Quem são e qual é a história das benzedeiras que mantêm viva a tradição do tratamento para doenças com ervas e orações na cidade de Cerro Grande (RS).
Texto e Fotografia: Júlia Negrello Decarli
Todos os dias, Claudetinha, Quidinho e Lorena dividem a rotina doméstica com os benzimentos que realizam. Benzem em casa, e os ambientes são repletos de orações e de ervas sagradas. Lá, recebem visitas de pessoas que almejam a recuperação das mais diversas doenças. As benzedeiras, com rituais aprendidos de gerações passadas, benzem tanto para as enfermidades originadas por causas naturais, como para doenças sem remédio na medicina convencional, como o quebrante.
Ainda que existam medicamentos, muitas são as pessoas que procuram por quem benza para a míngua, o rendido, as bichas, o ar na cabeça ou para mordidas de animais peçonhentos. São termos que as benzedeiras utilizam para falar de anemia, distensão muscular, vermes ou dor de cabeça.
Fui criada sendo benzida. Naturalizei esses rituais como parte do cotidiano. Mas nunca havia pensado em pesquisar como é a vida de quem benze e como são feitos os benzimentos. Até agora. Para essa reportagem, refiz um trajeto conhecido. O destino era minha cidade natal. Desta vez, no entanto, foi para ouvir e poder narrar essas histórias. Cerro Grande, com aproximadamente 2,5 mil habitantes, fica no noroeste do Rio Grande do Sul. Emancipada há 36 anos, guarda um fato curioso. Lá, vários moradores realizam rituais e orações para cura. Aqui, conto as histórias de três deles.
O começo
Minha avó, Maria Etelvina Decarli, tinha dois anos quando chegou à localidade com a família. Em 1947, Cerro Grande era distrito de Palmeira das Missões. Havia poucos moradores e as casas ficavam distantes umas das outras. Após a chegada da família, outras pessoas começaram a povoar o distrito. Por ser um vilarejo pequeno, não existia acesso facilitado a médicos e à medicina convencional, conta. O hospital mais próximo, ainda que com poucos recursos, era em Liberato Salzano. Só que para chegar lá, precisavam atravessar, de balsa, o Rio da Várzea. A cidade de Palmeira das Missões também era referência na região. Mas ir até a sede do município custava, em média, um dia e meio de viagem, feita a cavalo. Se uma pessoa estava em estado grave, ou com uma doença em estágio avançado, não conseguiria chegar a tempo de ter atendimento.
As ervas e as orações são uma forma de cura desde o início da humanidade. Em Cerro Grande, os benzimentos remontam ao início do povoamento na localidade, por volta da metade do século XX. Não existe uma data precisa sobre quando os benzimentos surgiram ali, mas isso aconteceu naturalmente, não só pela dificuldade no acesso a tratamentos tradicionais, mas porque essa sempre foi uma marca identitária da população.
Os benzimentos são simpatias e rituais de origem religiosa que, utilizando de orações e de plantas ditas de origem sagrada, em tempos antigos substituíram os remédios da medicina convencional quando o acesso a eles era mais difícil. Mas, mesmo com todo o avanço na medicina tradicional, como esses rituais ainda persistem? Para responder essa pergunta, com a ajuda de minha família, mapeei as benzedeiras e benzedores de Cerro Grande. Nessa reportagem irei tratar de ambos os gêneros apenas como benzedeiras, no feminino, visto que a maioria das pessoas ouvidas foram mulheres.
Muitos nomes surgiram, e as especialidades dos benzimentos são os mais diversos, desde as doenças do corpo até as enfermidades da alma. Conheci de perto e em detalhes três benzedeiras, as personagens dessa história: Claudete Maria Gonçalves, a Claudetinha, Lorena de Moraes Wagner e Euclides Guerra, chamado por todos de Quidinho.
A vida de quem benze
Claudete Maria Gonçalves, conhecida na cidade como Claudetinha, tem 64 anos. É natural de Rodeio Bonito, cidade vizinha a Cerro Grande, para onde mudou-se aos 15 anos. Morou inicialmente no interior, na linha Beatto, e há oito anos mora na cidade. Claudetinha aprendeu os benzimentos com a falecida sogra que, após a descoberta de um câncer, quis passar seu saber para alguém. Claudete aceitou o desafio. É necessário ter uma atribuição divina para conseguir benzer. “A pessoa tem de ter um dom, se não, não aprende”, confidencia. Junto, precisa de fé para que os rituais funcionem, tanto da parte de quem benze como de quem é benzido, destaca.
