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Diante das margens



Preservar as matas ciliares que protegem os rios garante a continuidade dos ecossistemas que possibilitam a existência da vida

Ana Carolina Zago, João Carlos Neto, Lídia Veronica Tedesco, Taís Schakofski Busanello, Thalita Vizioli

Foto: João Carlos Neto

Berço das nascentes e da biodiversidade. O fluxo das águas vai além dos rios. Transpassa a noção humana de tempo. Entre o profundo e o superficial, está o movimento da vida, no ritmo do equilíbrio da natureza e no descompasso do dia a dia das cidades. Enquanto a humanidade faz morada nas margens dos rios, e a partir desse ambiente extrai recursos para sobreviver, a estrutura das bacias hidrográficas é colocada em risco. Ignorar os problemas que afetam os ecossistemas significa dar vazão à nossa própria destruição.

O Rio da Várzea é o principal curso d’água que integra a Bacia do Rio da Várzea e a Região Hidrográfica do Rio Uruguai. A teia dos rios que compõem a Bacia da Várzea conecta a vida de mais de 300 mil habitantes humanos e uma infinidade de outras espécies vivas, em um território de 9.479 km² e que envolve 55 municípios do noroeste do Rio Grande do Sul. Ainda que intensamente desmatadas, as pequenas regiões com vegetação nativa abrigam fauna e flora de grande importância, servindo de corredor ecológico para espécies ameaçadas de extinção, como a onça-parda. Além disso, a região está próxima ao Parque Estadual do Turvo, último refúgio no estado para animais como a onça-pintada, a anta e o gavião-real.

Em um sentido humano, no campo ou na cidade, a importância da Bacia da Várzea é dada pelas atividades que ela proporciona. Além de garantir o fornecimento de água, o entorno do rio da Várzea é terreno para diversas práticas agrícolas, em especial lavouras de soja, de trigo e de milho. A criação de animais, como a avicultura e a suinocultura, se somam à essa lista. Há também interesses na capacidade hidrelétrica da bacia, assim como na extração de rochas com valor econômico, dentre elas, a ametista.

Várzea significa início raso. Um lugar com pouca água, mas muitas histórias. Nos mapas, é possível saber onde a bacia começa e onde termina. No entanto, a cartografia não mostra o futuro dos rios e dos riachos, que é incerto. Desde a derrubada das árvores nas margens, até a poluição das águas, resultado direto da exploração humana ao longo do tempo, os cursos d’água sofreram diversas modificações.

Além das margens

As matas ciliares possibilitam manter a qualidade da água, diminuindo os problemas de erosão e de contaminação. A vegetação serve como contenção do solo e filtro da água que escorre para o leito dos rios e córregos. A legislação florestal brasileira, Lei N.º 12.727, define que devem ser conservadas as matas ciliares em torno dos cursos d’água com uma metragem que varia de 30 à 500 metros, determinada pela largura do rio, porém a falta de preservação dessas florestas é o maior problema do rio da Várzea atualmente. O professor Edner Baumhardt, 39 anos, do curso de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), campus Frederico Westphalen, menciona que devido à falta de mata ciliar e à erosão do solo, uma quantidade enorme de terra pode descer para o rio todos os anos, fazendo com que sedimentos se acumulem no fundo do leito e a água tenha uma aparência terrosa.

Foto: João Carlos Neto

De acordo com dados da polícia ambiental de Frederico Westphalen (RS), que realiza patrulha na Bacia Hidrográfica do Rio da Várzea, foram registradas 150 ocorrências de desmatamento em Áreas de Proteção Permanente (APP), nos últimos três anos, o que influencia na degradação de nascentes e rios. O comandante da Polícia Ambiental, sargento Fabiano Lima da Silva, 37 anos, revela que em períodos que antecedem o plantio na região já ocorreram até 16 infrações,  enquanto no restante do ano apenas dois casos foram registrados.

Em nota, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luis Roessler (FEPAM/RS) respondeu à reportagem que, no período de 2021 e 2022, não existem registros de denúncias sobre desmatamento na mata ciliar no município de Frederico Westphalen. Além disso, a FEPAM relata que os dados não são coletados apenas pelo estado, já que os municípios também são responsáveis pelo licenciamento e pela fiscalização ambiental. Assim, não é possível realizar um cálculo ou estimativa concreta do problema. 

É evidente que informações sobre denúncias, nestes casos, não entram em todos os sistemas estaduais e nacionais. Essa burocratização institucional dificulta a integração das informações e, consequentemente, o mapeamento de possíveis soluções. Mesmo com a turbidez nos dados oficiais, as modificações nos rios dessa bacia são visíveis, e puderam ser acompanhadas pela população.

