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O que a “gente da mata” tem a dizer



A preservação da língua e da história do povo kaingang são importantes para a resistência

Luís Claudio Klafke, Marina Oliveira , Mateus Costa, Witor Silva, Nicolas Felippetti

Foto: Witor Silva

Educar também é resistir. Para Valdomiro Farias, 41 anos, indígena Kaingang, que nasceu e cresceu na Aldeia de Pinhalzinho, localizada na Terra Indígena Nonoai, região norte do Rio Grande do Sul, a realidade bateu na porta cedo. Ou melhor, chegou sem avisar. Ainda quando jovem, ele teve que decidir entre deixar de estudar ou sair do seu lar rumo à cidade de Planalto, no mesmo estado, para que pudesse permanecer na escola. 

Escolher a educação pode ser duro, mas, quando apenas isso é capaz de manter viva a história de um povo, não há dúvidas de que, além da resiliência, há a capacidade de lutar por quem se é. E essa é a realidade de quem tem na busca por conhecimento um desafio, mas acima de tudo, a possibilidade de preservar sua identidade cultural. 

Mas o que mais pode vencer o medo, senão os sonhos? “Desde pequeno sempre quis ser professor, eu fui um dos primeiros indígenas aqui da aldeia a frequentar uma escola não indígena. Sempre tive o desejo de oportunizar que mais pessoas possam sonhar e realizar sonhos”, relata Valdomiro, que hoje é um dos 14 professores da Escola Indígena de Cacique Sy Gre. 

No Brasil, existem cerca de novecentos mil indígenas, de acordo com dados do último levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010. Destes, aproximadamente 517 mil vivem em territórios demarcados como terras indígenas, sendo divididos em 305 etnias. Para as estatísticas, Valdomiro é apenas mais um número. Na vida e no cotidiano da Aldeia, no entanto, o professor faz toda a diferença, visto como inspiração e esperança para a educação voltada à realidade das comunidades indígenas.

Lutar por políticas públicas educacionais direcionadas à educação indígena, tornando o conhecimento acessível a todos, é o que motiva Valdomiro todos os dias. “A gente continuar trabalhando nas escolas e mudar a educação, tentar mudar dessa maneira. Fazer com que esse aprendizado que estamos tendo dentro da universidade chegue nas escolas. Que se torne uma educação mais indígena, atenta à realidade das comunidades”, destaca o professor. 

Longe da cidade, próximos das raízes

Um lugar calmo, confortável aos sentidos. Repleto do verde das árvores, que cobrem a vista de quem passa na estrada. O som dos pássaros é a música ambiente, preenchendo o silêncio da floresta. Seguindo pelo caminho de terra, nos deparamos com a entrada da Escola Indígena de Cacique Sy Gre, da Aldeia Pinhalzinho, onde os professores Valdomiro e Paulo – conhecido como Paulinho -, que são primos, estavam nos esperando. 

Valdomiro é chamado de Kãnfer na Aldeia. Em tradução livre do kaingang, significa orvalho da noite. Foi um dos primeiros de Pinhalzinho a romper a barreira da diversidade na educação. Isso porque a escola que frequentava, uma pequena estrutura de madeira construída pela Fundação Nacional do Índio (Funai), só havia ensino até a quarta série. Para seguir adiante, teve que sair da Aldeia para estudar na cidade de Planalto e, posteriormente, em Chapecó (SC), indo e voltando todo dia, enfrentando diversas dificuldades. “Foi uma vida muito complicada, porque ainda existia essa discriminação, ainda existia preconceito e não foi fácil”, lembra Valdomiro. 

Paulo Farias, 39 anos, recebeu o nome indígena Jótánh de sua avó aos sete anos, que lhe comparava a um pequeno peixe rápido. Assim como Valdomiro, nasceu e cresceu na Aldeia de Pinhalzinho e também luta por uma melhor educação no local. 

Atualmente, ambos são acadêmicos da graduação de Ensino Indígena na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e fazem parte do grupo de quatorze professores da escola indígena na Aldeia Pinhalzinho. Graças às suas experiências do passado, Valdomiro consegue perceber as mudanças de foco de aprendizagem entre as escolas indígenas e não-indígenas e vislumbra, em um curto período de tempo, conseguir adaptar a educação à realidade dos povos indígenas. “Nossa educação não é baseada no individualismo que lá na cidade tem. Nosso ensinamento é baseado no coletivo, né. Onde ele não sabe, ele convida outro aluno, senta do lado, assim aprende, assim a gente tá tentando criar uma nova metodologia de educação”, ressalta. 

Ainda sobre a realidade indígena, o professor revela um pouco das dificuldades que o estudante indígena encontra nos ambientes escolares ou universitários, que não estão preparados para recebê-lo. “Ele acaba desistindo. Não é por não ter vontade, mas são essas dificuldades culturais que ele enfrenta. É uma vida totalmente diferente”, explica. 