Vinda de uma família que tinha pouco contato com os benzimentos, a dona de casa só conheceu essa forma de cura com a família do falecido marido. A jornada levou Claudetinha ter renome na cidade pela quantidade de benzimentos que realiza. Está sempre de casa cheia. Perguntei se ela já havia se benzido. Disse que sim, mas quem a benzeu foi um companheiro de ofício, Quidinho. Era para uma picada de aranha. Quidinho não só benzeu Claudete como, logo depois, ensinou-a para que pudesse benzer quem precisasse. A relação de companheirismo permanece até hoje, sem competições. O que conta é a amizade e a vocação de fazerem algo que, dizem, é possível pelo dom e pela fé que possuem.
Euclides Guerra, conhecido como Quidinho, foi o único benzedor homem que entrevistei. Nascido no interior de Cerro Grande, morou a vida inteira no município. Hoje tem 66 anos, e começou a benzer aos 30. Perdeu o pai ainda quando era bebê, vítima da descarga elétrica de um raio. Até tinha interesse em aprender a benzer, mas não perguntava à mãe, que era benzedeira, por medo de que ela viesse a falecer. Há uma crença de que quando uma benzedeira passa os conhecimentos a outra pessoa, ela cumpriu seu papel no mundo e já pode morrer.
Quidinho aprendeu a benzer apenas observando a mãe. Mas começou a praticar os rituais, de fato, somente após o falecimento dela. Hoje, aprende novos benzimentos até via celular. Ele mesmo já foi procurado para ensinar, em troca de receber instruções de um benzimento mais eficaz do que o que ele fazia. Quidinho e Claudetinha contam que não existem fronteiras para o benzimento, para ajudar quem precisa. Se precisar, vale até benzer pelo celular, atendendo pessoas de outras cidades e estados. Segundo eles, se a pessoa tem fé, o benzimento funciona até a distância. A relação de amizade volta à conversa quando Quindinho fala de Claudetinha: “Quando chega um [uma pessoa] mal lá, que ela vê que ela sozinha não dá conta, ela me liga pra ajudar. E se chega um [mal] aqui, eu peço pra ela ajudar”, explica.
Lorena de Moraes Wagner foi a última benzedeira com quem conversei. Com 64 anos, nasceu na região que antigamente pertencia à cidade de Tenente Portela, o atual município de Derrubadas, no extremo noroeste do Rio Grande do Sul. Está em Cerro Grande há 31. Lorena aprendeu a benzer jovem, com 20 e poucos anos, não recorda a idade exata. Quem ensinou foi um vizinho de Derrubadas: “Meu finado pai foi erguer uma madeira e se rendeu [machucou]. Aí ele pediu para um vizinho vir benzer ele. E eu arrisquei: ‘o senhor não me ensina?’”.
Lorena diz que ao chegar em Cerro Grande aprendeu novos benzimentos. Em especial, o benzimento para a “míngua”, que conhecemos como anemia. Essa é uma das especialidades da dona de casa, uma das poucas pessoas no município a atender casos assim. O ritual tem muitas particularidades. Relembra do dia em que, ao encontrar um conhecido seu atravessando um riacho para benzer uma pessoa, conversaram sobre a benzedura. Ela recorda do diálogo: “Ah, a senhora é interessada em aprender? Eu gostaria de ensinar, mas ninguém quer pegar, e quando eu ensino outro, eu não posso mais [benzer]”, disse ele. Uma das peculiaridades é que o benzimento para a míngua deve ser ensinado na Quinta-feira Santa, precedendo a Páscoa, relata. Além disso, se uma benzedeira ou benzedor ensina o ritual, quem repassou os conhecimentos não pode mais benzer.
A principal razão pela qual nem todas as benzedeiras rezam para curar a míngua é que, segundo Lorena, quem benze “absorve” a energia da pessoa, que se instaura na benzedeira na forma de um desânimo. Lorena lembra que já ficou por até um ano sem realizar benzimentos porque teve depressão em uma das ocasiões em que fez o ritual para curar a míngua.
