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Um ofertório de camisinhas



Como uma equipe ligada à Igreja Católica enfrentou resistências e percorreu o interior de um pequeno município de SC, nos anos 1990, para falar de prevenção à AIDS e às DSTs

Ivan Augusto Rohrs, Josué Ângelo, Yasmmin Ferreira

Foto: Yasmmin Ferreira

Com as mãos firmes no volante, conduzindo o carro por uma estrada de terra, Rosa Maria Silvestri Gris seguia para o interior de Quilombo (SC). Sozinha em um fusca azul movido à gás de cozinha, carregava consigo conhecimento, vontade de ajudar, e uma sacola repleta de materiais. Nela, vários panfletos que estampavam imagens do corpo humano, com destaque para o pênis e a vagina. Rosa ia trabalhar a mensagem de uma campanha de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis. A população quilombense, em 1991, quando a AIDS tornou-se motivo de preocupação na região, era de quase vinte mil pessoas. Cruzando caminhos de terra, Rosa ia ao encontro de pequenas comunidades para falar sobre saúde e prevenção. E sobre a camisinha.

As famílias chegavam gradualmente ao pavilhão da Linha Nova Aratiba, na atual Formosa do Sul, situado a quase 25 km da Paróquia Santa Inês de Quilombo. Lá, se depararam com os preservativos sob uma mesa de madeira ao lado da porta, à disposição para quem quisesse pegá-los. Após a chegada de Rosa Maria, todo ambiente para a conversa foi organizado, inclusive com as imagens de genitálias humanas coladas em grandes pedaços de tecido, evidenciando os sintomas de sífilis ou de cancro mole, por exemplo, e o que poderiam causar nos órgãos.

Rosa Maria Gris, hoje com 72 anos, recorda sobre como era o contato das mulheres do campo com temas da sexualidade humana. E relembra de algumas reações. “Teve uma mulher que botou as mãos no rosto, ela se abaixou nos bancos da igreja, não queria ver aquilo. Não queria ver. Vários homens, rapazes novinhos, saíram da igreja”.

Casada desde os 17 anos, saiu de Paraí (RS) rumo ao estado vizinho, Santa Catarina. A viagem de dois dias e a mudança de vida causaram uma grande ruptura no seu cotidiano, resultando, alguns anos depois, em depressão. A possibilidade para resistir aos novos desafios veio na escolha dela, dentre as mulheres da comunidade da Linha Guarani, onde mora, em Formosa do Sul (SC), para ser agente de saúde e participar de encontros formativos. Sem demora, tornou-se coordenadora da pastoral e, depois, uma das representantes da equipe paroquial do lugar.

No mesmo ano, 1966, a professora Alzira Líbera Canan, outra personagem desta história, chegou ao município. Nascida em Nova Araçá (RS), cidade vizinha à Paraí, entrou para a vida religiosa com 16 anos. Foi para o Colégio das Irmãs Salvatorianas, vindas da Alemanha, e que, segundo Alzira, eram bem rígidas. Em sua infância, o tema da sexualidade não era presente. Como detalha, as freiras tinham uma escola muito grande, desse modo, todas as internas deveriam ajudar na limpeza. Mas não de qualquer maneira. “Nós tínhamos que ter uma posição para puxar escovão, […], porque podia provocar, como é que eu digo, […] tinha uma posição para puxar o escovão e para não mexer com o corpo”.

Anos depois, já em Santa Catarina, Alzira trabalhou por um ano em Quilombo, na Escola de Educação Básica Professora Jurema Savi Milanez, até ser escolhida para lecionar, mesmo com o magistério incompleto, na escola São Francisco, em Chapecó (SC). A vida de educadora não era fácil. Mal tinha tempo para almoçar. Dormia pouco. Acordava cedo e começava sua caminhada para o trabalho. Ia a pé porque não tinha dinheiro para a passagem de lotação. Viveu apenas um ano na capital do oeste catarinense. Ao retornar para a escola quilombense, Alzira também foi ministra da eucaristia, de casamento e de batismo. Mesmo depois de aposentada, continuou como voluntária da equipe paroquial por 25 anos, trabalhando, às vezes, em três turnos.

