Felipe Gomes, Karine Flores, Kethelyn Petter
Quem segue a tradição do chimarrão pela manhã, do churrasco no domingo e dos encontros no Centro de Tradições Gaúchas, não imagina que parte da história do Rio Grande do Sul esconde crueldades silenciadas e carentes de registro. A escravidão ainda é uma ferida aberta e dolorida na história do Brasil e do mundo, mas passa longe de ser comentada na cidade de Palmeira das Missões (RS). Em 1856, a região de Palmeira das Missões e Passo Fundo (RS) tinha cerca de nove mil escravos. Um número alto, tendo em vista a população que não chegava a 25 mil habitantes, conta o historiador Áxsel Batistella de Oliveira, 26 anos, doutorando pela Universidade de Passo Fundo e pesquisador da escravidão no estado gaúcho.
Situada no noroeste do Rio Grande do Sul, Palmeira das Missões tem hoje pouco mais de 35 mil habitantes e está localizada a 374 km da capital gaúcha. A formação do município começou na Praça da Vila Velha, em 6 de maio de 1874, onde havia um agrupamento de casas que passou a ser chamado de “Vilinha”. Lá, acontecia a troca de mercadorias por erva-mate, consolidando a tradição pela qual a cidade viria a ser conhecida. Essa é a parte da história perpetuada geração após geração. No entanto, ao debruçar nosso olhar na busca de vestígios do passado, há acontecimentos que são ignorados pela maioria das pessoas.
De 1800 até 1888, a maior parte das atividades agrícolas da região eram feitas por escravos. Segundo Áxsel, o Norte do país criava gado e mandava os animais para serem abatidos no Sul, onde também era produzido o charque, pois essa era a região do Brasil que tinha mão de obra barata. “No Rio Grande tinha muito gado e muito escravo. Por meio de minha pesquisa, consegui dados em que identifiquei que cada escravo poderia pastorear até cem cabeças de gado”, relata.
O pesquisador ainda destaca que por mais que a prática da escravidão acontecesse de forma rotineira, não era admitida abertamente pela população. “Muitos autores falam que aqui não teve [escravidão], ou que foi muito tranquilo, que o escravo era amigo do senhor e tudo mais. Mas olhando as documentações, os processos e as notícias dos jornais, tu encontra que tinha tronco, tinha castigo, tinha chibatada, eles eram presos, eles usavam aquelas máscaras de ferro na boca”, comenta Áxsel.
Em registros encontrados pelo pesquisador, disponíveis no Fundo de Tabelionato do Município, é possível verificar que as pessoas escravizadas eram vendidas aos senhores ou herdados, com contratos de cláusulas que especificavam o período de trabalho do cativo e as condições de liberdade. Os filhos estavam incluídos.
Na cidade de Palmeira das Missões é difícil encontrar registros da memória sobre a exploração de pessoas que ajudaram nos trabalhos mais essenciais para a permanência dos senhores nas fazendas. “Ninguém queria trabalhar, porque era um trabalho insalubre, demandava horas e horas… então, surgiu essa questão: vamos utilizar mão de obra escrava?”, explica.
O trabalho realizado pelas pessoas escravizadas variava de acordo com a profissão do escravo adulto registrado no contrato de venda. Os que tinham menos de 14 anos, em venda conjunta de parentes, eram considerados sem aptidão nem profissão, sendo ela moldada pelo senhor. As profissões variavam desde domador até ao que chamavam de cria de casa. Porém, na região extrativista de erva-mate, o mais comum era o trabalho agropecuário, como conta o historiador Mário Maestri no livro “O escravo no Rio Grande do Sul”, de 2006. Em uma fazenda mista, possivelmente o negro trabalharia na terra. Segundo Áxsel de Oliveira, isso pode trazer a impressão de que a escravidão não foi tão presente como em outros estados.
A dificuldade de acesso aos registros materiais e imateriais é um empecilho para que haja maior conhecimento sobre o tema. Contatar fontes dispostas a falar sobre o assunto foi um desafio durante o processo desta reportagem. A organização das terras mudou em comparação com mapas antigos e grande parte das evidências referentes àquela época foram perdidas. “É difícil tu encontrar alguma reminiscência sobre esse período aqui na região, ela foi muito apagada, ou foi demolida, ou foi tirada de contexto, ou foi reformada e trocaram toda aquela visão”, relata Áxsel.