Hoje, a educação indígena é levada um pouco mais a sério se comparada ao que era na década de 1990. Ainda longe do ideal, todavia, ela apenas caminha em um rumo mais adequado. Na Aldeia Pinhalzinho existem mais três escolas além da Cacique Sy Gre, situação melhor do que a enfrentada na infância de Valdomiro. Em relação aos materiais didáticos para o ensino, o professor afirma que recebem os de assuntos gerais como em outra escola qualquer. A parte de cultura específica e de idioma kaingang tem de ser elaborada pela própria escola. Por este motivo, a escola tem a autonomia de escolher temas e como eles devem ser retratados. Mas para produzir os materiais esbarra em outro problema: o orçamento limitado. 

A falta de recursos precariza o material didático kaingang que a escola deve disponibilizar e, apesar da existência de projetos federais específicos para criação dos mesmos, o aporte financeiro não é suficiente. Isso faz com que o material para o ensino médio, por exemplo, ainda seja muito escasso. “Todo ano a gente consegue montar alguma coisa, mas ainda é muito pouco”, explica Valdomiro, comentando a falta de recursos: “não é material [completo] que eu possa ter para o ensino médio ainda, a gente tá pegando agora de ensino fundamental, tentando fazer alguma coisa de ensino fundamental [primeiro], porque não há recurso”, esclarece.

Foto: Witor Silva

Mais de 500 anos de luta

A luta de Valdomiro por uma educação voltada à realidade das comunidades indígenas tem 522 anos e se conecta diretamente com a chegada dos povos europeus nas terras tupiniquins. O projeto de colonização impôs uma diretriz educacional que perdurou por séculos, marcada pela exploração e pelo etnocentrismo (ato de julgar a cultura do outro baseado na sua própria moral e crenças, leis, costumes e hábitos), num processo que resulta na opressão das diferenças culturais. Um efeito dessa diretriz pode ser observado na diminuição de idiomas indígenas existentes. Segundo levantamento realizado em 2010 pelo IBGE, estima-se que no período anterior à chegada dos colonizadores portugueses no Brasil, eram falados cerca de mil línguas pelos povos originários. Apenas 274 sobreviveram a esse processo – número que pode ser ainda menor, devido ao distanciamento deste último censo e o período atual. A Companhia de Jesus, que representava a Igreja Católica, iniciou a educação jesuítica com hegemonia no Brasil em 1549, criando missões e colégios até 1759, quando Marquês de Pombal expulsou os jesuítas de Portugal e de suas colônias. O pesquisador Wilson Ricardo Antoniassi de Almeida, doutor em educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) argumenta que “os jesuítas combinavam a catequese e o ensino em suas práticas, ou seja, à aprendizagem de seus trabalhos. Porém, o processo acontecia com uma distinta divisão social, sendo a catequese direcionada aos indígenas, praticada nos aldeamentos, e a educação à elite, ensinada nos colégios religiosos”. As práticas educacionais suprimiram a cultura não-europeia. A educação por parte dos jesuítas se tornou a base da desigualdade social, privilegiando as elites. Aqueles que não faziam parte dos estratos sociais mais altos foram impedidos de ascender socialmente. A educação foi um instrumento essencial na manutenção do sistema colonial escravista. Após a expulsão dos jesuítas, o Brasil ficou sem sistema educacional. Foi apenas com a vinda da Família Real Portuguesa, em 1808, que foram criadas as primeiras escolas superiores. Porém, o ensino básico continuou a ser relegado. A Constituição de 1934 tornou, pela primeira vez, os direitos dos indígenas reconhecidos constitucionalmente. No entanto, deixa claro que é responsabilidade do estado agregá-los. O artigo 5º, inciso XIX, é bem claro: “compete privativamente à União: m) incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”. As seguintes atualizações na lei reforçaram a ideia de integração com a sociedade não-indígena. Foi somente com a promulgação da nova Carta Magna, em 1988, que os indígenas tiveram o reconhecimento de sua cultura assegurado. O artigo 231 afirma: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. O marco da nova constituição abriu caminho para o avanço da educação indígena. “O processo da educação indígena, começa bem tarde, por causa de um processo político que sempre houve em relação à questão indígena. Começa lá nos anos 1980 com alguns professores que trabalhavam em instituições [de ensino], que [o governo] mandava para as aldeias para alfabetizar sem ter uma educação formal adequada com a nossa realidade. Isso só acontece depois que se aprovou a Constituição Federal”, aponta Valdomiro Farias. Além de assegurar direitos, a lei maior dá ênfase à atuação governamental na proteção da cultura indígena, destaca o professor de Direito, Gustavo Proença, pesquisador na área de direitos humanos, em entrevista à Agência Brasil: “hoje, há também o papel preservacionista [do Estado Brasileiro], a população indígena tem direito a uma escola dentro de sua aldeia, onde são ensinados, além do português, a sua língua originária, a sua forma de reprodução cultural tradicional”, observa. Apesar dos avanços, ainda há um grande déficit na infraestrutura das escolas indígenas. De acordo com o Censo Escolar da Educação Básica mais recente divulgado pelo Ministério da Educação (MEC), em 2018, das 3.345 escolas indígenas, 1.029 (30,76%) não funcionam em prédios escolares e 1.027 (30,70%) não estão regularizadas por seus sistemas de ensino. Além disso, 1.970 (58,89%) escolas não possuem água filtrada, 1.076 (32,17%) não possuem energia elétrica e 1.634 (48,85%) não possuem esgoto sanitário. São 3.077 (91,99%) escolas sem biblioteca, 3.083 (92,17%) sem banda larga e 1.546 (46,22%) que não utilizam material didático específico. E, apesar de 2.417 (72,26%) escolas não informarem a língua indígena adotada, todas as unidades escolares utilizam a linguagem indígena. 

