As nuances de três mulheres que trabalham com o sexo no interior gaúcho
Caroline Schneider Lorenzetti, Caroline Siqueira, Julia de Sá, Maria Mariana do Nascimento
“Eu pedia socorro pra todo mundo que passava. Ninguém ajudava. Ninguém ajuda”, relembra Ruby*, 26 anos. Era junho, época em que os dias são curtos e as noites longas. E só Ruby pode dizer o quão fria e interminável foi aquela noite. Nada a preparou para o que estava por vir. Antes de começarmos a conversar, Ruby sente a necessidade de nos dizer que é uma pessoa ansiosa e que a emoção tomará conta dela em algum momento. A partir desse aviso, é impossível não se conectar a essa mulher. Uma muralha foi desfeita e o gravador começa a rodar. Ela nos conta que era mais um dia comum, mais um dia de trabalho, quando foi procurada por um cliente que pedia para passar cerca de uma hora em sua companhia. “Eu normalmente não vou atender em motel, não gosto de sair […] só que eu tava precisando”, afirma com a voz oscilante. Vemos as mãos tremerem em cima da mesa da cafeteria em que estamos, nós quatro, Ruby e Mia*, de 23 anos, que permanece em silêncio acompanhando o relato da irmã mais velha.
Ruby não imaginava que ele a manteria presa em um motel de beira de estrada, tendo seu corpo revirado, violentado, sendo obrigada a fazer coisas que não queria durante uma noite toda. “Ele me obrigou a fazer sexo sem preservativo. Só que assim… é difícil de explicar, mas como eu já passei por situações parecidas, eu sabia que não podia pegar, gritar, brigar…”, afirma com a certeza de quem só tinha duas opções: aguentar até acabar ou arriscar ter um final ainda mais cruel.
Um dia depois, com sede de justiça, Ruby foi até a delegacia de polícia da cidade, pediu ajuda, registrou o acontecimento, mas ninguém acreditou em nada do que contou, todos ficaram contra ela. “Eu fui na delegacia registrar o boletim e eles colocaram coisas que eu nem tinha falado no boletim. E eu toda machucada”, relata. A resposta foi breve. Se quisesse justiça, precisaria fazer isso com as próprias mãos. Naquele momento, recorda ela, parecia ser a melhor alternativa. Com a ajuda de uma amiga, conseguiu descobrir a empresa da família do cliente e onde ele estava. Pegaram um táxi e retornaram ao motel. “Foi quando teve a tentativa de feminicídio. Na hora eu pensei: Onde eu tô com a cabeça para vir aqui, lidar com um cara desse… Ele tentou matar, fez de tudo, sabe? Pegou o carro, tentou atropelar na BR. Eu pedia socorro para todo mundo que passava e ninguém ajudava”, recorda. Neste momento a nossa voz some junto com a perspectiva de qualquer justiça que Ruby pudesse ter, no pior dia de sua vida. Silêncio. Uma dor que traduz o que é ser mulher no Brasil.
Ruby e a amiga foram acusadas de roubo pelo cliente. “Eu lembro que eu quebrei todo aquele limpa vidro de um carro pedindo socorro e as pessoas nem saiam de dentro do carro”, relata aflita, com os olhos fixos em nós, como se aquela fosse a única oportunidade de contar o que realmente aconteceu naquele dia. De deixar claro quem era a vítima e quem era o agressor. A polícia chegou depois de insistentes trinta minutos de ligação. Elas foram revistadas e o cliente liberado. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego, foi esse verso de Chico Buarque da música ‘Construção’, que pairou na mente de Ruby no momento em que a polícia disse que estava lá pela dificuldade para o trânsito e não por ela quase ter sido assassinada enquanto gritava por socorro em meio a tantas pessoas. Agonizou no meio do passeio público. “Daí o motivo foi isso, não que tinha alguém tentando matar a gente, mas era porque estava atrapalhando o tráfego mesmo”. Na contramão, atrapalhando o sábado. “Foi uma das piores pessoas que eu já consegui trabalhar”, diz, com firmeza. E se acabou no chão feito um pacote flácido, no retrato da subnotificação da violência no trabalho sexual.
Ao lado de Ruby estava a irmã, Mia, que bebia um café enquanto nos ouvia. Mia começou a ser acompanhante, como elas preferem nomear a atividade, aos 18 anos. Na época, se envolveu com o chefe, que passou a oferecer dinheiro em troca de relações, até que um dia ela aceitou. Teve, então, o primeiro cliente. E aí, percebeu que “não era uma coisa de outro mundo” e que poderia ser uma opção de trabalho. Foi ela quem estimulou e ajudou Ruby a trabalhar com sexo.
