é indispensável, ou ao menos imprescindível retribuir todo o esforço empenhado por anos nelas. 

As mulheres ainda assumem a maior parte das responsabilidades domésticas, mesmo quando trabalham fora de casa. Em muitas famílias, elas são as principais cuidadoras dos filhos, o que pode envolver desde atividades diárias até a gestão de todos os compromissos escolares e de saúde.

Bianca*, 26, tem um filho de três anos. Mãe, filha, e responsável pelo lar, concilia os outros compromissos que a vida exige, batalhando por seus objetivos todos os dias. Ela conta que nos primeiros meses de vida do filho, a prioridade era ele. Qualquer roupa estava boa, qualquer calçado, um coque no cabelo e nada mais. O importante era a criança estar bem, bem vestida: “Quando tu é mãe, tu esquece que é mulher”, comenta.

Mãe aos 23 anos, ficou grávida no período da pandemia do Covid-19, em 2020. Assim, conta que foi impedida de fazer coisas “normais” que uma grávida faz, como por exemplo, caminhar pela rua ao ar livre. Bianca foi uma das pessoas afetadas pela falta do convívio social e ficou deprimida, pois estava isolada, gerando uma criança dentro de casa, sem ter contato com as pessoas e com o mundo lá fora. Além disso, estava cursando uma graduação da qual não gostava. Decidiu trocar de curso e reiniciar do zero. “[Naquele momento] Tu só pensa na criança, só vive pela criança. Depois, eu não sabia voltar a ser eu”, reflete. Recorda que se sentiu perdida, sem olhar para si e para a sua condição mental. Em uma consulta com sua a psicóloga, a básica pergunta sobre o que ela gostava, ficou sem respostas. Percebeu que seus gostos eram os de outras pessoas, principalmente do filho. 

O relatório Esgotadas indica que 45% das mulheres brasileiras têm um diagnóstico de ansiedade, depressão, ou outros tipos de transtornos mentais, especialmente decorrentes do contexto pós-pandemia de Covid-19. A maioria desses sintomas foram acarretados pelo isolamento, pelo medo, pelo luto, pela insegurança financeira e pelo sentimento de incerteza. Segundo a pesquisa, 68% dos casos de ansiedade foram registrados em mulheres, com destaque para as faixas de 20 a 40 anos para depressão, e de 15 aos 40 anos para ansiedade. 

CASA, REFLEXO DA MENTE

Três das quatro entrevistadas para esta reportagem relataram que a carga de limpar e organizar a casa recai nelas, mesmo morando com outras pessoas. Maitê*, 29, microempreendedora, também foi mãe jovem. Na chegada do filho, hoje com cinco anos, ela passou a conviver com a culpa por não ter conseguido amamentar. A sobrecarga mental e física com a nova rotina de uma criança recém nascida, mais as demandas de cuidar da casa e do casamento, pesaram. Sentia não conseguir se doar 100% em todos os afazeres: “Nasce uma mãe, nasce a culpa”, desabafa.

Querer abraçar o mundo cansa, mas nem sempre é só o físico, é um cansaço mental. Estudos confirmam que a carga do trabalho e do estudo esgotam a energia das pessoas, causando estresse e irritabilidade mais frequente, geralmente em mulheres. Segundo pesquisa da plataforma Vittude, mantida por psicólogos e voltada a pessoas que procuram uma terapia mais acessível, 10,4% das mulheres enfrentam níveis graves ou extremamente graves de estresse, um índice mais alto do que o observado nos homens. No âmbito da saúde mental, essa disparidade persiste, principalmente nas crises de ansiedade severa que seguem em maior proporção entre elas (15,72%). E na realidade da mulher brasileira, chegar em casa significa roupa a ser estendida, comida a ser preparada, cadernos e deveres dos filhos para serem revisados, além das demandas por atenção e cuidado das crianças. A mulher olha para tudo à sua volta, menos para sua condição mental.

SOBRECARREGADAS

Ao longo da história, o imaginário sobre a mulher foi sendo imposto por achismos e construções machistas da sociedade. O feminino esteve associado às bruxas ou à pessoas maléficas, carregando inúmeros adjetivos pejorativos e depreciativos. O feminino era sempre o errado e inadequado. Excluídas por séculos dos ambientes de trabalho fora de casa, muitas abandonaram os negócios familiares por falta de espaço. Eram taxadas de incapazes de ocupar papeis de liderança e de destaque por uma pretensa instabilidade mental. Por muito tempo não puderam votar, decidir sobre questões financeiras e do seu próprio corpo. Até hoje, os reflexos disso fazem com que as mulheres sejam consideradas menos capacitadas do que homens. 

De acordo com o relatório Women in the Workplace 2022, da McKinsey & Company, um estudo com uma das centenas de empresas participantes, mostra que a promoção de um nível básico para cargos gerenciais é majoritariamente masculina. No geral, 60% dos gestores analisados ​​eram homens. Os homens superam significativamente as mulheres no nível gerencial, e elas nunca conseguem alcançá-los. “Há simplesmente muito poucas mulheres promovidas a cargos de liderança sênior”, diz a pesquisa. 

A carga mental ainda é agravada por uma expectativa social de que toda mulher veio ao mundo para casar e ser mãe. O roteiro ainda inclui, no caso do trabalho fora de casa, uma boa carreira profissional. E, nos espaços em que atuam, devem atender aos padrões estereotipados, ou seja, se portar como a sociedade espera. E se calar.

Maitê percebeu isso. Ela é a filha mais velha de três irmãos. No relato, lembra da mãe, que teve um casamento marcado por momentos difíceis. Mesmo assim, seguiu em frente porque, afinal, tinha uma casa, um marido e três filhos para cuidar. Quando Maitê se viu seguindo os mesmos passos da mãe, percebeu que era hora de terminar o relacionamento e preservar o filho, podendo cuidar melhor dele.

VOCÊ DORMIU ESSA NOITE? 

Algumas mulheres passam por estresses contínuos que são um desafio significativo para a saúde do sono. É o caso de Bianca. Ela acorda todos os dias por volta das 5h da manhã. Concilia faculdade, trabalho e família. São quatro percursos de ônibus para os dois empregos em cidades diferentes. Só vê o filho à noite, na volta para casa. Hoje, aproximadamente 15% dos domicílios brasileiros são chefiados por mulheres mães, que enfrentam uma jornada solo. 

Segundo um estudo publicado na revista Sleep Epidemiology, 65,5% dos brasileiros têm sono de má qualidade e dormem de 6,5h à 7,7h por noite. Gislaine conta que quando virou mãe, não conseguia dormir durante uma noite inteira. “Tu fica preocupada com a criança. Ela dá uma mexida, tu já desperta. Não se dorme, tu não relaxa”. 

A sobrecarga consome as mulheres. Elas acabam deixando de lado seus sonhos e seus desejos. Muitas abandonam projetos pessoais, trabalho, formação. No correr diário, repleto de tarefas que não são só nossas, mas que realizamos sozinhas, esquecemos do principal, nós mesmas. Perceber-se vulnerável é um ato de coragem, para o qual não fomos educadas. A sociedade nos dize que se abalar, se frustrar é ser fraca e incapaz. Poderia dizer que somos parecidas por lutarmos pelos mesmos direitos. Mas não somos. Talvez hoje, sejamos mais parecidas por carregar a mesma sobrecarga e a mesma exaustão, fingindo estar tudo bem. Mas seguimos fortes, porque precisamos ser. 

*Nomes fictícios.

FREDERICO WESTPHALEN, RS

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