Rompendo as fronteiras sonoras, o estado do Rio Grande do Sul possui artistas e sons independentes que merecem ser ouvidos
Bruno Bianchi e Melissa Sayuri
“Ah, todo mundo tem sonho de viver da arte, né?” é o que diz João Pedro Bassi, guitarrista da banda Ouija, sobre o desejo de se entregar e entrar de cabeça na carreira musical. “Daí a gente pensa no quanto é apegado ao conforto. E o quanto a gente quer arriscar. Cada escolha é uma renúncia, infelizmente”, ele acrescenta, evidenciando o conflito entre o sonho e o inevitável risco que vem na bagagem da jornada artística.
Viver de música no interior do Rio Grande do Sul não é fácil. Mergulhar de cabeça em uma carreira musical, sem certeza de retorno, pode ser desafiador. Abrir mão do conforto de uma vida estável pela arte talvez seja um dilema para o artista independente. Atualmente, devido à maior acessibilidade que a tecnologia oferece para a produção de música, é mais comum encontrar artistas que apostam no cenário alternativo. No entanto, nem todos têm a oportunidade de dedicar-se integralmente a essa profissão.
Esse é o caso da banda Ouija. Composta por Isabela Vanzin (vocalista), João Pedro Bassi (guitarrista), Rafael Dutra (baterista), Tiago Bach (baixista) e Álvaro Rajeneski (guitarrista), a banda busca se inserir nesse caminho. Espalhados pela região do Alto Uruguai, nas cidades de Frederico Westphalen, Ametista do Sul e Rodeio Bonito, um dos desafios é a logística para alinhar os dias de ensaio e das apresentações.
Quando a dificuldade de encontrar espaços para tocar é somada à equação, fica ainda mais complexo. Para João Pedro, esse é um desafio constante. “Eu corro muito atrás de lugar, mas é muito difícil, quase não tem mais lugar porque não é lucrativo. O nosso nicho não é uma coisa que atrai multidões”, afirma o integrante Ouija.
A banda, formada em 2020, nem sempre teve a sonoridade que possui hoje. O objetivo inicial era pegar músicas pop conhecidas e fazer uma versão rock, atraindo a atenção do público jovem. No mainstream, o som mais pesado não é sempre visto com bons olhos, ao mesmo tempo que é percebido como um gênero mais complexo e às vezes até “superior” aos demais. “O rock foi elitizado por muito tempo, era visto como uma coisa erudita”, diz Isabela. “Isso é uma coisa que a gente tenta mudar também”, conta.
Um obstáculo que se mostra presente tanto em bandas que estão na capital, como nas que se encontram no interior do estado, é a falta de visibilidade. Em contraste com os grandes centros urbanos, como São Paulo, onde seguir a cena independente é mais acessível, o RS enfrenta uma barreira geográfica que dificulta o alcance desses artistas. “É bem complicado. Atrapalha muito estar aqui no interior fazendo isso”, aponta o guitarrista João Pedro.
Os membros comentam a falta de suporte da cidade. Ao produzir um festival, por exemplo, os organizadores de eventos priorizam artistas com sons mais populares, que trarão um lucro garantido. “O rock é sempre menos”, comenta Álvaro quanto à invisibilidade do gênero na sociedade. “Qualquer tipo de arte em uma cidade do interior é muitas vezes vista como coisa de pessoas às margens da sociedade”, completa a vocalista.
Apesar das dificuldades, a banda mantém a resiliência e traça planos para o futuro. Eles incluem o lançamento, primeiro, de um single, e depois, de um EP autoral. “A gente já começou a ir um pouquinho mais para o lado autoral, mais deprê, mais nosso”, diz João Pedro. É o que mostra a determinação de trilhar o caminho do rock ‘n roll e encontrar o próprio som.
Fazer barulho para ser ouvido
A transformação da indústria fonográfica nas últimas décadas trouxe consigo mudanças notáveis no cenário musical, abrindo caminho para a expansão da música independente. No artigo “A música independente no Brasil: uma reflexão”, o sociólogo e comunicador, Eduardo Vicente, fala sobre como, até o final dos anos 1970, o mercado fonográfico no país estava em crescimento. Graças aos incentivos fiscais à produção nacional, essa indústria se consolidava e se multiplicava. Nesse contexto, não havia muitos motivos para a formação de uma cena independente, já que as grandes indústrias dominavam o mercado.
Na década de 1980, quando a crise econômica atingiu o país, esse quadro sofreu uma transformação completa. O mercado musical passou a ser mais seletivo e a racionalizar suas atividades, diminuindo o número de artistas e marginalizando aqueles que não se encaixavam, que não dariam lucro para a gravadora e nem atingiriam as massas. Foi quando nasceu o underground, como um espaço de resistência cultural e política à nova organização da indústria. O novo segmento se tornou a única alternativa de acesso para diversos artistas.
