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O cerne do saber



A história de uma família de marceneiros e a experiência que passa de geração em geração

Brenda Oliveira, Isadora Torres e Julia Cechin

Foto: Brenda Oliveira

Todos os dias, nas primeiras horas da manhã, o marceneiro Luiz Centenaro Argenta, 69 anos, e a esposa Clarinda Argenta, 68 anos, abrem as portas do estabelecimento número 1845 da Avenida Luís Milani em Frederico Westphalen (RS). No chão coberto de poeira da Marcenaria Argenta, o casal vai deixando o desenho dos passos por onde se movimentam. A trajetória dos pés leva a pedaços de madeira espalhados pelo chão, máquinas e móveis ainda inacabados. A cor predominante é o marrom. O lugar tem cheiro de madeira na maior parte do dia, só abrindo espaço para o aroma de café, ou do chimarrão, nos fins de tarde.

A poucos metros de distância, o filho, também marceneiro, Cleomar Argenta, 40 anos, também marca o chão poeirento da A3 Móveis enquanto se prepara para mais um dia de trabalho. Todo dia, antes de começar o expediente, liga o rádio, sempre sintonizado na mesma estação. O costume vem dos pais, que, com o rádio ligado, já estão com as máquinas funcionando.

O neto do casal, Henrique Argenta, cinco anos, ainda está dormindo. Quando acordar, o menino vai procurar os brinquedos de madeira que ele mesmo fez na marcenaria do avô. Henrique, assim como o pai, é acostumado com as ferramentas, máquinas e tábuas. As três gerações da família são marcadas por um saber que vem do dia a dia da lida com a madeira.

Essência familiar

A experiência profissional de Cleomar Argenta, chamado de Dede pela família e amigos, começou no dia em que Luiz e Clarinda decidiram abrir a empresa. A Marcenaria Argenta foi a sala de aula não convencional de Dede.

Para quem entra pela primeira vez na marcenaria é intrigante olhar para tantas máquinas, com diferentes formas, sem se perguntar como alguém pode saber manusear tantos equipamentos com a técnica necessária. Dede explica: “É a experiência, né?”.

O lugar fez parte da história da família antes mesmo de abrir as portas pela primeira vez. “A gente ajudou a cavoucar tudo para ele [Luiz] colocar as máquinas”, relembra Dede. A expressão “a gente” na fala se refere ao pai, à mãe e ao irmão, sempre juntos nos primeiros anos da fábrica.

Dede, hoje dono da sua própria marcenaria, a A3, diz que o pai nunca o treinou formalmente para ser marceneiro. “Nós ficamos dentro da firma desde pequenos, então não é nem que ele ensinou, a gente foi aprendendo junto”, esclarece.

Onde acaba a escada de acesso para a antiga casa da família começam as paredes da Marcenaria Argenta. A infância de Dede é marcada por essa proximidade e, com o dia a dia, o marceneiro se acostumou com o barulho dos equipamentos e com a serragem espalhada pelos cantos. A repetição das tarefas dentro da marcenaria permitiu que Dede aprendesse por meio da prática como transformar peças de madeira em móveis e objetos.

Alguns trabalhos são simples, outros demandam mais tempo e tem alguns que ficam marcados na memória. “Quando eu estava trabalhando com o pai chegavam móveis de até 80 anos para restauração, entalhados à mão”, relembra Dede. “Em alguns casos, as pessoas sentem angústia no momento de entregar objetos antigos ou raros para recuperação”, revela ainda.

Quando surge alguma dúvida no processo da fabricação, Dede recorre aos marceneiros mais velhos, com mais anos de experiência. Luiz Centenaro, o pai, é o primeiro contato nessa lista de assistência. “Bah, não deu certo isso, como é que eu faço? Daí ele [Luiz] me dá uma mão, se ele não sabe: fala com fulano de tal que ele vai te dar uma dica”, explicou o marceneiro.

Quando era mais jovem, Dede tentou fazer um curso na área para adquirir mais conhecimento, mas acabou desistindo. A dificuldade foi que o marceneiro, às vezes, sabia mais que o professor. “No curso eu tinha que dizer para o professor “Olha isso aí não vai dar certo, faça diferente que é mais fácil e melhor”, relatou Dede.

O marceneiro ressalta que conversar com os profissionais mais experientes é sempre a melhor opção. “Você aprende nas coisas antigas, você não aprende nas coisas novas, o novo já vem pronto”, ensinou. Dede coleciona mais de vinte anos de profissão, e diz: “Ainda tem muita coisa que eu não sei”. Ocasionalmente, o marceneiro tenta compreender alguma técnica desconhecida praticando até acertar ou discando o número do pai.

O passado dos Argenta foi dentro de diferentes marcenarias. Luiz conta que quase toda a família trabalhou com a madeira e, na sua opinião, não existe serviço melhor do que ser marceneiro. “Hoje tu faz um serviço e amanhã tu faz outro diferente. Jamais faz o mesmo serviço”, diz o pai.

A fábrica, além de local de trabalho, é espaço para risadas, brincadeiras e conversas com os netos e filhos. A mãe, Clarinda Argenta, costumeiramente com o chimarrão na mão, fala que criou os filhos dentro da marcenaria. “Toda a história da família tá aqui dentro”, conta entre uma cuia e outra. Essa história, que começou na marcenaria dos pais, se repete no dia a dia de Dede. As semelhanças vão do jeito de anotar pedidos até o ambiente de trabalho em si.