Em um bairro no alto de Quilombo, numa casa com paredes repletas de quadros, encontramos Dona Alzira. No frio de junho, logo cedo, ela tentava manter o corpo aquecido ao sentar-se ao lado do fogão à lenha, no amplo cômodo em que recebe as visitas para uma boa prosa. A mulher, de oitenta anos, recordou de toda a sua trajetória sem sair do lugar. Os retratos e imagens expostos no espaço não são apenas decoração, estão ali pelo valor simbólico que carregam. Ajudam a contar a história dela. Há desde registros de momentos em família, até uma imagem do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, eternizando a luta dos trabalhadores sem terra no país.

Desde os primeiros padres da paróquia, toda ação da igreja, no município, era vinculada à teologia da libertação e, portanto, em defesa dos mais pobres. Foi por isso que Sirlei Antoninha Kroth Gaspareto, aos 24 anos, pediu transferência para a cidade em 1986 e foi morar na casa da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, em Quilombo. No contexto em que vivia, ser religiosa era poder ocupar espaços na sociedade.

Natural de Sobradinho (RS), Sirlei, que hoje em dia mora no mesmo bairro de Alzira, entende que é preciso avançar nos níveis de consciência, chegando ao ponto em que não basta a indignação: “Ah, se indignar porque ‘ali tem aquela família pobre que está com AIDS e vai morrer doente e coitada’. Não! É preciso que a gente compreenda que a pobreza é produto de um sistema social que precisa ter uma intervenção”. Assim como Alzira e Rosa, Sirlei Gaspareto fez parte da equipe paroquial e, por isso, participou ativamente das campanhas de conscientização da década de 1990.

Foto: Yasmmin Ferreira

A desmitificação do “normal”

O modo de vida e as relações humanas são diferentes ao se tratar do interior de qualquer estado. Em Quilombo, as festas de comunidades são o evento do ano para algumas pessoas do interior. Outros grupos também prestigiam a festividade e, portanto, há interação entre o povo da região, muita música, celebração, churrasco, saladas, bebida, criançada correndo e muito papo. No entanto, para que a festança seja realizada com sucesso, é necessário organização e doações das famílias associadas à direção da comunidade católica. 

Nas reuniões da diretoria, ou nos cultos que antecedem a festa, no mais puro estilo leilão, as pessoas erguem a mão e ficam responsáveis por determinada tarefa. Se dispõem a fazer um pudim, ajudar na produção do sagu, doar os pães, ou responder por outros afazeres. No caderno de quem anota as funções, fica registrado o nome do homem da família. Quem produz o alimento, no entanto, é a mulher.

Saindo de Itajaí (SC), Zenaide Collet, vizinha de Sirlei, mudou-se para Quilombo para trabalhar como agente pastoral no início da década de 1990, também pela Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição. Para além do trabalho na equipe paroquial, se envolveu e participa do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) onde é possível abordar pautas em torno da sexualidade.

O MMC nasceu no sul do Brasil, em 1º de maio de 1983, com objetivo de libertação das mulheres da opressão, da exploração, da violência, e na busca por direitos. “A mulher era a serviçal, pra tá em casa, com responsabilidade dos filhos, da comuna, do cuidado dos idosos, dos doentes, e toda a produção de auto sustento é dela. Então a mulher não tinha liberdade pra nada”, complementa Zenaide. A partir do momento em que as mulheres começaram a reservar um tempo para si, para estudar, refletir suas condições, e, principalmente, questionar o sistema patriarcal em que viviam, os olhares voltaram-se a elas. “Eles queriam uma mulher quase santa”, menciona a camponesa Justina Inês Cima, 66 anos, liderança do MMC.

Além de toda a conscientização promovida nos encontros de mulheres, o momento permitia desabafos e busca por ajuda. Nas rodas de conversa, algumas mulheres relatavam casos de violência, mas eram exceções. A maneira encontrada pela maioria das camponesas era procurar diretamente as integrantes do movimento e relatar a situação. Tinham receio de compartilhar assuntos tão pessoais.

As mulheres que se propunham a quebrar tabus sofriam com o preconceito. Para os homens, na época, a vida era baseada no trabalho constante de estar na roça com enxada, foice, facão e carroça. “Quero ver o que vocês vão comer daqui um tempo”, disse um dos vizinhos de Rosa durante a campanha, na década de 1990. Esta foi uma das frases mais dolorosas entre as que estão marcadas na lembrança. As palavras escolhidas, o tom da voz e a atitude incomodaram Rosa, que não sabe se o homem percebeu que elas trabalhavam e ganhavam dinheiro. Ele não chegou a dizer com todas as letras, mas insinuou que as mulheres deveriam ficar em casa. A esposa dele, ao lado, permaneceu calada.