Diferente da irmã, entretanto, não se abriu muito na conversa. Mia é introspectiva, quase silenciosa, e deixa Ruby conduzir os relatos. Mas é visível que carrega em si histórias que ainda não quer que sejam compartilhadas. Quando o assunto paira sobre a filha, Mia se esquiva e permanece ali, silenciosa porém, sempre atenta. Conversar com as irmãs é desconcertante. Ao mesmo tempo que nos contam relatos de violência e abusos, compartilham sonhos, doçura, uma alegria que às vezes soa como uma fuga e nuances que não são da nossa conta. É difícil separar os momentos de alegria e tensão. Faz parte. A estabilidade financeira, a liberdade, a garantia do sustento da família, o medo de parar de trabalhar, o que pode acontecer durante o trabalho, os julgamentos alheios e internos, as viagens, os amores, os desamores, a violência, a solidão, a exclusão, a negligência, a falta de reconhecimento, de regulamentação. Faz parte, e em muitas camadas, essas mulheres parecem ter que se acostumar com isso.
Natasha*, 30 anos, escolheu esse nome por causa da música da banda Capital Inicial, nos relata cantando o trecho de abertura. Tem dezessete anos e fugiu de casa. Às sete horas da manhã no dia errado. Ela saiu de casa na mesma idade que a música conta, foi viver um romance longe da família. Ser Natasha parecia um sinal. Chegando ao destino, no entanto, percebeu que a sua idealização não aconteceria na realidade. Um passo sem pensar. Um outro dia, um outro lugar. Apesar da vida marcada pela violência, a leveza e o bom humor estão presentes o tempo todo na conversa. “Entre meus dezoito e dezenove anos fiquei em boate, porque meu marido queria que eu ficasse. Se eu não fosse, apanhava”. A violência já chegou na vida de Natasha no início de sua juventude, com um companheiro abusivo e que a obrigou a trabalhar com o sexo, inserindo-a nesse mundo. E desde então, só aumentaram as histórias.
A forma como “encontramos” Natasha foi bem peculiar. Uma de nós já a conhecia há anos e, numa manhã de inverno, em uma calçada qualquer, esbarrou com ela. Em uma conversa despreocupada, mencionamos a reportagem e a dificuldade que tínhamos de encontrar fontes. Natasha, de prontidão, se colocou à disposição para ser ouvida. Como se fosse a única vez que alguém escutaria suas histórias para algo que não fosse julgar. Ela nos recebeu na casa dela. Disse que se sentia importante naquele momento, gargalhando logo em seguida. Mas, não deixou de alertar, desde o princípio, que seus conhecidos não poderiam descobrir suas nuances, o outro lado de sua vida.
O gravador, então, é iniciado e Natasha começa a contar a sua história. Ela conta cada detalhe do que viveu, sem sentir vergonha, e ainda evidencia a presença do álcool e do cigarro, o qual a acompanhou durante toda a entrevista. Pelo caminho, garrafas e cigarros. Natasha diz que fuma desde os 15 anos e é perceptível o impacto que este companheiro tem sobre ela, tendo em vista que sofre com asma e, mesmo assim, não o deixa. Ela ainda afirma que os problemas que a bebida e o fumo lhe causaram foram os motivos que a fizeram sair das boates, aos 26. “Pra aguentar o tirão, filha. É muito cigarro. Cigarro e bebida”, afirma se referindo a vida nas casas noturnas, onde trabalhava. “Falei: quer atirar, atira aqui. Porque eu prefiro a morte do que ficar nesse lugar”, diz ao relembrar o momento que teve uma arma apontada para a sua testa, em uma casa noturna em que ficou apenas por uma única noite.
Natasha vinha de boates luxuosas, até parar em uma “boate de lixo”, como ela mesmo descreveu. Ao chegar lá, percebeu que o mesmo quarto em que dormiria, seria onde faria os programas. A garrafa de cerveja custava R$ 24,00. Desses, apenas R$ 4,00 iam para a trabalhadora. “Ele ganhava 20 reais em cima, que exploração!”, relembra. Desaparece antes que alguém acorde. Foi assim, como na música, que Natasha deixou o lugar para nunca mais voltar. Lendo esses relatos, vivenciando, de alguma forma, essas experiências, é muito fácil partir para o discurso moral e, se perguntar: “por que essas mulheres estão onde estão, por que só não buscam outro rumo para suas vidas?”.
