O preço da exposição na internet e os impactos na saúde mental de pessoas públicas
Ellen Manfio e Maria Eduarda Brasil
É provável que você já tenha presenciado alguém sendo alvo de “cancelamento” nas plataformas digitais, especialmente se for uma figura pública. Essa prática se tornou frequente e tem gerado questionamentos. A cultura do cancelamento foi criada como uma forma de responsabilização por comportamentos considerados inadequados. Esse padrão evoluiu para algo mais complexo e se tornou uma forma de bullying e linchamento virtual, capaz de impactar negativamente a saúde mental das pessoas envolvidas.
É o caso de Larissa Ribeiro*, uma influenciadora digital do noroeste do Rio Grande do Sul. A influencer conta que virou alvo da prática do cancelamento ao postar seus treinos de academia no Instagram. Na época do ocorrido, um de seus vídeos viralizou na rede e foi motivo de diversas mensagens e comentários de cunho pejorativo, de homens e mulheres.
Ela explica que depois do episódio desenvolveu uma grande insegurança ao se expor e postar em suas redes sociais. “Depois desse evento, virei outra pessoa. Antes, eu postava bastante, não ligava, era bem tranquila. Agora, sou super insegura de postar qualquer coisa”, explica. Ela notou diversos prejuízos na sua saúde mental e começou a fazer psicoterapia. “Fiquei bem ansiosa, tive crise de ansiedade naqueles dias, foi bem difícil”, relata.
As consequências chegaram a impactar sua carreira. Larissa precisou criar um perfil profissional no Instagram para divulgação do seu trabalho, mas acabou se limitando pela ansiedade e o medo ao se expor. “Me prejudicou muito, me prejudica ainda”. A influencer concluiu uma graduação há pouco, e tem tentado contornar o medo e a ansiedade para colocar em prática seus planos, apesar das dificuldades. “Estou deixando até de trabalhar por conta disso”, finaliza ela.
A psicóloga Adrian Bezerra Assunção, que atua na área clínica há três anos, conta que a prática do cancelamento ficou mais conhecida no país em 2020, após o programa televisivo Big Brother Brasil, da TV Globo, quando houve um maior índice de cancelamento. Foi um grande crescimento dessa cultura, o público decidiu falar e expor suas opiniões sobre o assunto.
Adrian comenta que, por meio dessa divergência de opiniões, os telespectadores acabaram cancelando uns aos outros, taxando e tentando prejudicar a imagem de terceiros, julgando muitas atitudes como forma de preconceito. “As pessoas acham que tudo que se opõe ao que elas concordam é uma forma de preconceito. Na realidade não é. As pessoas estão exercendo seu direito de opinião diferente, o que acontece muito nas mídias. Não é à toa que o maior índice de cancelamento é com famosos”, pontua.
Um exemplo de maior repercussão é o da rapper Karol Conká. A ex-participante do Big Brother Brasil 2021 foi fortemente atacada e chegou a perder cerca de cinco milhões de faturamento em shows e contratos encerrados. Além da popularidade e da carreira, o cancelamento também influenciou diretamente a saúde mental dela.
Foram necessários cerca de seis meses após o encerramento do programa para Conká conseguir retomar a vida normalmente e sair de casa. A cantora contou com ajuda profissional de psicólogos e psiquiatras para conseguir reverter os danos que sofreu. “Eu tinha perdido a vontade de viver ou de ser, a vontade de qualquer coisa. A última vez que eu tinha sentido isso foi na depressão pós-parto”, comentou, no podcast De Carona na Carreira.
Segundo Adrian, a cultura do cancelamento seria a intencionalidade de tentar, de alguma forma, prejudicar a imagem do outro, difamá-lo e barrá-lo, limitando a sua liberdade de expressão. Em alguns casos, a pessoa pode ver a prática de modo positivo, ressignificando a experiência, mudando suas perspectivas e assumindo outro ponto de vista.
Não é o que acontece com a maioria das pessoas, isso depende de um processo de resiliência natural e, muitas vezes, acompanhamento psicológico e suporte familiar. Não foi o caso da cantora Karol Conká. O impacto negativo foi tanto a ponto dela ficar muito tempo fora de suas redes sociais. “De alguma forma aquilo ainda veste nela como impacto negativo. Até a forma dela debochar, pode ser uma estratégia de fugir dos impactos negativos do cancelamento”, comenta Adrian.
