Há 40 anos, em Santa Maria (RS), o movimento estudantil participou de um capítulo importante na resistência contra a ditadura militar.
Texto e Fotografia: Raquel Pereira Teixeira
“Um, dois, três, quatro, cinco mil queremos eleger o presidente do Brasil”. Em meio ao cenário político conturbado do início da década de 1980, as Diretas Já ganharam força e se tornaram um marco na luta pela redemocratização do país.
Você já imaginou como seria não ter o direito de votar para presidente do Brasil? Ser fã de um artista e descobrir que as músicas dele foram censuradas? Esses questionamentos só puderam ser feitos graças às Diretas Já. Esse movimento revelou o quão estranho é sermos privados de participar das decisões políticas.
As Diretas Já tiveram início em 1983, quando o Brasil estava sob o comando do general João Figueiredo. A principal reivindicação era a realização de eleições diretas para a escolha do presidente, acabando com o sistema de eleições indiretas pelo Congresso Nacional. A campanha recebeu amplo apoio popular e mobilizou diversos setores da sociedade, incluindo artistas, intelectuais e estudantes.
Claudio Langone, Diomar Konrad, Dolcimar da Silva, Francesca Ferreira, Hilton Fagundes, Girlene Coelho e Luiz Antônio Araujo. Os sete eram estudantes da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em 1984, e se envolveram no movimento estudantil contra a ditadura militar.
O ápice do movimento das Diretas ocorreu no mesmo ano, quando manifestações em várias cidades do Brasil reuniram milhões de pessoas. Comícios, shows e figuras públicas tomaram as ruas. Em Santa Maria, aproximadamente 20 mil pessoas se concentraram na Praça Saldanha Marinho, no dia 12 de abril de 1984. Entre os presentes, estava Diomar Konrad, 60 anos, cronista e historiador, que lembra vividamente do evento: “Tinha muita gente presente no dia, o movimento estudantil estava em peso”.
Diomar era estudante de Publicidade e Propaganda na UFSM, e conta que a Universidade foi o principal foco de mobilização estudantil em Santa Maria. Os universitários se engajaram ativamente nas manifestações, organizando protestos, debates e ações que buscavam não apenas a redemocratização, mas também informar os demais acerca do que estava acontecendo no país.
Em 2024, o grande ato das Diretas Já completa 40 anos. Esse evento marca um período crucial na luta popular e a transição do regime militar para a democracia. A demanda por eleições diretas para presidente simbolizava a busca por participação popular efetiva e o fim do controle militar sobre o processo político. O objetivo era restaurar a soberania dos cidadãos na escolha de seus governantes.
Movimento estudantil
“O movimento estudantil era muito mais ousado nesse período do que o movimento docente e o movimento dos funcionários [técnicos], ele acabava puxando muitas pessoas”, conta o engenheiro químico Claudio Langone, 58 anos. Em Santa Maria, a organização estudantil tem uma força histórica significativa. Langone conta que na década de 1980, os estudantes foram uma das forças protagonistas nas Diretas Já, organizando manifestações e mobilizando a população local para exigir eleições diretas. Até hoje, a cidade é centro de intensa atividade política, onde os jovens continuam a se engajar em questões atuais.
A ditadura militar impôs uma ideologia autoritária de repressão que contrastava com os ideais democráticos que os estudantes defendiam. Eles enfrentaram perseguição política severa, resultando em prisões e mortes de ativistas. Esses abusos impulsionaram a mobilização estudantil por liberdade, culminando nas manifestações das Diretas Já.
“A vida acadêmica é um universo à parte”, conta Dolcimar da Silva, funcionário público, 63 anos. Ele estudava Comunicação Social à época. Inicialmente, não se interessava pelo movimento discente, mas ao ver a intensa presença de estudantes nas mobilizações, percebeu que não tinha como não se envolver. “Quando cheguei na UFSM e vi a comoção das Diretas, foi uma experiência totalmente diferente do que eu estava acostumado”.
Dolcimar relembra que a música Coração de estudante, de Milton Nascimento, tornou-se o hino do movimento estudantil. Tocada em quase todos os eventos, a canção refletia a história de milhares de pessoas que perderam entes queridos e lutaram para sobreviver durante a ditadura militar. Em seus versos, Nascimento enfatizava que o coração simboliza esperança. Um coração jovem demonstra apreço pelo mundo e pelos amigos, buscando uma sociedade mais igualitária e sem preconceitos. Como diz a música, “Há que se cuidar da vida, há que se cuidar do mundo”. Mas não era só Milton.
“Eu via os artistas que eu gostava sendo contra a ditadura. Por isso, eu pensava que se um sujeito capaz de realizações artísticas e intelectuais tão admiráveis acha que precisa se manifestar sobre isso, devia ser algo importante, eu precisava prestar atenção,” reflete Luiz Antônio Araujo, jornalista, 57 anos, fã de Chico Buarque desde a juventude. A música e a presença carismática de Chico inspiraram muitos jovens, especialmente os estudantes universitários, a se envolverem na luta contra a ditadura. Naquela época, todos conheciam o artista completo que Buarque representava.