Foto: Isadora Torres

Pais e filhos

Ao conviver tanto com uma pessoa, fica claro que costumes e manias acabam passando de um para o outro. Isso aconteceu com seu Argenta e Dede, que dividem praticamente a mesma rotina de trabalho. A de Cleomar, mais intensa, clientes, encomendas e entregas acontecem o tempo todo independente de ser horário comercial ou não. Afinal “depois que a gente vira chefe perde totalmente a vida, não tem horário pra atender, nem pra ficar”, afirma Dede, sem horário para sair da empresa, mas com tempo reservado para ficar com o filho Henrique, no fim do dia.

A rotina de Argenta já foi muito parecida com a do filho, mesmo não utilizando nenhuma forma de comunicação, apenas no boca a boca pela cidade. Isso não ocorre mais hoje em dia. Por conta da idade, seu Argenta diminuiu em 80% suas encomendas. Como não são muitos os marceneiros na cidade, a procura pelo seu trabalho é recorrente. A entrevista com seu Argenta foi interrompida várias vezes pela chegada de clientes. Porém, trabalhando apenas com três ou quatro pedidos por vez, seu Argenta repassa seus clientes ao filho, com a marcenaria a poucos metros de distância da sua, de fácil acesso às novas encomendas de Dede.

Independentemente de qual marcenaria recebe o pedido, a forma de organização é a mesma. Pai e filho organizam seus pedidos em seus cadernos, com as informações necessárias para a produção e o contato do cliente. Seu Argenta com os pedidos menores e a agenda de Dede lotada até o fim do ano. Utilizam a simplicidade do papel e caneta para não correr o risco, mas em ambas as mentes é onde são anotadas as informações importantes.

Com anos de trabalho, marcas foram deixadas em toda a família Argenta. Nem mesmo Clarinda escapou das dores. “Fiz cirurgia nos dois braços, me arrebentou o tendão e agora tô com dor na coluna”, relata, após explicar que ajudava a carregar chapas junto com o marido na semana anterior. Já seu Luiz, teve a tampa do dedo decepada logo após a esposa dar à luz a filha, fato relatado com graça por Clarinda. Além da presença dessas marcas de trabalho, Argenta perdeu boa parte da audição, causado pelo barulho ensurdecedor das máquinas produzidas por ele.

Toda essa rotina é acompanhada pelo mesmo som. O rádio ligado o tempo todo é algo marcante quando entramos em seus locais de trabalho. Música alta para tentar disfarçar o barulho da madeira sendo cortada, lixada e esculpida. Em ambas as marcenarias o rádio é antigo, coberto de poeira e sendo proibido trabalhar sem ligar o som. Na Marcenaria Argenta, o pó teve de ser contido por uma capa improvisada, para garantir o funcionamento ainda mais duradouro da relíquia.

Essas características reforçam ainda mais o saber adquirido pela experiência dos dois, saber esse que não se restringe à relação familiar. Uma lista com outros marceneiros fica pendurada na parede da A3, fonte de pesquisa para quando Dede tem dificuldade em algum trabalho. 

A identificação da família Argenta não se encerra e nem tem a pretensão de acabar com Luiz e Dede, estendendo as ligações entre pai, filho e neto.

Foto: Isadora Torres

Âmago do ser

Seu Luiz, quando pequeno, sonhava em tornar crianças mais felizes com brinquedos de madeira. Hoje, o neto Henrique alegra a família ao construir seus próprios brinquedos.

Em um primeiro instante, o filho de Dede, Henrique, se esconde atrás de uma porta. Mas ao perceber que o foco das pessoas estava em seus brinquedos de madeira, o menino aparece para explicar que ele fez tudo sozinho: “Eu pintei com todas as cores: azul, rosa, verde, branco […]”. Em meio à entrevista, Henrique salta janelas e contorna as máquinas com maestria, como se soubesse exatamente onde pisar. O avô, Luiz, apesar de não repreender o neto, sempre está pronto para ajudá-lo caso caia. Esse amor e carinho visível entre os dois, mostra-se ainda mais evidente quando Henrique começa a falar sobre o que ele vive aprendendo na marcenaria.

Quando questionado a respeito da afinidade de seu filho com a madeira, Cleomar conta: “Ele já tem cinco anos de idade, ele adora vir aqui, ele vem aqui e faz homenzinho, carrinho, ele deixa a gente assustado com as coisas que ele faz”. Henrique não aprendeu a construir uma cadeirinha de madeira na escola. Bem, isso se a “firma” de seu pai não for considerada como escola. Ao adentrar a marcenaria de Cleomar, no meio de toda serragem e poeira, é possível encontrar resquícios dos trabalhos do pequeno. Quando questionado sobre o filho, Cleomar relata: “Hoje ele [Henrique] não veio de noite porque eu e ele brigamos, ele não quer estudar e eu disse que não vai para a firma”. O que para o mais velho é trabalho, uma obrigação, para o mais novo é algo a se esperar todo dia.

A madeira foi a base de construções durante milhares de anos, desde pequenos casebres, até grandes portas entalhadas em palácios. Apesar de hoje ser considerado um material tratado “simples”, muitas moradias contam com móveis de madeira de anos. Sendo um dos últimos marceneiros da família Argenta, Cleomar expressa: “Eu sempre digo: acabou os marceneiros. Eu sou a última geração de marceneiro. O que trabalha com a madeira.” Assim como a madeira, algumas experiências podem se mostrar “comuns” para as pessoas, mas são elas que constituem a base do ser humano.

O cerne é a única parte da madeira que resiste ao tempo. Assim como o conhecimento adquirido e marcado pela família Argenta perdura em cada peça feita por eles.

Foto: Julia Cechin

Frederico Westphalen, RS

*Esta é uma produção laboratorial e experimental, desenvolvida por estudantes do curso de Jornalismo da UFSM Campus Frederico Westphalen. O texto não deve ser reproduzido sem autorização. Contato: meiomundo@ufsm.br.

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