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Elementor #321



Memórias da REPRESSÃO

As disputas entre o poder local e os sujeitos da resistência à ditadura em Frederico

Texto e Fotografia

Simony Grave

“Era uma perseguição ferrenha, ordinária e má”, recorda o professor aposentado Adjalmo Cerutti, 75 anos, de Frederico Westphalen (RS). Seu relato nos leva aos momentos difíceis durante a ditadura que vigorou no Brasil por vinte anos. “Entende perversa? A palavra mais certa é perversa”, acrescenta ele, que em 1963 vivenciou a angústia do pai, Vitalino Cerutti, vítima de fraude eleitoral, e dos demais companheiros e amigos, acusados de ligação com o governador gaúcho Leonel Brizola.

Brizola, à época, buscava proteger o presidente João Goulart e as reformas de base que ele propunha contra as investidas que, depois, culminaram no golpe militar. Adjalmo estava entre o grupo de frederiquenses relacionados ao chamado Grupo dos Onze.

A instauração da Ditadura Militar, que marcou profundamente a história nacional, completou sessenta anos em 2024. As feridas desse período sombrio ainda são encontradas em cada cidade, na história de pessoas que lutaram a partir de distintas ideias contra a repressão. Mesmo no interior do país, como em Frederico Westphalen, na região do Alto Uruguai gaúcho, a memória da ditadura está presente. Encontramos narrativas dessa experiência nas conversas com Adjalmo Cerutti, e também com Leonida Marcon, 93 anos, professora aposentada e dona de casa que relembra momentos vividos por ela e o marido, Arquelino Marcon, como opositores do governo, além do vereador e advogado Antônio Luiz Pinheiro, o Nico, que na época era presidente da União Regional de Estudantes, e filho de um dos integrantes do Grupo dos Onze.

Elenice Szatkoski historiadora e escritora, com seu livro Os grupos dos onze e com seu acervo pessoal do jornal panfleto

Os Grupos dos Onze

Preocupado com uma possível ruptura na democracia brasileira, em seu programa na Rádio Mayrink Veiga (1926-1965), do Rio de Janeiro, o então governador Leonel Brizola, em 1963, convocava os apoiadores para criarem células de 11 companheiros em várias regiões do país que eram contra o conservadorismo e contra um possível golpe. Mas a denominada Revolução Nacional Libertadora foi acuada com a Ditadura Militar, implantada em 1º de abril de 1964. Todos que pudessem ter ligação com o ex-governador Brizola ou organizações relacionadas foram perseguidas.

Além da rádio, para se comunicar, Brizola se utilizou do jornal O Panfleto, semanal carioca fundado em fevereiro de 1964 e extinto em março do mesmo ano, tendo apenas sete edições. Apesar das poucas edições, teve um papel importante na construção jornalística independente e séria. Segundo a historiadora Elenice Szatkoski, de Frederico Westphalen, em seu livro O Jornal Panfleto e a construção do brizolismo, O Panfleto fazia uma referência à fidelidade na notícia. “Apresenta-se como a ‘ovelha negra’ do jornalismo, em razão do perfil que iria assumir durante sua existência e, também, da independência financeira que pretendia ter”. O objetivo era o de preservar as reformas de base e o governo Goulart. Algumas das edições chegaram a circular em Frederico de forma clandestina, mas os exemplares foram perdidos e extraviados. Só restaram as cópias do acervo pessoal de Elenice.

Em Frederico, como no restante do país, quem pudesse ter alguma ligação com movimentos opositores ao regime militar, era relacionado ao Grupo dos Onze e também, considerado comunista. Uma das justificativas para a instalação do regime de exceção era conter uma suposta ameaça comunista que pairava sobre o Brasil. Os personagens desta reportagem acabaram marcados: “Eles também sofreram, depois, a vergonha de terem sido julgados numa comunidade que até hoje é um ‘ovo’. Mas imagina naquela época?”, recorda Leonida.

Leonida marcon, segurando o jornal, em que conta sobre a ida de seu marido e seus companheiros para São Borja para encontrar o ex-governador Leonel Brizola depois de seu exílio no Uruguai

Disputas em Frederico

Vinte anos antes da ditadura se instaurar no país, na década de 1940, Frederico Westphalen já era dividida em dois polos. O da direita liberal conservadora, que tinha como principal representante o Partido Social Democrático (PSD), compunha o comando da cidade juntamente com a Igreja Católica, que exercia grande poder regional, que se aliava com à União Democrática Nacional (UDN), ao Partido Liberal (PL) e, na ditadura, também à Aliança Renovadora Nacional (Arena), sustentação política dos militares durante o período. Em oposição, representando a esquerda, vinha o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), principalmente, o Partido da Representação Popular (PRP) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), conta Elenice no livro Os Grupos dos Onze, uma insurreição reprimida.