No começo, Luiz Antônio hesitava em se engajar no movimento. “Eu não queria me envolver, achava que iria exigir de mim uma postura mais rígida e mais burocrática, mas ver Chico Buarque, alguém que eu admirava, se posicionando, me fez repensar.” E continua: “Acho que o que me fez mudar de ideia foi a imensidão, a dignidade e a profundidade do movimento que tomou as ruas contra a ditadura”.
Araujo revela que sonhava com o dia em que a ditadura militar acabaria e se questionava se ainda estaria vivo para presenciar isso. Esse sentimento de dúvida e esperança foi o que o motivou a comparecer ao ato principal das Diretas Já em Santa Maria.
Luiz Antônio, Dolcimar e outros cinco estudantes, junto com seus colegas, receberam a convocação nos corredores da UFSM por meio de panfletos. “Pelo Brasil inteiro, milhares de pessoas estão indo às ruas em grandes manifestações pela conquista das eleições diretas para presidente. Em Santa Maria, no próximo dia 12 de abril, às 17:30 na praça Saldanha Marinho, haverá uma destas manifestações. O sucesso dela e das eleições diretas depende de você”, dizia o texto.
O dia do ato
Em abril de 1984, grávida de cinco meses e com 21 anos, Girlene Coelho era aconselhada pelos colegas a ir embora do ato pois a força militar estava se tornando perigosa para os manifestantes. Mesmo assim, ela decidiu ficar e lutar, embora tenha saído mais cedo que os demais. Atualmente, a servidora pública de 61 anos, conta que tem orgulho da participação nas Diretas Já. Na época, cursava Educação Artística na UFSM. Ingressou no movimento estudantil nos primeiros anos de faculdade.
Quando as Diretas Já tomaram força na cidade, ela explica que o principal mecanismo para incentivar as pessoas a participar das manifestações era o sentimento coletivo de ódio contra a Ditadura Militar. Segundo Girlene, ninguém aguentava mais aquela imposição de ideias, a falta de liberdade de expressão. O desejo de acabar com a ditadura era o que motivava a todos.
Girlene, assim como várias outras pessoas, foi convocada ao ato por panfletos confeccionados pelos próprios estudantes. Eles eram a forma mais eficaz de divulgação das ações do movimento estudantil em Santa Maria. O arquiteto Hilton Fagundes, 61 anos, produziu alguns desses panfletos para incentivar as pessoas a participarem das Diretas Já. Ele conta que vários outros artistas também utilizavam da sua arte para propagar a importância de participar de encontros políticos. “Na hora de entregar os papéis nós já sabíamos quem era mais conservador e não iria aceitar, mas mesmo assim oferecemos para todo mundo”.
Além dos panfletos, houve outras formas de mobilizar os estudantes a participarem das Diretas. O famoso “de boca em boca” ajudava a circular as informações do ato de Santa Maria. Haviam reuniões e assembleias nas sedes dos Diretórios Acadêmicos (DAs) dos cursos de graduação e do Diretório Central dos Estudantes (DCE) com massiva presença dos estudantes.
“Meu pai ficava enlouquecido, preocupado com o que poderia acontecer, mas ficamos bem”, comenta a professora Francesca Ferreira, 61 anos, rindo. “A concentração dos estudantes ocorreu em frente à sede do DCE. Havia muita gente segurando bandeiras e vestindo camisetas com as cores do Brasil”, relata. Ela lembra de assistir à passeata da sede até a praça Saldanha Marinho de sua sacada, onde convidava amigos para tirar fotos da multidão. Francesca e os outros seis estudantes descreveram uma experiência marcada por tensão e por esperança.
Em torno de 20 mil pessoas ouviam as maiores representações políticas da cidade discursando com força no palanque. Outro dos panfletos distribuídos no ato dizia: “Não queremos continuar sendo governados por este regime e lutamos por eleições livres e Diretas Já! Sem censura, aparatos repressivos, com amplas liberdades políticas e a organização de todas as correntes de opinião”. A multidão gritava “Diretas Já!” e “O povo quer votar”.
“Era tenso, todo mundo colocou muita expectativa”, diz Luiz Antônio. O impacto das Diretas Já em Santa Maria foi evidente quer pela participação massiva das pessoas, quer pelo fortalecimento do sentimento de unidade e resistência entre os estudantes. Esse evento, que reuniu uma diversidade de vozes clamando por mudanças, refletiu a insatisfação generalizada com o regime vigente e o anseio por uma democracia verdadeira.
Embora a Emenda Dante de Oliveira não tenha sido aprovada, o movimento representou um passo importante para o país. Apresentada em 1983, a emenda não alcançou os 320 votos necessários na Câmara dos Deputados em 25 de abril de 1984, mas apenas 298. As Diretas Já expressaram o desejo popular por eleições diretas e desencadearam mudanças políticas e sociais fundamentais, culminando na eleição indireta de Tancredo Neves em 1985 e na redemocratização do Brasil com a Constituição de 1988.
ESTEIO, RS; IJUÍ, RS; PORTO ALEGRE, RS; SANTA MARIA, RS