Apesar de haver o ensino da língua materna indígena, também há uma barreira linguística devido à falta de professores Kaingang formados em áreas como história, geografia e filosofia. “Os alunos têm dificuldade de aprender em outra língua senão a materna, a gente tenta incentivar dentro da escola e esperamos que assim seja em casa também”, frisa Valdomiro. Embora manter as raízes e a cultura pareça algo simples, quando se trata de um processo de colonização, essas questões se tornam ainda mais delicadas. Considerando que desde o início a intenção dos colonizadores era acabar com a cultura e história destes povos, lutar pela língua não é somente uma questão de manter viva a memória, como também de resistência. Espaço e visibilidade garantem um futuro de sonhos que podem se realizar. “Minha perspectiva de futuro é colocar em prática o que foi aprendido na universidade e levar para as escolas indígenas, também alterar a educação, para que possa se adaptar às questões indígenas, tendo um aprendizado contextualizado”, comenta Valdomiro, com entusiasmo. Uma missão de família.

Foto: Witor Silva

Jogando pela sobrevivência das origens 

Os primos Valdomiro e Paulinho pegam a estrada quinzenalmente rumo aos polos de ensino da UFSM para acompanhar as aulas presenciais do curso de Educação Indígena, uma graduação multidisciplinar, que tem como objetivo suprir carências da docência e é composto apenas por estudantes kaingang. “O que tem me motivado a fazer o curso na UFSM é levar a cultura indígena para fora da aldeia de Planalto, ampliando a cultura indígena para outros lugares, podendo competir no mercado de trabalho”, expõe Paulo. O anseio do professor é de fazer cumprir a Lei N.º 11.645/08, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena em todas as escolas brasileiras, públicas e privadas, do Ensino Fundamental e Médio. Apesar disso, hoje ele nada contra a correnteza em busca de expandir a cultura indígena para fora da reserva. “Desde pequeno sempre fui sonhador, tentei construir meu próprio avião com pedaços de madeira. Como todo brasileiro, também me arrisquei no futebol até os 15 anos’’, declara Paulinho e, com um sorriso no rosto, brinca que não tinha habilidade suficiente para continuar carreira, até que decidiu jogar contra outro adversário, a educação precária. Para chegar até essa altura do campeonato, ele precisou driblar alguns adversários, como a falta de um vestibular adaptado aos ensinamentos indígenas (o primeiro ocorreu apenas em dezembro de 2004, na Universidade Federal do Paraná), o que resultou em um início tardio da carreira de professor. “Tenho o dom de ensinar, isso fez com que eu me tornasse professor”, ressalta. Embora Paulinho e Valdomiro tenham escolhido o conhecimento como forma de enfrentar as adversidades impostas ao seu povo, a educação indígena não é uma escolha para o Estado. Em um país colonizado que tem a cultura europeia enraizada, lutar por políticas públicas educacionais que correspondam e respeitem o currículo indígena soa como algo utópico. Ainda assim, os professores seguem resistindo por qualidade de ensino e espaço em uma sociedade excludente e irresponsável. Lutando juntos pela língua e pela própria história como forma de manter viva a memória e a cultura de seu povo, nossos personagens seguem resistindo. Tornar o sonho de poder ser quem são em realidade tem possibilitado que outros sonhos se tornem palpáveis, e assim a realidade vira uma boa história.

Desafios da educação indígena no Brasil

Dados do Censo Escolar da Educação Básica divulgados em 2018 pelo MEC (Ministério da Educação) revelam as dificuldades das 3.345 escolas indígenas brasileiras, conforme segue:

Planalto, RS | Frederico Westphalen, RS

*Esta é uma produção laboratorial e experimental, desenvolvida por estudantes do curso de Jornalismo da UFSM Campus Frederico Westphalen. O texto não deve ser reproduzido sem autorização. Contato: meiomundo@ufsm.br.

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