Artista sem fronteiras
Portugal, Itália, Espanha e Moçambique são países que marcaram a vida de Valéria Pinheiro, conectando culturas e realidades
Texto e Fotografia: Franchesco de Oliveira Y Castro
Os dicionários definem arte como uma habilidade técnica ou a produção consciente de beleza e de harmonia. Para Valéria Pinheiro, 48 anos, artista visual de Frederico Westphalen (RS), a arte vai além das definições convencionais: “A arte não transforma, ela salva e cura. A arte tem esse poder”. Valéria demonstrou talento para a arte desde muito cedo, procurou meios práticos para sustentar seu sonho, superou dificuldades de acesso a recursos artísticos na infância, lutou contra o preconceito e ao longo dos anos, estudou, persistiu e desenvolveu uma carreira próspera como artista e como tatuadora.
A rotina de trabalho é na sua galeria, desenhando, pintando, ministrando cursos, palestras e coordenando um projeto social que utiliza a arte como ferramenta de transformação social. Valéria já tatuou muita gente. Também pintou várias séries de quadros, como Mulheres Fortes, Nomes que Inspiram, Trabalhadores e Kanimambo. Já fez exposições para além das fronteiras brasileiras e foi premiada no Vaticano. Vive da arte todos os dias, até em seus momentos de descanso. Um dos seus maiores objetivos é levar cultura para todos e mostrar, por meio da arte, as desigualdades sociais que assolam o mundo. Seus traços, em geral, são denunciando as injustiças sociais.
Viver da arte
No mundo da arte, algumas histórias se destacam não apenas pelo talento, mas também pelo impacto social e humano, como a de Valéria Pinheiro. “Eu tinha meus 12 anos de idade, e desde que me conheço por gente, gosto de desenho”, relembra com brilho nos olhos. Crescer sem os recursos tecnológicos atuais foi um desafio para a busca de inspirações, e, especialmente, para aprender novas técnicas. “Eu dividia um pouco do meu tempo com as brincadeiras com meu irmão e com os pinceis e tintas que fui descobrindo”.
Naquela época o incentivo do pai de uma amiga, que comprou as primeiras telas de Valéria, foi crucial para que ela não desistisse. Verenice Pinheiro, 41 anos, irmã de Valéria, relembra que todos ao redor percebiam que ela tinha talento na pintura e no desenho. Ela destaca que Valéria sempre correu atrás: “Eu lembro que ela fazia um cursinho pelo correio que chamava Instituto Universal. Todo mês vinha uma revistinha que ensinava a fazer um desenho e ela contava os minutos para chegar o dia para fazer esse curso”, comenta.
Viver da arte seria um desafio. Precisava, então, aos 16 anos, sustentar esse sonho. “Na época, comecei a trabalhar como letrista, pintando placas e fachadas”. De fato, ela queria ser artista, por isso, buscou o curso de Artes Visuais, cursado na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), em Ijuí (RS). Foi durante a faculdade que ela encontrou um mundo de possibilidades. Segundo Valéria, até então ela pintava de forma autodidata, e ao entrar na faculdade, teve a oportunidade de aprender sobre cerâmica, desenho, pintura, fotografia e a maneira como funcionam os ateliers. Tal experiência ofereceu um espaço para expandir seu conhecimento e experimentar novos materiais e técnicas. Na faculdade, a habilidade no desenho fez com que descobrisse a tatuagem. Inicialmente um hobby, se tornou uma profissão.
Em 2009, logo após a formatura, surge a primeira oportunidade de sair do país e ir à Europa para tatuar. A carreira de Valéria deu um salto quando levou sua arte além mar. “Ir para a Europa e fazer exposições sempre me encheu de alegria”, diz. Portugal, Itália, Espanha e Moçambique foram alguns dos países visitados, compartilhando sua proposta artística e social com um público mais amplo. Em 2015, no Vaticano, Valéria expôs uma série inspirada nos agricultores da região em que mora e foi premiada: “Foi uma experiência incrível ver meu trabalho sendo apreciado em lugares tão distantes”, ressalta.
Arte sem fronteiras
Realizar trabalhos voluntários era um sonho. Em 2017, Valéria começou a procurar organizações humanitárias para que ela pudesse atuar. Encontrou a Fraternidade Sem Fronteiras, que tem uma modalidade de caravana para voluntários com atuação na África. Por mais que fosse concorrido, ela foi aceita para realizar trabalhos artísticos. Ao chegar lá, surpreendeu-se com algumas questões: “Uma foi com a vulnerabilidade e outra com a fome. Porque uma coisa é você ver na televisão, outra coisa é você estar ali.” A jornada na África iniciou com a realização de oficinas com jovens: “Eu nunca vou esquecer que ao perguntar quais eram os sonhos deles, houve um silêncio total. Eram jovens que não sabiam o que era a palavra [sonho] e nem o que significava sonhar”. Esse foi o despertar do desejo de ajudar a mudar o mundo e levar arte para a vida dos mais vulneráveis.
Em agosto de 2017, em Moçambique, na África, surgiu o Arte Sem Fronteiras por meio da organização humanitária Fraternidade Sem Fronteiras. “O projeto me preencheu de uma maneira que eu não tinha experimentado antes”. Da vontade de pensar a arte como uma ferramenta de inclusão e de transformação social. Apesar de ter viajado para muitos lugares no Brasil e no mundo, uma das suas maiores realizações foi a criação do Arte Sem Fronteiras. “Mesmo com todos esses alcances, eu ainda sentia um vazio, que foi preenchido quando comecei o projeto”. A iniciativa cresceu rapidamente, abrangendo não apenas Moçambique, onde Valéria inicialmente começou a trabalhar, mas também comunidades quilombolas na Bahia, aldeias indígenas no Sul do Brasil, escolas e presídios.
