Uma viagem pelos pratos, gostos e afetos da culinária latino-americana.
Texto e Fotografia: Bruna Einecke.
É meio dia e o cheirinho de comida está no ar. O arroz sendo refogado com alho e cebola dá um toque especial. O barulho da panela de pressão avisa que o feijão está quase pronto. Os pratos estão sendo postos à mesa e você quase pode sentir o gostinho do que te espera assim que se sentar para comer. É hora de hacer una pausa na correria para fazer uma das coisas mais importantes da vida: comer.
Um almoço em casa é uma das lembranças mais carinhosas que temos com nossos familiares. E o entorno da mesa é um lugar único para isso. É um espaço de ligação e afeto entre as pessoas. Quem não tem ao menos uma história de almoço de domingo presa na memória? Aquele aniversário especial ou Natal comemorado com pessoas que se ama? Mais do que ingerir nutrientes e vitaminas, comer juntos é um ato afetivo, que transmite costumes, tradições e expressa nosso carinho pelo outro.
Nos países latino-americanos isso é muito visível, pois é em volta da mesa que recebemos todos em nossas casas. Adriana Gamboa, natural da Venezuela e professora visitante da Universidade Federal de Santa Maria, campus Frederico Westphalen, comenta uma experiência de quando viveu longe de seu país. “Quando morei no Canadá, me lembro que um amigo venezuelano foi para minha casa e eu preparei um arroz. Eu só tinha o ají dulce [um tipo de pimentão] para pôr ralado em cima. Quando ele comeu, perguntou ‘o que tem no arroz?’ e eu respondi ‘ají dulce’. Ele falou, na hora, que era por isso que estava tão delicioso… É um sabor, uma lembrança da terra que não há em nenhuma parte do mundo”, conta ela.
Em nosso continente, a cozinha faz parte do cerne da casa. É nela que passamos a maior parte dos momentos em família. Lá, não estamos apenas cozinhando, estamos criando vínculos e produzindo memórias.
A psicóloga Mariana David, co-criadora do projeto Cozinha como experiência, destaca a importância de comermos juntos, em volta da mesa. “O entorno da mesa é um lugar privilegiado para as famílias. Trocarem, se conhecerem… O quanto a gente perdeu isso por conta da tecnologia, de comer na frente da televisão, quanto não se privilegia mais um lugar do estar junto no entorno da mesa”, explica. Para ela, há a necessidade de se priorizar esse aspecto cultural latino-americano para a construção de laços mais sólidos entre as famílias.
Cozinha afetiva
A culinária, no dicionário de Oxford, está destacada como um conjunto de pratos, especialidades de uma localidade, região ou país. Porém, muito mais que apenas isso, a culinária tem o poder de tocar a alma de quem está comendo, trazer lembranças de momentos passados, compartilhar e trocar vivências entre as pessoas.
Izabelly Albornoz, estudante de Geologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e filha de Cláudio, chileno, fala da mescla cultural da sua família. “Sempre que a gente se junta, cada um prepara um prato… um prato brasileiro, um prato chileno. A gente já levou espeto, porque lá a gente não encontra espeto para churrasco. O pai já fez uma churrasqueira lá também. Nossa família é bem misturada”.
A realidade de Izabelly é, também, a de muitos outros latino-americanos. Nosso continente é o resultado da união de diversas culturas que perdura até os dias atuais. Por isso, é tão difícil notar as semelhanças que existem entre nós. Na culinária, contudo, essa similaridade fica mais perceptível. Ingredientes como milho, aipim, abacate, feijão, estão constantemente presentes em nossas refeições, mesmo que utilizados de formas diferentes.
No Brasil, por exemplo, temos o costume de tomar a vitamina de abacate adocicada. Em outros países latinos, ele é consumido salgado, como a guacamole, que é típica do México. Cláudio Albornoz, que reside no Brasil há 35 anos, conta que em seu país natal, geralmente se come abacate com pão e que nossa vitamina, não existe lá.
Mesmo que rica nas diferenças, é isso que torna nossa culinária tão especial. Com os mesmos ingredientes se pode preparar mil e um pratos, com temperos, modos de preparo e jeitos de serem servidos, diversos.
Culinária é política
O continente latino-americano é composto por mais de 669 milhões de pessoas com diferentes costumes, tradições e formas de ver a vida. E isso reflete diretamente na nossa alimentação. Assim como a relação afetiva e cultural, o alimentar-se também é político. Escolher ir a uma feira de frutas e verduras, ao invés de comprar no supermercado, é uma das escolhas que destaca essa característica da culinária. Deixar de consumir produtos de origem animal, também.