As margens foram sendo ocupadas por plantações e casas para lazer, enquanto as águas ficaram visual e quimicamente poluídas. O servidor da UFSM FW, Milton Guerra, 56 anos, explora os rios durante passeios e pescarias recreativas há mais de quarenta anos. Segundo ele, a quantidade de áreas de lazer tem aumentado, bem como a quantidade de lixo jogado nesses rios, ocupando até locais onde antes existia mata ciliar.

São as lavouras e os espaços de lazer que atualmente tomam o espaço que deveria ser de preservação permanente. Um estudo na área de Engenharia Florestal, conduzido pelos pesquisadores da UFSM, Bruno Conte, Anderson Pertuzzatti, Silvia Conten e Felipe Turchetto, publicado pela revista Enciclopédia Biosfera, em 2013, concluiu que houve um aumento das áreas destinadas ao cultivo de monocultura entre 1985 e 2010, resultando na redução de florestas nativas na bacia hidrográfica do rio da Várzea. 

O professor Edner Baumhardt aponta que há cerca de cem anos toda essa bacia hidrográfica tinha sua margem composta por florestas. Em entrevista realizada na nascente do rio Pardinho, que é fonte de água para o município de Frederico Westphalen, o professor mostra o cemitério Osvaldo Cruz, localizado em um ponto mais alto, tecnicamente um problema que deveria ser considerado. Isso porque o necrochorume, resultado da decomposição dos cadáveres nos cemitérios, infiltrado no solo, acaba por ser uma fonte de contaminação considerável. Edner Baumhardt ainda cita como exemplo a contaminação proveniente dos resíduos de remédios tomados ao longo da vida, que se acumulam nos corpos, e durante a decomposição, são carregados pelas águas da chuva e chegam nas áreas de nascentes.

Foto: João Carlos Neto

Sem proteção

Os sedimentos transformam a qualidade da água e mudam toda a estrutura destes rios, como sua profundidade, força da correnteza, a existência de barrancos e o solo no entorno. Os riscos, ampliados pelo desmatamento, são vários. Além de reduzir drasticamente a quantidade de água, permite a entrada dos mais diversos poluentes e destrói o habitat natural para os animais que vivem nas matas ciliares.

A bióloga Cléria Meller, 76 anos, ex-presidente do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Turvo, ressalta que a destruição dessas florestas implica em um gradativo desaparecimento de vegetais e animais, pois quando a cadeia alimentar fica comprometida o ecossistema como um todo é prejudicado. Educadora ambiental há mais de quarenta anos, ela esclarece que para recuperar as matas ciliares e os corredores ecológicos é necessária a reposição das espécies nativas. Outra alternativa seria isolar o local de atividades humanas e deixar as espécies se desenvolverem naturalmente, pela ação de pássaros disseminadores e outros animais, por exemplo, que carregam sementes.

Ainda segundo Cléria Meller, que atuou no projeto Garabi-Itá nos anos 2000, cujo objetivo era buscar a educação ambiental a partir da compensação florestal de mata ciliar em oito municípios do noroeste gaúcho, a conscientização sobre os danos causados ao meio ambiente é difícil de ser trabalhada. Isso acontece porque os aspectos econômicos se sobrepõem ao ambiental. “Deixamos de perceber as alterações que ocorrem e nem sequer reconhecemos o que é um ambiente natural”, afirma o ex-diretor de Licenciamento Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Luiz Felippe Kunz Júnior, 60 anos. Médico veterinário de formação, sempre teve como interesse profissional as áreas de meio ambiente e saúde pública. Ele argumenta que um dos motivos da destruição é nosso afastamento da natureza, e também a dificuldade da maior parte da população em entender processos como a mudança climática, a extinção das espécies e a diminuição de qualidade e quantidade de água disponível. “São processos longos que escapam a um observador pouco atento”, reforça Luiz Felippe.

O ex-diretor de Licenciamento Ambiental do Ibama enfrentou obstáculos no período em que trabalhou no órgão de proteção ao meio ambiente, de 2003 até 2007. “As dificuldades sempre foram o reduzido quadro de pessoal para atender a demanda de licenças e fiscalizações”, alega. Apesar dos esforços, havia outros empecilhos no caminho da instituição, como a insuficiência de recursos financeiros para a área ambiental e a movimentação de empresas para barrar o cumprimento das leis.

A equipe limitada para ajudar na fiscalização de crimes ambientais também é realidade para a Polícia Ambiental de Frederico Westphalen. O Sargento Fabiano declara que a corporação é responsável por 24 municípios da região, mas que nem sempre é possível estar em todos os locais onde as infrações ocorrem. “Tem que ter a ajuda de todo mundo” diz o Sargento, sugerindo que a sensibilização de outros setores da sociedade poderia colaborar com a proteção dos ecossistemas.