Segundo a Unesco, a educação artística desempenha um papel importante no desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças, além de promover habilidades sociais e reduzir a marginalização. O Arte Sem Fronteiras, tem como objetivo oportunizar o reconhecimento em si do potencial criativo, da autoestima, da formação humana, da inclusão social e dar a oportunidade de mudar a vida das pessoas por meio da arte. “A arte pode influenciar positivamente a vida de alguém, assim como influenciou a minha”, argumenta Valéria. Este ideal se reflete em suas obras e em sua abordagem pedagógica. Ela procura inspirar seus alunos a verem a arte como um meio de expressar suas emoções e suas perspectivas. “Eu não tenho filhos. Na minha concepção, meus dois filhos são a minha criação, enquanto artista, e o Arte Sem Fronteiras, que tem um monte de crianças, adolescentes, um público de todas as idades. E isso me enche a alma de alegria”, completa.
Educação é esperança
Com uma formação em Artes Visuais e um mestrado em Educação, Valéria firmou a carreira como artista e educadora. Atualmente, ela está cursando uma pós-graduação em Arteterapia, área que considera essencial para a integração entre arte e bem-estar emocional. Valéria possui uma Galeria de Arte há mais de dez anos em Frederico Westphalen, onde expõe telas, aquarelas, gravuras e cerâmicas. Neste mesmo espaço, possui um estúdio onde trabalha com tatuagens, piercing e micropigmentação. Dedica-se a dar cursos de desenho e pintura para todas as idades. Maria Marlene Oro, 66 anos, conta que durante o distanciamento social, na pandemia de Covid-19, quis fazer algo para amenizar a solidão. “Na pandemia, despertou em mim a vontade de fazer algo que aliviasse a solidão dos meses infindáveis do afastamento”. Maria conta que em 2021, Valéria lhe convidou para fazer aulas de pintura e desde então ela nunca mais parou. Declara estar maravilhada.
Sibele Magalhães, 48 anos, esposa de Valéria, conta que elas se conhecem desde os 12 anos. Ficaram um tempo sem se falar e depois de trinta anos se reencontraram. Sibele ficou impressionada com todo esse trabalho que Valéria desenvolvia, toda a coragem de ir para outros países, trabalhar e ainda buscar força para retratar as tristes realidades que a gente não enxerga. “Eu vejo o quão grande ela conseguiu se tornar enquanto ser humano.” Segundo Sibele, a esposa é uma pessoa multifacetada e talentosa, que merece reconhecimento. Ela diz que estar com Valéria é motivo de orgulho. E que mesmo depois de tudo que construiu no sentido político social e educacional ela permanece com a mesma essência de quando tinha 12 anos. “Para mim a Valéria Pinheiro é minha amiga, é a mesma com quem eu estudei. E eu não estou diminuindo ou menosprezando todo o esforço e estudo dela, mas eu aumento nela o caráter que eu já via e conhecia”, diz. Sibele revela que aprende a amar Valéria cada vez mais de formas diferentes e sente uma alegria em dividir vários momentos ao lado dela.
Viver de arte no interior do Rio Grande do Sul não é fácil. Mas apesar das dificuldades, vale a pena persistir. Sair com 14 anos da casa dos pais para trabalhar e estudar, passar frio, fome, sofrer preconceito por ser uma mulher trabalhando com tatuagem não foram suficientes para fazer Valéria desistir de correr atrás do que queria. Ela se recusou a aceitar qualquer outra carreira que não fosse a de artista, mesmo quando isso parecia distante. “O resultado da tua persistência, com certeza vai ser a vitória”. Segundo Verenice, todo o talento da irmã Valéria é motivo de orgulho para a família. “Os meus pais são muito gratos, eles têm muito orgulho disso tudo e a família também se orgulha muito”.
Continuar lutando
Defensora da educação como meio de transformação social, tem ministrado palestras em escolas e universidades, tanto no Brasil como no exterior. O foco é sensibilizar as pessoas sobre a importância da arte, da brincadeira e da humanização nas relações sociais. “A educação é a esperança. A educação é o que transforma e forma”, afirma. Valéria Pinheiro desenvolveu materiais educativos, incluindo livros e vídeos, para apoiar seus projetos e ampliar seu alcance. Um de seus objetivos é promover o acesso à cultura, especialmente em um país onde 31,4% da população vive em cidades sem acesso a museus, e percentuais ainda maiores para teatros (30,6%) e cinemas (42,5%), segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Eu posso dizer, com toda certeza, que se eu morrer hoje, eu morro uma pessoa extremamente feliz e em paz”, reflete, afirmando que, aos 48 anos, aprendeu a valorizar o que realmente importa: a simplicidade. Para o futuro, ainda tem sonhos a realizar. “Gostaria que meu trabalho alcançasse mais pessoas e que o projeto Arte Sem Fronteiras tivesse ainda mais impacto”, diz.
Tem como objetivo concreto de continuar expressando sua arte para os quatro cantos do Brasil e do planeta. Seguir lutando todos os dias para mudar um pouquinho o mundo. Pintar ainda mais, desenhar, ensinar e inspirar são alguns dos seus objetivos futuros. Valéria, ao longo dos anos, guardou materiais que serão usados para suas séries futuras: “Hoje eu me vejo dentro de uma arte de ativismo”, comenta.
Viajar para África segue sendo sua maior missão. Pretende continuar se inspirando na dor e na tristeza para retratar a realidade daqueles que são esquecidos, com o objetivo de fazer as pessoas desenvolverem um olhar empático e sensível. “Eu acredito que a arte é ponte, transformação, formação e visibilidade”, completa a artista.
FREDERICO WESTPHALEN