Telmo Palácios é natural da Nicarágua, cozinheiro e proprietário do restaurante de comida vegana Los Pofi, em Santa Maria (RS). Ele diz que a escolha pela alimentação vegana se deu por uma questão de afetividade com relação à vida e a defesa dos animais. “O veganismo elevou meu estado de espírito, de consciência, de entendimento de humanidade”, diz ele.
Por mais que seja uma filosofia antiga, o veganismo ainda encontra dificuldades para adentrar na mesa e nos pratos das famílias latino-americanas. Telmo entende essa dificuldade de se aderir ao veganismo e tenta encontrar alternativas em seu restaurante. “Há comidas que são naturalmente veganas”, explica ele. O Gallo Pinto, um dos pratos preparados no restaurante Los Pofi, é um exemplo disso. É um prato típico da Nicarágua e outros países da região, que leva como base apenas arroz, feijão, alho, tomate, cebola e pimentão. “Arroz e feijão é um prato universal. O que modifica são os acréscimos culinários que você faz a cada prato”, conta.
Telmo chegou no Brasil aos 18 anos de idade. Aqui encontrou o rumo da culinária e, consequentemente, do veganismo. Para ele, a questão política da culinária ultrapassa o afeto. Por mais que possa amar uma receita, sua consciência da vivência de um todo, não somente visando nós, seres humanos, supera esses valores antigos. A culinária foi um acidente de percurso mas, em suas palavras, um bonito acidente. A vida poderia ter lhe colocado em qualquer outro ramo, mas o colocou entre as panelas, as colheres e o fogão.
Herança gastronômica
Apesar de ser difícil resumir a gastronomia latino-americana a um único prato ou ingrediente, não há como negar a forte herança cultural dos povos indígenas por todos os países latino-americanos. Os pratos que sobreviveram até a atualidade ganharam releituras e sofreram alterações, mas ainda se mantêm presentes em nossa cultura.
Na América Latina, a população indígena é de cerca de 45 milhões de pessoas, o que representa 8,3% da população total do continente. Ainda assim, a herança cultural dos povos originários continua muito presente. Comidas típicas do Brasil como a pamonha e o cuscuz, e também o nosso conhecido chimarrão, tem origem indígena e exemplificam a história da mescla cultural que há em todo território latino-americano.
Mariana David explica essa ligação afetiva e cultural. “Você contar dos costumes daquela cultura. O que é, como se faz um determinado prato. Como é feita determinada receita. Isso tem a ver com contar uma história de onde se vem”, comenta ela.
O país vizinho, Paraguai, é um exemplo de lugar onde a herança cultural destes povos ainda persiste. O Guarani, língua de um dos povos originários da região, é um dos idiomas oficiais do país desde 1992. E a culinária indígena tem forte impacto até os dias atuais; pratos como a chipa, a sopa paraguaia e o mbejú são símbolos nacionais.
Oscar Torres, paraguaio que reside no Brasil há mais de vinte anos, faz comidas típicas para lembrar da infância, e, de certa forma, mostrar aspectos da sua cultura original a outras pessoas. “Quando você está fazendo comida, você está mostrando cultura e interagindo com outras pessoas. Eu, quando faço, convido outras pessoas para conhecer”, comenta. Para ele, cozinhar é colocar seus afetos na comida, seja para lembrar o passado, das comidas que sua mãe fazia ou mostrar costumes e manter vivas tradições.
A América Latina é um continente grande. Não há, então, um só modo latino-americano de ser. E não há uma única resposta para o que nos congrega nesse lugar. A culinária, no entanto, é o que chega mais perto de ser uma resposta. O que nos torna nós, são, justamente, as diferenças. Parafraseando o escritor Mia Couto, cozinhar é um modo de acolher os outros. E não há nada mais latino-americano que acolher por meio da comida. Em nossas casas tudo gira em torno da cozinha. É na cozinha que recebemos, que agregamos alguém à família, que criamos conexões, que produzimos afetos, que acolhemos. Não há como falar de uma família latino-americana, sem falar da cozinha. Aqui, nós não apenas convidamos para comer. Convidamos para comermos juntos. O
Florianópolis, SC, Frederico Westphalen, RS, Santa Maria, RS e São Paulo, SP