Com intuito de descentralizar o comando da cidade, o empresário Vitalino Cerutti, do PTB, que conquistou uma forte influência na cidade, se candidatou nas eleições de 1963 contra seu principal concorrente político, João Muniz Reis, do PSD. Foi uma eleição acalorada, que acabou com a vitória do candidato do PSD por uma diferença mínima de votos. Segundo Elenice, não demorou muito para descobrirem que houve fraude nas urnas do distrito de Laranjeiras, que corresponde, hoje, à uma região da cidade de Vicente Dutra, na época, parte do território de Frederico Westphalen. Por conta disso, o PTB recorreu ao juiz eleitoral, pedindo recontagem de votos. Para mostrar que a população estava a favor da recontagem, o irmão de Vitalino, Diunysio Cerutti, datilografou o cabeçalho da lista que solicitava essa recontagem dos votos na Cooperativa Tritícola do município, da qual eram proprietários. Por influência dos partidos governistas, no entanto, a lista foi confundida com uma enumeração dos participantes do Grupos dos Onze, criada na mesma época por outras pessoas, mas com objetivos diferentes. Com a proximidade de Vitalino e Brizola, estava dada a confusão. Enquanto a situação se desenrolava em Frederico, o golpe militar civil e empresarial era instaurado no país.

Adjalmo Cerutti, professor aposentado, que relatou seus percalços e de sua família na ditadura. Ele está folheando fotografias da ditadura militar no RS

O que já era dividido só acentuou, dois grupos de pessoas, dois times de futebol, dois CTGs e dois partidos políticos. “Qualquer um poderia denunciar o outro, e a polícia militar poderia vir e prender mesmo sem provas”, como conta Adjalmo. “Meu pai teve mais de dez processos, a cada trinta, sessenta dias, vinha o exército aqui”, ressalta. Um dos processos de acusação tinha mais de 600 páginas, conta. Nenhum deles trazia provas de envolvimento nas acusações. “No fim do processo, os caras [militares] diziam que era uma pessoa idônea, respeitada, pessoa muito boa e tal”, completa.

Com a cidade dividida por duas principais ideologias políticas, o poder vigente era majoritariamente da direita. “Mesmo a população sendo 50% do MDB e 50% da Arena, mas só tinham valor os 50% que era da Arena e os 50% que era do MDB não tinham direito a nada”, afirma Adjalmo. Até conseguir emprego era dificil: “Adversário do governo não conseguia lugar para trabalhar, porque eles sabiam de quem a gente era filho. O meu pai, na época, fazia parte do Grupo dos Onze”, relembra Antônio Luiz Pinheiro, o Nico.

As mulheres também se viram oprimidas, afirma Leonida: “A mulher naquela época não atuava em nada, não tinha direito. Era só homem que era ligado à política, então muita coisa eles nem nos contavam para não ficarmos apavoradas. Só ficava sabendo quando chegavam na sua porta falando que o marido tinha sido preso”, continua ela.

“A perseguição foi visível já que Frederico era uma cidade pequena em 1964, havia sido emancipada somente em 1955. Eram visíveis as perseguições em cima de meia dúzia de habitantes”, recorda Nico. E segue: “Com a aliança com o governo militar, a Polícia tinha um poder extraordinário. Se alguém fosse preso, e fosse contratado um advogado, quando chegavam na delegacia para tentar soltar a pessoa, não encontravam ninguém. Aí descobriam que o preso estava em Iraí, ou Três Passos. Aí tinha que fazer o processo novamente, e não conseguiam soltar ninguém”, complementa ele.

No período de 1959 a 1963, quando Leonel Brizola foi governador do Rio Grande do Sul, houve um importante desenvolvimento da educação no Estado. Para isso acontecer, capitaneou o projeto das chamadas brizoletas, escolas construídas em um acordo entre o governo estadual e as comunidades. “O governo não tinha dinheiro para construir tudo, então, ele vinha, fazia acordo com as comunidades para o material. O governo pagava a construção e a mão de obra. Teve escola no Estado todo”, recorda Nico.

A proximidade de Brizola com frederiquenses como Vitalino Cerutti era visível. “O Brizola vinha e ficava na nossa casa”, comenta Adjalmo. “Ele assinou a criação do Ginásio Cardeal Roncalli em cima do capô do carro do pai, na frente do Palácio do Piratini”, conta o professor aposentado.

Em setembro de 1979, quando voltou do exílio no Uruguai, Brizola se encontrou com apoiadores em São Borja (RS), sua cidade natal. Os frederiquenses Arquelino Marcon, Darci Mariotti e Antônio Luiz Pinheiro (Nico) participaram da recepção. “Nossa esperança era que ele fosse reconstruir o Brasil, porque Brizola era um político que sempre se dedicou à educação em seus governos”, comenta Nico.

Elenice Szatkoski historiadora e escritora, com seu livro Os grupos dos onze e com seu acervo pessoal do jornal panfleto

Eco do passado

Passados sessenta anos do golpe militar, a repressão deixou marcas, mesmo que veladas. “Ainda existem esses resquícios aqui em Frederico, daquele pessoal antigo, que continua perseguindo, querendo poder”, diz Adjalmo. Tal conduta se acentuou com a ascensão da extrema direita no governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). De tempos em tempos, um governo se apresenta com o objetivo de superar a crise inevitável do sistema capitalista neoliberal. Por conta desses ciclos, comenta a historiadora, vemos tão presentes os discursos radicais e agressivos: “Aqui também tivemos ditadura, perseguições. Hoje, corremos esse risco novamente, porque essas pessoas estão iludidas por um discurso equivocado, que chega neles de uma forma muito agressiva”. Para que isso não se acentue ainda mais, conhecer o passado é necessário, afirma Elenice.   O

FREDERICO WESTPHALEN, RS

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