A professora Vera Martins, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), utiliza o termo “Dispor de Si” para explicar como devemos olhar para essas situações. Esse termo nos leva ao entendimento de que cada mulher faz valer os seus desejos, as suas vontades, nas condições que se tem. “Na condição que eu tenho, não na que seria ideal, não com a qual eu sonho, mas como é que eu levo a vida que eu quero levar, na condição que eu tenho”, explica.
Mercado do sexo
Lorena Caminhas, de São Paulo (SP), pesquisadora sobre o mercado do sexo e tecnologia, diz que apesar da prostituição estar no hall de profissões, não há dados sobre ela. “Na questão da violência, nós não temos mesmo (índices), porque a gente não produz. Quem faz pesquisa acaba fazendo muito mais pesquisa qualitativa ao invés de quantitativa. E essa violência é muito difícil de ser capturada como um dado. Muitas dessas mulheres não conseguem registrar essa violência, porque elas acabam sofrendo violência da polícia também”, explica Lorena. Para a pesquisadora a dificuldade de denunciar um abuso sofrido durante o trabalho sexual é muito complicada porque existe uma postura da polícia – e autoridades no geral – de que quem se prostitui se coloca na posição de estar disposta a tudo, inclusive de ser violentada. “E no Brasil temos o problema da não regulamentação do trabalho sexual, então é uma profissão, sabemos que ela existe mas é uma coisa que as pessoas não se registram e não tem uma lei como garantia que sustentem ela, esse é um movimento histórico das prostitutas. […] A ideia de não regulamentar, de deixar na clandestinidade é uma forma de fazer com que a prostituição não seja vista, não seja colocada como uma problemática social, a questão da violência que elas sofrem não é vista como um problema de saúde pública. A produção de dados sobre a profissão depende da regulamentação’’, explica.
Ocupação profissional sem regulamentação
No Brasil, a prostituição não é considerada crime, mas quando acontece alguma prisão, geralmente é pelos delitos de Ato Obsceno ou Importunação Ofensiva ao Pudor, que estão no artigo 233 do Código Penal e artigo 61 da Lei de Contravenções Penais, respectivamente. O chamado rufianismo é considerado crime que, segundo o artigo 230 do Código Penal, é “tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo se sustentar no todo ou em parte por quem a exerça”. Somente em 2002, a prostituição passou a ser considerada uma ocupação profissional pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Entretanto, nunca foi regulamentada, mesmo com todas as tentativas. Em 2012, houve novamente a busca para regulamentar a profissão, resgatando o Projeto de Lei Gabriela Leite, que faz homenagem a profissional do sexo e ativista falecida em 2013. No entanto, ainda em 2022, a prostituição, mesmo sendo um trabalho reconhecido, não é regulamentado. O que não garante que essas profissionais tenham direitos trabalhistas, estando sujeitas a precarizações no trabalho, como a violência, brutalidade policial, desrespeito e até mesmo ao tratamento semelhante à escravidão.
A prostituição no Brasil
Gabriela Leite (1951-2013) foi uma trabalhadora do sexo, ativista na busca dos direitos dessas mulheres e da regulamentação da profissão, além de ser fundadora da grife Daspu, que reverte seus lucros em financiamento para a organização Davida, criada em 1992, que busca oportunidades para o fortalecimento da cidadania das prostitutas. Durante sua trajetória, Gabriela sempre dizia que “a prostituta é feita de carne e osso, é uma mulher como qualquer outra”. São mães, filhas, irmãs, esposas… são mulheres como qualquer outra, que têm objetivos, amam e se apaixonam.
“Eu estou aqui não é porque eu não tenho outra opção, é porque eu quero trabalhar com isso agora”, afirma Ruby ao falar sobre os seus sonhos e o que quer para a vida, neste momento. Ela voltou a estudar recentemente, está na faculdade cursando História e pretende trabalhar com Serviço Social no futuro. “Era só mais uma experiência de vida. Eu não tava nem aí. Eu pensava: ‘um dia eu vou olhar pra trás e vou dar risada’. E realmente, eu olho pra trás e dou risada”, afirma Natasha ao mencionar como se sente em relação ao trabalho com o sexo. Ela ainda gargalha ironicamente ao falar que as pessoas acham que ela não conhece nada da vida, por ser jovem. Natasha relembra o tempo que passou nas boates e diz que sente falta e voltaria no tempo para fazer tudo de novo. “Sinto falta das amizades que eu fiz. E sem mentir pra ti, se eu pudesse voltar quando tinha meus 24 […] eu voltaria. No verão. Voltaria, com as minhas meninas, com aqueles rapazes educados, aquelas conversas legais. Voltaria, voltaria sim. Não me arrependo de nada”, evidencia de forma nostálgica.