A psicóloga conta que já foi cancelada em seu perfil profissional, ao falar sobre ética e se posicionar contra a exposição de casos e pacientes. No período em que falou abertamente de suas opiniões, foi cancelada por outro colega de profissão, que a chamou de antiquada. O posicionamento público acabou gerando comentários, alguns contrários e outros favoráveis à Adrian, que procurou superar a situação: “Para mim foi um processo tranquilo. Mas quando a gente se expõe em redes sociais, independentemente de ser um perfil de grande alcance ou de pequeno alcance, a gente corre o risco de receber ódio gratuito”, finaliza.
Origem do termo
A cultura do cancelamento surgiu em meio aos avanços da sociedade, um processo de desconstrução de práticas, que antes eram normalizadas, como o racismo, a homofobia, o machismo, a xenofobia, entre outros. O termo apareceu em 2017, com a repercussão do movimento feminista Me Too (do inglês, “eu também”), uma hashtag usada nas redes sociais com denúncias de assédio sexual que repercutiram no mundo inteiro.
O cancelamento ganhou vida por meio de manifestações contra tais atitudes condenatórias, criando um ambiente propício a discussões e debates em torno de causas sociais. As redes são um espaço para amplificar a voz de determinados grupos, no entanto, outras faces dessa cultura emergiram, como a destilação de ódio e o linchamento virtual.
A estudante de Psicologia Fernanda Forte Prichula, estagiária da clínica escola da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), acredita que o cancelamento é capaz de gerar uma dificuldade em se colocar diante dos outros, alimentando uma tendência das pessoas se isolarem do convívio social. “Dependendo do grau que for, isso pode vir a desencadear ou agravar alguns transtornos mentais, quadros mais depressivos e ansiosos”, explica.
Os episódios de cancelamento giram acerca do que é considerado “certo” e “errado” perante a sociedade, apesar da maioria dos episódios envolverem questões sérias e sociais, às vezes ocorrem por atitudes mais banais, uma escolha que vai contra a opinião popular do que é considerado moralmente correto. Pode ser desencadeado por meio de uma atitude ou fala tirada de contexto, sendo interpretada de maneira equivocada.
A influenciadora digital do norte do estado, Alice Guimarães*, falou sobre a situação que passou ao expor uma cadelinha que aparentava estar em situação de rua. Na tentativa de ajudar, foi apedrejada pelos supostos donos do animal, sendo ameaçada até mesmo de processo. “Qualquer coisa que a gente possa colocar ali, com o poder de influência que a gente tem, é mal visto ou é visto de outra forma. Cada pessoa entende de uma forma, cada pessoa entende como quer. É realmente bem difícil. São várias situações que às vezes eu mesma me coloco, mas na inocência a gente não percebe”.
De acordo com Adrian, as pessoas que se sentem encorajadas a postar e se posicionar, já romperam barreiras com a timidez e com a insegurança. No momento que são incompreendidas, e sofrem um episódio de cancelamento, acabam tendo um impacto significativo na autoestima, além de despertar uma crença de incapacidade. “A autoestima não é só na autoimagem, não é só a nível corporal. Autoestima é aquele processo cognitivo, de reconhecimento de si, de suas capacidades, de autoaceitação”, aponta a psicóloga.
Alice ressalta a dificuldade que passou ao enfrentar críticas e episódios de cancelamento. Por ser uma pessoa sensível e emotiva, acabou se frustrando e desenvolvendo alguns bloqueios, se afastando das redes sociais e filtrando suas postagens. Segundo ela, é preciso ser forte e ter coragem para se expor diariamente. “Eu quase entrei em uma depressão, mas consegui passar por isso e aprendi que nas redes sociais, infelizmente, a gente não pode demonstrar muita fraqueza”, comenta.
Impacto nos espectadores
Se pararmos para analisar, será que o cancelamento afeta outras pessoas além de seus alvos principais? Fernanda Prichula acredita que mesmo as pessoas que estão apenas assistindo acabam sendo atingidas com a situação. “É a mesma coisa do bullying nas escolas, por exemplo, às vezes a pessoa não é o agressor, mas ela tá ali observando e isso pode ser danoso também. Não é uma cultura legal, é uma cultura que propaga ódio, então isso é negativo para todo mundo, negativo para quem propaga, para quem assiste e para quem sofre o cancelamento”, destaca Fernanda.