A difusão da música indie foi uma resposta às transformações ocorridas durante a transição dos anos 1970 para 1980. Foi, também, o resultado da necessidade de criar um espaço de resistência e de expressão dos artistas que não se encaixavam nos moldes que o mainstream cobrava. O traço mais marcante da cena independente é o compromisso com a arte e com a criatividade, muito mais do que com o aspecto comercial.
Esse compromisso está em não se deixar ser controlado e nem se colocar dentro de um molde apenas para atender aos padrões da indústria. É isso que mantém o indie vivo. “No underground, tu faz por ti o rolê, tu movimenta”, afirma Rafael, baterista da banda Ouija. “É tu que vai fazer a música, fazer o evento, fazer acontecer o negócio”, ele acrescenta. Esse é o atrativo que motiva a descoberta de novos sons e talentos.
Mergulhando na cena de Porto Alegre
No sul do Brasil, a cidade de Porto Alegre se destaca como um epicentro cultural e musical, abrigando uma vibrante cena independente de rock. Além de ser a capital do estado do Rio Grande do Sul, é reconhecida por uma rica história e pela diversidade cultural, características que moldaram o cenário musical local.
Porto Alegre tem sido um berço para diversas bandas icônicas do rock nacional. Desde os anos 1980, grupos como Engenheiros do Hawaii, DeFalla e TNT emergiram das garagens e bares da cidade, conquistando público.
Essas bandas pioneiras abriram caminho para uma geração de artistas que se seguiram, mantendo a chama do rock acesa na cidade. E ela continua abraçando bandas novas, em lugares emblemáticos, como o Bar Opinião, palco para inúmeras apresentações de bandas independentes ao longo dos seus 40 anos. O Agulha, espaço cultural e casa de shows, também desempenha um papel fundamental na cena, oferecendo uma plataforma para artistas emergentes e consagrados.
Apesar do brilho e da vitalidade da cena independente de rock em Porto Alegre, a falta de apoio financeiro e de mais espaços dedicados à música autoral ainda existem. São desafios que fazem parte do cotidiano de bandas como a Bella e o Olmo da Bruxa, que vivem a experiência de produzir música independente no sul.
Banda de rock alternativo, flerta com vários gêneros da música underground, como o “rock triste” e o emo. Formada por Felipe Pacheco, Julia Garcia e Pedro Acosta, o grupo tem cinco anos de história e um álbum autoral homônimo, lançado em 2020. O segundo deve sair ainda em 2023. “Não fazemos música para músicos, nem música para nós mesmos, e nem para porto-alegrenses. É música para todo mundo ouvir”, diz Pedro, um dos vocalistas da banda.
Parte da nova geração da música independente é linha de frente no entendimento de como as coisas estão funcionando no cenário musical underground. Pedro fala sobre as diferenças na divulgação entre a era física e a digital, explicando que, no passado, as pessoas costumavam dizer: “Essa é minha música”. “Mas ao mesmo tempo, tu tá ouvindo a música de três playboys”, diz o membro, salientando a democratização do acesso e divulgação de músicas.
Mesmo em uma cidade com maior projeção, ainda existe carência de visibilidade. “Se não tivesse o digital, o alcance nacional seria quase impossível para a gente”, comenta Felipe. A era digital abriu portas e possibilitou que bandas independentes como a Bella e o Olmo da Bruxa alcançassem um público mais amplo, ultrapassando fronteiras geográficas e rompendo barreiras que antes limitavam a exposição e o reconhecimento de seus talentos ao entorno imediato.
Da capital ao interior, o independente se alimenta da paixão que os artistas têm pela música. Para Isabela, vocalista da Ouija, a diversão é a maior recompensa, não o lucro. “Vale mais a pena por esses momentos de estar aqui, fazendo música com os amigos, tomando uma coca no intervalo, do que no show business”, diz Isabela.
Para os membros da Bella e o Olmo da Bruxa, a graça está em ousar na hora da criação. “Entre nas suas loucuras, aceite as suas piras”, é o conselho de Felipe para os novos artistas. “A única coisa que vai te diferenciar dos outros é a tua pira”, complementa Pedro. Apesar de não ter uma fórmula para levar suas obras ao topo das paradas, o underground se forma pela combinação de vários fatores para tornar sua sonoridade marcante e, assim, cativar o público. A autenticidade pode ser o caminho para conquistar o mundo.
Frederico Westphalen e Porto Alegre/RS
Glossário
- EP (Extended Play) – É uma gravação de música mais longa do que um single, mas com menos faixas do que um álbum.
- Indie – Termo em inglês utilizado como abreviação de independente.
- Mainstream – Do inglês “corrente principal” ou “fluxo principal”, a palavra mainstream tem a ver com aquilo que está na moda, uma tendência dominante.
- Single – Somente uma faixa.
- Underground – “Subterrâneo”, em português. Usado para denominar uma cultura que está fora dos padrões convencionais da sociedade.
* Esta é uma produção laboratorial e experimental, desenvolvida por estudantes do curso de Jornalismo da UFSM Campus Frederico Westphalen. O texto não deve ser reproduzido sem autorização. Contato: meiomundo@ufsm.br.