A jovem não esquece de tudo que passou. As amizades, amores, paixões, os lugares que viveu, como também as violências, os momentos de solidão, a saudade de casa. Em cada lugar se tornava outra mulher vivendo nuances diferentes a cada momento de sua vida. Isso mostra que, independentemente da profissão ou das decisões que essas mulheres tomam, elas são de carne e osso, como mencionava Gabriela Leite. Elas sonham, vivem, curtem, amam e se apaixonam. “Foi o grande amor da minha vida”, afirma Natasha, emocionada, ao relembrar as paixões que as boates lhe trouxeram. Na época, mesmo vivendo uma paixão recíproca, ela não pôde ficar com seu grande amor, pois a dona da boate percebeu o envolvimento e buscou acabar com aquilo, porque não seria bom para o rendimento no trabalho. “Nunca mais o encontrei e nunca mais procurei pra não balançar. Mas, se eu escutar aquelas músicas do Jorge e Mateus de dez anos atrás, automaticamente, vem ele na minha mente. O perfume dele, tudo, sabe?!”, relata com olhos cheios de água. A emoção de Natasha ao falar sobre seu grande amor nos contagiou, era como se estivéssemos no mesmo tempo e espaço que ela, vivendo novamente aquela paixão. Uma paixão que, segundo ela, jamais continuará.
Durante a entrevista, Natasha nos encantou de diferentes formas. Em alguns momentos se mostrava indiferente com tudo que aconteceu em sua vida, em outros deixava clara a sua nostalgia e vontade de voltar naquele mesmo lugar. Talvez seja o caminho que ela encontrou para viver com essa saudade e com as consequências que o trabalho trouxe. Ou talvez seja exatamente assim que ela escolheu ser, neste momento. Perguntamos qual era o seu sonho e a resposta nos surpreendeu: “Meu sonho? Poderia ser bem sincera com meu sonho?! Pô cara, meu sonho é curtir a vida adoidada num Rock and Roll maluco, num encontro de moto, com um moicano pink. Sabe?! Um motão, no máximo umas 1000 cilindradas. Jaqueta de couro, calça de couro, coturno de couro. E sair pelo mundo. Isso aí é minha expectativa de futuro, de sonho, de tudo…”.
É difícil colocar um ponto final nessa reportagem, porque essas histórias não acabaram. Tem muito mais para se discutir sobre prostituição no Brasil e o que é ser uma trabalhadora do sexo aqui. Não é fácil olhar para uma pessoa enquanto ela permite compartilhar toda a sua vulnerabilidade com a gente, muito menos, fazer jus a essas histórias, sempre parece que falta algo, porque pensando no Brasil, há muitas ausências.
Essas histórias são sobre mulheres que apesar da insistência política, governamental e social de serem constantemente invisibilizadas pela escolha profissional, sustentam as suas famílias, cuidam dos seus filhos, são seguras do que querem e fazem de tudo para continuar vivendo, e sobrevivendo, mesmo carregando tanto dentro de si. Ruby, Mia e Natasha nos contam que, no decorrer dos anos que trabalharam, já foram várias mulheres em uma só. Já carregaram diversas nuances e camadas em uma só vida. Carol, Mia, Bruna, Ruby, Natasha. Fazem parte de um compilado complexo e interminável do que é ser mulher e desempenhar a liberdade sexual como bem quiser. “Não, eu não consigo”, afirma Ruby em relação a se apaixonar por clientes, e continua: “acho que é por isso que eu sou sozinha”. E assim, naquela manhã nublada de sábado, finalizamos nossa conversa. O gravador para. Elas permanecem ali e nós seguimos.
Frederico Westphalen, RS
*Esta é uma produção laboratorial e experimental, desenvolvida por estudantes do curso de Jornalismo da UFSM Campus Frederico Westphalen. O texto não deve ser reproduzido sem autorização. Contato: meiomundo@ufsm.br.