A inexistência de uma comunidade quilombola verificada em Palmeira das Missões se deve ao fato de não haver o autoreconhecimento do bairro de maior população negra da cidade. O professor e historiador, Jorge Euzébio Assumpção, 59 anos, no documentário “Chegada dos Negros no RS”, de 2013, explica que há uma grande diferenciação entre quilombos e comunidades remanescentes quilombolas, que são formadas após a abolição da escravatura, em 1888. “É impossível quantificarmos quantos quilombos tivemos [no Rio Grande do Sul]”, menciona. Por isso, há muita dificuldade para identificar e para registrar a resistência dessas pessoas como parte da história. Além disso, a legislação e o trâmite burocrático para se ter uma comunidade quilombola reconhecida é grande. Todo o processo pode levar até dez anos. Áxsel afirma que não houve mais nenhuma colônia quilombola titulada a partir de 2018.
A escritora Cristiane de Bortolli, autora do livro “Vestígios do Passado: a escravidão no planalto médio gaúcho”, atuou como professora de história em Palmeira das Missões por mais de duas décadas. Para ela, a população não tem interesse em preservar essa parte da história do município. Há vinte anos, ela e outras professoras se juntaram para tentar organizar um museu com os vestígios da escravidão. No começo, elas conseguiram juntar objetos e documentos da época. Com o tempo, as coisas foram jogadas fora ou modificadas. Depois de um período, os proprietários dos itens pediram os objetos de volta. Já os documentos, que comprovam os acontecimentos da época, foram enviados pela prefeitura municipal para Porto Alegre, conta Cristiane.
Os casarões e as fazendas também sofreram modificações ao longo dos anos. Cristiane de Bortolli relembra que, junto a políticos, lutou para manter a história da cidade viva, mas o interesse financeiro fez com que o centro de Palmeira das Missões perdesse o valor histórico. Sobraram apenas algumas casas antigas, cuja manutenção é realizada pelos próprios proprietários. “Mantém a fachada, derruba o resto, constrói para trás uma casa bem bonita, como quiser manter”, comenta. A historiadora compara com a situação de Pelotas (RS), onde bancos e outros estabelecimentos comerciais mantiveram as fachadas e depois construíram novas edificações nos fundos, diferente de Palmeira.
O Hino Rio-grandense, de 1934, com letra escrita pelo militar e poeta Francisco Pinto da Fontoura para o centenário da Revolução Farroupilha, exalta a liberdade dos gaúchos no dia 20 de setembro, relembrando a data de 1835, na qual os farrapos iniciaram a Revolução Farroupilha. Entretanto, a liberdade celebrada na letra da música não se estendia às pessoas escravizadas que lutavam a favor dos farroupilhas na linha de frente da guerra, em troca da libertação de sua condição de escravo. Após a derrota dos farrapos, o evento conhecido como Traição de Porongos transformou a liberdade prometida aos negros em um verdadeiro massacre. “Os farrapos nunca foram abolicionistas, e caso tivessem derrotado o Império, a escravidão continuaria, pois todos os líderes eram escravistas”, declara Assumpção.
Ainda que a escravidão tenha sido abolida em 1888, atualmente ainda há registros de trabalhos análogos à escravidão no Brasil. O número de denúncias relacionadas ao assunto aumenta a cada dia. Como o caso de Yolanda, registrado em 2020. Uma mulher negra, de oitenta e nove anos, que passou cinco décadas de sua vida sem receber salário e, muito menos, sair do apartamento onde vivia. Em julho de 2022, foram resgatadas 26 pessoas em situação de trabalho escravo no estado do Rio Grande do Sul. Os trabalhadores relataram que sofriam com o frio, pois o alojamento não possuía água quente para banho e nem camas suficientes para todos. O alimento era fornecido por meio de vale alimentação, que era aceito por apenas um mercado da cidade.
O município de Palmeira das Missões não registra em seus monumentos a passagem de pessoas escravizadas. Imagens de bandeirantes, do ex-presidente Getúlio Vargas e as construções religiosas pontuam o centro da cidade, mas nenhum vestígio da escravidão se faz presente. No entanto, apesar de ela ser um capítulo doloroso da História do Brasil, sua existência não pode ser apagada e suas consequências não devem ser ignoradas. O reconhecimento da origem é motor para a luta. Conhecer o passado nos faz compreender o presente, pensar socialmente em um futuro melhor.
Palmeira das Missões, RS
*Esta é uma produção laboratorial e experimental, desenvolvida por estudantes do curso de Jornalismo da UFSM Campus Frederico Westphalen. O texto não deve ser reproduzido sem autorização. Contato: meiomundo@ufsm.br.