O cancelamento e a saúde mental são dois tópicos que estão inter-relacionados. Para aqueles que são alvo e sofrem com ataques e críticas, pode ser extremamente angustiante lidar com a forma radicalizada de agir. Além de uma significativa perda de reputação, é possível notar consequências como o isolamento social e crises de ansiedade. Para os que estão apenas observando, há o medo de expressar-se quando sua opinião se diferencia da maioria e, assim, um dos principais problemas que o cancelamento gera nas pessoas: uma disputa em torno da liberdade de expressão.
A liberdade de expressão consiste em poder dizer, dentro dos limites da ética e do respeito, o que se pensa sobre algo ou alguém. De acordo com a professora Aline Roes Dalmolin, do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a cultura do cancelamento seria a outra face da moeda do discurso de ódio. “Essa pessoa pode ser alvo de quem discorda da posição dela, só que a forma de discordar não é apenas manifestando uma opinião, mas sim, atingindo essa pessoa de outro modo”, ressalta Aline.
Embora exista o direito de expressar-se contra qualquer manifestação preconceituosa, também é necessário ter clareza ao julgar imediatamente um fato. Assim, o direito à liberdade de expressão não é justificativa para violação dos envolvidos. Ela não serve como argumento para propagar formas de discriminação e não autoriza o discurso de ódio.
A perda da liberdade de expressão impacta gradualmente os espectadores, as pessoas não querem receber ataques como os vistos nas redes, portanto, muitas vezes evitam falar sobre algo que acreditam e apoiam. Isso pode restringir o debate saudável e a diversidade de ideias, limitando o progresso social. O medo das consequências do cancelamento leva à autocensura, calando suas opiniões, mesmo quando legítimas e construtivas.
Segundo a psicóloga Adrian Bezerra, quando uma pessoa é cancelada ela se sente agredida de alguma forma, não fisicamente, mas verbalmente. Essa agressão acaba rompendo com o direito humano do indivíduo em se expressar. “Considera-se o cancelamento como uma agressão, porque na maioria das vezes ele não tem o intuito de orientar, mas de agredir”, explica. Além disso, Adrian comenta sobre as estratégias de enfrentamento, que vão além do acompanhamento psicológico e passam por uma questão de consciência humana.
Enfrentando o cancelamento
O acompanhamento psicológico ajuda a questionar e a compreender a realidade dos fatos. Adrian, porém, alerta para a necessidade de buscar outras distrações. “Não no sentido de fugir, porque fugir não é efetivo, mas no sentido de ver que naquele momento talvez seja necessário dar uma pausa”, explica ela. Dar uma pausa nas redes sociais pode ajudar a amenizar o sofrimento vivenciado.
É importante, também, priorizar momentos de prazer e bem estar, como férias, passar um tempo com a família, viajar com o filho, cuidar do animal de estimação ou fazer uma mudança positiva, se distanciando dos efeitos negativos da prática.
Adrian enfatiza sobre a importância de filtrar os conteúdos que consumimos. “Escolher o que você quer ter acesso é uma forma de autocuidado e de favorecer a sua saúde mental”, comenta. Nas redes sociais existem alternativas de privacidade que ajudam a minimizar a repercussão negativa e os impactos da cultura do cancelamento.
Para Alice Guimarães, nenhum cancelamento é justificável. Por trás de um celular ou computador as pessoas se sentem livres para falar o que querem, sendo muito mais fácil fazer um comentário taxativo e ferir alguém com xingamentos.
O contato físico, de alguma forma, evita alguns comportamentos agressivos. Favorecer processos que acentuam a fala, o respeito, o acolhimento e as opiniões diferentes, também pode ser uma estratégia. Prichula alerta para a relevância de manter diálogos e conversas, para que as pessoas que já foram alvos da prática tenham uma rede de apoio e acolhimento. “Porque é assim que a gente vai construir mais pontes, né? E não construir mais muros”, finaliza.
Frederico Westphalen/RS
* Nome fictício
** Fotos ilustrativas: modelo Mariana Saldanha
*Esta é uma produção laboratorial e experimental, desenvolvida por estudantes do curso de Jornalismo da UFSM Campus Frederico Westphalen. O texto não deve ser reproduzido sem autorização. Contato: meiomundo@ufsm.br.