Na região do Alto Uruguai, são raros os projetos que buscam a preservação da natureza, o que acende um alerta, já que na direção da destruição não faltam iniciativas. O presidente da cooperativa de crédito Cresol, Cledir Magri, 40 anos, depois de retornar ao local onde cresceu, próximo à nascente do rio Pardinho, percebeu a necessidade de propor ações capazes de reverter a deterioração desses ambientes. Cledir justifica que essa é uma das motivações do projeto Preservar a Água, Preservar a Vida, desenvolvido pela Cresol, que pretende reflorestar áreas próximas aos cursos d’água, além de realizar a coleta do lixo nesses locais e promover a educação ambiental em escolas. 

Foto: João Carlos Neto

Na região, outro agente responsável pela discussão de mecanismos de gestão e de proteção dos rios e arroios é o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio da Várzea. O grupo incentiva pesquisas acadêmicas que contribuam com a recuperação e a proteção dos recursos hídricos, além de realizar capacitações com a sociedade civil e informar, por meio das redes sociais do Comitê, sobre a importância e a necessidade de preservação das matas ciliares no noroeste do Estado.

Desde ações da iniciativa privada até a compreensão dos nossos deveres e direitos enquanto cidadãos, existem alternativas capazes de promover mudanças positivas nas questões ambientais. “Devemos avaliar bem as candidaturas e escolher representantes que possam transformar positivamente este quadro”, propõe o ex-diretor de Licenciamento Ambiental do Ibama, Luiz Felippe. Ele acrescenta a importância de estar por dentro de discussões públicas e ações práticas que consigam despertar em toda a sociedade a importância deste tema.

Histórias da Várzea

Rios que marcam grandes territórios atravessam vidas também. Adonis Busato, produtor rural, perto de completar 80 anos, e Lucilia Maria Busato, 78 anos, perceberam ao longo do tempo mudanças no papel que o rio tinha na vida da comunidade Castelinho, que fica entre Frederico Westphalen e Ametista do Sul.

Foto: Lidia Veronica Tedesco

A família Busato, que trabalha com agricultura, conta sobre as “histórias da Várzea”. O professor de história aposentado, Nadir José Busato, 74 anos, irmão de Adonis, cita boas lembranças da época de infância com seu pai no rio: “Meu pai uma vez foi a Frederico e carregou uma carroça de telha para trocar as tabuinhas da casa. Aí quando foi subir em cima da balsa que tem aí, quando subiu em cima com a carroça, virou com boi e tudo dentro da água”.

A luta para vencer as águas nas atividades do dia a dia era frequente. Naquela época, o moinho estava localizado na área urbana, e era preciso atravessar o rio com os animais da propriedade para chegar até lá. “Uma vez era assim, era tudo em Frederico [na área urbana]. Então meu pai tinha um animal, botava os apelo dentro do barco. Só puxava o animal e atravessava o rio, pro lado de cá, aí encilhava ele e ia até Frederico levar a moagem”, relembra Adonis.

Adonis e Lucilia contam que não eram os únicos a usar o rio da Várzea com frequência. Em sua propriedade, o fundo do rio possuía uma característica favorável a atividades que eram restritas em outros lugares, como lavar roupas. “Era só aqui que tinha o rio com aquela pedra, que daí ficava limpinho na beira do rio, e todos vinham ali”, narra Lucilia. Naquela época, alguns moradores de Castelinho vinham de carroça até o local. 

Para o casal, permanecer por décadas no mesmo lugar permitiu acompanhar a constante transformação da paisagem. Lucilia relata que quando sua casa foi construída, há cerca de 50 anos, havia mais vegetação ciliar nativa e era comum avistar capivaras na margem. Os animais eram alvo de caça por parte de pessoas da região. A presença delas tornou-se rara, mas o comportamento humano que prejudica a fauna e a flora não.

Para além dos rios que a compõem, a bacia da Várzea conecta histórias e possibilita a vida, mas seu futuro mostra-se cada vez mais incerto. Os problemas existentes nesta bacia perpassam as margens e delimitações geográficas, sendo realidade em inúmeros lugares. A continuidade da vida da bacia hidrográfica depende diretamente da união entre consciência ambiental e ações efetivas de proteção, só possíveis quando há uma clara percepção de que os seres humanos não são inseparáveis do espaço natural. Não estar à margem disso é saber que a vida de todos depende de um equilíbrio profundo, permitindo que um futuro vivo possa fluir.

Frederico Westphalen, RS

*Esta é uma produção laboratorial e experimental, desenvolvida por estudantes do curso de Jornalismo da UFSM Campus Frederico Westphalen. O texto não deve ser reproduzido sem autorização. Contato: meiomundo@ufsm.br.

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