Claudetinha, Lorena e Quidinho são católicos praticantes. Na conversa para a reportagem, contaram sobre os tipos de benzimento que realizam. Os rituais, apesar de terem o mesmo intuito, são feitos de maneiras diferentes, devido ao modo como foram ensinados de geração para geração.
Os benzimentos
Existem rituais de benzeção tanto para doenças de causas naturais como sobrenaturais. O termo sobrenatural não aparece como normalmente é empregado. Aqui, se refere às doenças da alma, do espírito, aquelas que não têm cura por meio dos remédios convencionais. Os benzimentos atuam em diferentes tipos de enfermidades, naturais ou não. Entre elas, o famoso quebrante ou quebranto, as mordidas de animais peçonhentos, o rendido ou machucadura (distensão muscular), o ar na cabeça (uma dor de cabeça originada por exposicão longa ao sol ou a réstia desse), a míngua (anemia) e as bichas (vermes).
Quebrante ou quebranto, explica Claudetinha, é quando o bebê ou a criança não dorme, ou quando pessoas, até mesmo da própria família, acham a criança bonita. Isso pode colocar quebrante, uma espécie de inveja, que impede o desenvolvimento. Nesses casos, ela cita o nome da criança, reza a oração do Pai Nosso e entrega a intenção para os anjos da guarda, explica. Quidinho, para benzer esses casos, pega um galhinho de arruda, um copo cheio de água, cita o nome da criança com quebrante e repete as palavras “tem quebrante, tem mal-olhado, olho gordo, em nome da Santíssima Trindade intercedo a Jesus Cristo, que Deus te cure”, detalha.
Para o benzimento das bichas, o ritual é parecido nos três casos. Utiliza-se de um copo com água e pedaços pequenos de linha. Assim, a cada pedacinho de linha largado no copo, reza-se para Nossa Senhora e recita-se a oração do Pai Nosso. Depois, a benzedeira pede para a criança tomar a água. As diferenças de cada benzedeira estão na oração que fazem e nos versos que repetem, como no caso de Lorena, que fala “eu te benzo de bicha assustada, bicha “pasmada”, com o nome de Deus e da Virgem Maria”.
O rendido pode ser caracterizado por uma lesão ou uma distensão muscular, ocasionados pelo carregamento de peso em excesso, por exemplo. O benzimento pode ser feito de dois modos. Na primeira forma, realizada por Claudetinha e Quidinho, são utilizados pedaços de palha de milho. Depois, enche-se um copo ou xícara com água fervente e se despeja o líquido sobre um prato. A benzedeira coloca a xícara vazia virada para baixo sobre o prato e relata que se a pessoa estiver de fato machucada, a água borbulha de fervura, mesmo sem estar em contato com o corpo, e o copo absorve toda a água numa espécie de vácuo. O outro modo de benzer é o adotado por Lorena. Como em uma costura, simulando uma forma de unir o músculo distendido. A benzedeira pega uma folha de laranjeira e pergunta “o que que eu cozo? Osso rendido, nervo torto e carne rasgada”. Depois, costura três cruzes na folha com agulha e linha.
Mesmo que para curar uma mesma enfermidade, a forma de realizar o benzimento pode ser distinta. Diferente de outras pessoas, Claudetinha, por exemplo, pede para o benzido rezar uma novena para complementar o ritual.
A fé
Para que o benzimento funcione é preciso fé, reiteram as três benzedeiras. Mas não uma fé unilateral, vinda somente da benzedeira. Depende de uma crença no ritual por parte de quem é benzido: “Porque é a tua fé que vai te curar. Deus te dá um dom sobre a tua fé”, explica Claudetinha.
As três benzedeiras ainda ressaltam que, ao benzer, não existe distinção entre as pessoas, mesmo em situações de desavenças pessoais. Se alguém precisar de ajuda, irão ajudar. Nas conversas, percebi também a relação dessas pessoas com a medicina tradicional. As benzedeiras até aconselham que a pessoa procure também por remédios convencionais para que complementem o processo de cura da doença.
Por meio da fé das pessoas que, ao longo do tempo, conhecimentos e tradições foram passadas de geração para geração. A cultura do benzimento segue viva, seja entre fiéis da religião católica ou de outras religiões, como as de matriz africana. Claudetinha, Quidinho e Lorena estão entre as pessoas que doam um tempo de suas vidas para ajudar, sem pedir algo em troca. É a fé, e a fé na cura, que move seus dias. O
Cerro Grande, RS