Apesar do estrago que as manifestações contrárias causaram, Rosa Gris entendeu que tais atitudes são frutos da educação que receberam no passado e reafirma a importância do acesso à informação. Por ter nascido no fim da década de 1940, ela reconhece que sua formação familiar poderia ter sido diferente. “Na nossa época de criança e juventude, falar de sexo ou de aparelho genital masculino ou feminino era pecado, era sujo e era vergonha. Então primeiro de tudo precisou nos conscientizarmos”, conclui.

Durante a conversa, surge à mente de Rosa uma lembrança. Percebe que, além de sensibilizar pessoas de sua faixa etária para o risco das DST, as mensagens alcançaram os filhos dos casais que ouviam atentamente os sinais de alerta. No mesmo dia em que uma mulher tapou o rosto durante a campanha de preservação às DST, alguns jovens estavam no pavilhão da Linha Nova Aratiba. 

Para eles, a ocasião foi um alívio, visto que as informações levadas pela pastoral desmistificaram aquilo que ouviam brevemente na TV e no rádio, onde os portadores de HIV eram rotulados como pessoas fadadas à morte. “De acordo com o que falavam na TV, a AIDS era o fim do mundo. Ia acabar com a população. Quem pegava, não tinha cura. Ia acabar morrendo”, recorda Vilamir José Werner, um dos jovens presentes no encontro. “Cada jovem tinha uma camisinha no bolso, mesmo que não usasse. Porque Deus me livre ter uma namorada e fazer sexo sem camisinha”, relatou Vilamir que, atualmente, tem 49 anos. Para ele, as iniciativas das pastorais e da Paróquia Santa Inês ajudaram na conscientização em relação aos cuidados.

Foto: Yasmmin Ferreira

Quilombo foi uma ilha

Telefone celular, televisão em casa, acesso à educação, energia elétrica ou água potável encanada. Alguns ou mesmo todos esses itens não eram parte do cotidiano de muitas pessoas no município de Quilombo, em 1991. O acesso à informação foi concretizado com as notícias compartilhadas pelo rádio ou panfletos entregues nos cultos da igreja. Logo, percebeu-se mais um dos motivos que as faziam participar da celebração. “Essa família ali, sendo bem pobre, se ligou às questões da igreja, e a igreja teve um papel fundamental nesse processo porque contribuiu com a educação para saúde”, destaca Sirlei Gaspareto.

Os materiais que a Paróquia Santa Inês, de Quilombo, recebia vinham através da Diocese de Chapecó e eram uma produção conjunta entre o SUS e o estado de Santa Catarina. Contudo, para a equipe paroquial, a linguagem utilizada em alguns materiais não convergia com a realidade da região. Por isso, o grupo de lideranças reunia-se, muitas vezes na casa de determinado integrante, e, confrontando a bíblia e o conteúdo proposto, passavam o dia todo estudando. 

Muitas vezes, o debate se alongava. Uma sopa ajudava a atravessar noite adentro. A sequência do trabalho era na estrada, indo ao interior para informar e discutir as temáticas. “Depois da gente bem abastecida com a bíblia e o material na mão, trazida para a nossa realidade, a gente saía a campo, ia pro trabalho”, recorda Alzira.

A opção por repensar um material “pronto” e adequar às novas abordagens, incluindo sexualidade, não agradou a todos. “Quilombo era um conflito permanente com a burguesia local, com os que dominavam e os fazendeiros por ali”, relata Padre Reneu Zortea, 65 anos, que trabalhou na paróquia quilombense entre 1994 e 2003. 

A referência para a equipe paroquial era a Teologia da Libertação, que, dentre os caminhos de reflexão da igreja católica, “tem como foco aquele Deus que liberta”, explica Reneu. No entanto, as revoltas alcançaram o nível da agressão física. “Nós tivemos momentos que o pessoal pegou a cadeira pra atirar em nós por causa das reflexões, dos momentos. Foi muito conflito, permanentemente conflito”.

Para Sirlei Gaspareto, a Teologia da Libertação anima as pessoas a seguirem ajudando pelos bastidores do mundo, pela marginalidade. E explica: “Então vai ao encontro dos leprosos, que seriam os Aidéticos; vai ao encontro dos doentes, do órfão, da viúva. Enfim, daqueles que são os que não contam na sociedade”. A aproximação à teologia libertadora como opção de igreja, fez com que as lideranças, mesmo sem funções institucionazadas, seguissem no caminho de causas sociais.

Como se estivessem ilhados, pois distantes de grandes centros e com acesso limitado às inovações, a equipe paroquial desbravou novos caminhos e realizou abordagens diferenciadas a ponto de atender os que, até então, eram invisíveis. Entretanto, mesmo em uma ilha, é possível transpassar para outras direções, dar a volta na região ou percorrer todo seu interior.

Foto: Josué Ângelo

A luta contra o vírus

A assistência da população mais carente de Quilombo era realizada também por pessoas ligadas à Equipe Paroquial. Antes do SUS, os mais pobres morriam por não ter acesso à saúde digna. A partir da criação do sistema, foi possível salvar muitas vidas. “Eles tinham muito carinho por nós e ouviam muito a gente. Então a gente acompanhava, visitava e os procurava”, relata Sirlei ao lembrar que acompanhou um caso soropositivo.

Na ponta de uma ladeira íngreme de Quilombo há uma casa. Sem reboco, sem piso, com apenas o básico. Nela, mora Joana*, que no ano 2000 recebeu a notícia de que o marido, Antônio*, tinha AIDS. Na época, as informações que chegavam ao interior pela mídia assustavam, falando constantemente sobre casos como o do cantor Cazuza. As pessoas tinham medo de serem infectadas até mesmo pelo toque, algumas acreditavam que o vírus era transmitido pelo ar ou que poderia ser contraído em um aperto de mão. O preconceito e a falta de informação cercavam a doença.

No caso do companheiro de Joana, a infecção aconteceu enquanto ele estava preso e precisou realizar a extração de alguns dentes. Descobriram bem depois. A suspeita veio junto com um resultado positivo para Hepatite, obtido em exames rápidos realizados durante uma doação de sangue. 

A AIDS não mandou avisos, embora as campanhas da época tenham tentado. Um mês após o diagnóstico do esposo, Joana descobriu que também tinha a doença. “Eu estava preocupada com o meu filho”, afirma ela. Sorri contida, enxuga os olhos. Depois, olha para o teto, cabeça levantada, tentando se conter. O filho não foi infectado pelo HIV. 

A doença trouxe medo à família, e Antônio ficou perturbado, sem saber o que fazer. “Ele entrou em depressão, ficou uns quarenta dias sem me contar nada”, comenta. Durante sete anos, Joana não precisou fazer o uso de medicamentos, diferente do esposo, que começou o tratamento quase que imediatamente. Antônio morreu em 2018, de um infarto.

Nos anos 1990, quando a Aids começou a ser debatida em Quilombo, existiam duas farmácias no município. Neiva Zilio, dona de uma das farmácias, conta que os preservativos, comprados de grandes distribuidoras, chegavam em lotes e eram colocados em um canto discreto. O mesmo acontece até hoje. “A gente deixa a gôndola lá atrás pra eles irem lá e escolherem à vontade, porque na frente eles ficam constrangidos”, revela Neiva. “Eles se sentem envergonhados”.

Há aproximadamente 9.800 pessoas residindo atualmente em Quilombo. Destas, apenas 11 possuem o vírus HIV. Apesar da vergonha de trinta anos atrás ainda existir, a campanha realizada teve efeitos positivos, e suas integrantes seguem morando na região. Sirlei Antoninha Kroth Gaspareto reside em Quilombo e compõe a Equipe de Assessoria Institucional do Sistema Cresol Central Brasil; Alzira Líbera Canan é aposentada há 36 anos e, assim como Justina e Zenaide, mora em Quilombo. Zenaide Collet é professora aposentada, mas atualmente vive como camponesa, estudante e militante; Justina Inês Cima é camponesa e faz parte da Direção Nacional do MMC; Rosa Maria Silvestri Gris mora em Formosa do Sul, é agricultora e realiza terapias de reiki, aromaterapia, massoterapia e fitoterapia.

Apesar das dificuldades ao longo do caminho, elas garantem que fariam tudo de novo.

Quilombo, SC

*Esta é uma produção laboratorial e experimental, desenvolvida por estudantes do curso de Jornalismo da UFSM Campus Frederico Westphalen. O texto não deve ser reproduzido sem autorização. Contato: meiomundo@ufsm.br.

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