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A diversidade de um país nas telas



A produção da identidade cultural pelas lentes de quem desbrava um Brasil profundo

Isabeau Cotrim, Heloisa Gamero, Lucas Postal

O trepidar das rodas sobre a estrada de chão batido invade aquele espaço bucólico como um grito. A luz do sol arde nos olhos dos passageiros do veículo, um holofote no teatro da natureza. Os galhos das árvores ao lado de fora surgem como mãos acariciando o automóvel. Ao mesmo tempo, limitam a estrada de terra sem-fim à frente. Os produtores Ilka Goldschmidt e Cassemiro Vitorino têm uma história para contar. O ritual milenar do Kiki está prestes a iniciar na aldeia indígena Condá, no interior de Chapecó (SC). Alicerce da cultura kaingang, para muitos ali presentes, esse é o primeiro Kiki de suas vidas. Depois da voz dos pais, avós e bisavós da tribo perpetuarem o ritual apenas em lembrança, a ansiedade domina a aldeia e carrega o ar.

As câmeras de Ilka e Cassemiro são um elemento à parte, irregular e disruptivo naquele mundo forjado em terra, ocas e costumes tradicionais. Os produtores catarinenses traduzem em suas lentes o que apenas o coração de cada um dos presentes no ritual pode verbalizar. Procuram não interferir nem emular cenas daquele pedaço de Brasil profundo.

Perder-se para se encontrar, é o que dizem. Contar histórias foi o que aproximou Ilka, 52 anos, Cassemiro, 60 anos, mesmo sem nunca terem se perdido. Crias do jornalismo, hoje são responsáveis pela Margot Filmes, uma produtora especializada em produção de conteúdo independente na cidade de Chapecó. O casal se conheceu na rotina jornalística, Cassemiro já trabalhava no setor operacional na TV Barriga Verde quando Ilka entrou na empresa como editora e produtora do canal. Depois da TV, Ilka lecionou por 24 anos no curso de jornalismo que ajudou a fundar, na Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). Aproximaram-se ainda mais quando Cassemiro decidiu fazer a graduação e teve Ilka como professora. O interesse em comum pela profissão foi ingrediente para unirem seus trabalhos e suas vontades em produzir sobre aquilo que não era mostrado pelas mídias tradicionais.

Foto: Heloisa Gamero

Uniram-se com o propósito de amplificar as vozes daqueles que não são constantemente representados por meio do audiovisual, com produções como documentários e filmes. 

Segundo Ilka, trabalhar com mais autonomia e com um caráter autoral, algo que não encontravam em outros meios de comunicação, é o que torna a arte de documentar tão maravilhosa. “Contar histórias é necessário”, ressalta a produtora. E acrescenta: “É fundamental para a gente se conhecer, para entender a nossa história, para a gente desconstruir muitas coisas que foram até hoje, não é?”. As histórias têm o poder de narrar nosso passado e prever o futuro, mais do que isso, podem salvar nosso presente. É preciso registrar o agora. Especialmente aquelas histórias que não se pode deixar para depois. O desejo de registrar o que acontece nos bastidores foi o que acendeu o interesse de contar aquilo que muitas vezes é obstruído por grandes figuras. Daí a paixão do casal pela temática socioambiental. Os Brasis dentro do Brasil carregam uma infinidade de vidas e de histórias, muitas delas com prazo de vida curto. O objetivo dos produtores sempre foi perpetuar essas histórias para que sejam lembradas entre as pessoas que assistem suas produções e para que conheçam suas origens. Se não contarmos as histórias do que acontece com o nosso planeta hoje, teremos algum amanhã? 

O contato inicial de uma pessoa com histórias acontece geralmente na primeira infância, quando as crianças são levadas a experimentar e imaginar outras realidades, seja nas lendas, contos ou outras formas de arte. A partir dessas experiências, somos instigados, cada vez mais, a conhecer novos mundos, escrever nossas próprias histórias, e viver sob novas perspectivas. O objetivo do audiovisual é contar, com o uso das câmeras, as vivências que fazem o nosso país ser tão diverso, mas também entender o que acontece em lugares que muitas vezes não conhecemos, como a própria Aldeia Condá. “[…] primeiro, a gente tenta contextualizar nossa realidade. Para que você consiga mostrar que aqui a gente tem temas que podem ser debatidos em todo o Brasil”, explica Ilka.

A dupla de produtores desejava retratar a cultura do Brasil, ampliar a voz das histórias que viam ao redor, e foi nessa busca que encontraram o Kiki. Ilka e Cassemiro nos contaram como utilizar o audiovisual para dar espaço a essas tradições brasileiras, que por muito pouco não foram apagadas e esquecidas por completo, é uma forma de mostrar o berço da cultura, é uma força para resistir. “A gente chamou de resistência, porque eles estavam resistindo. O ritual da resistência Kaingang. […] Eles foram muito resistentes. Então, não é olhar para o indígena e dizer ‘ah, eu vou lá ajudar’. Não. É olhar como eles são fortes, olhar essa cultura, o indígena não acabou, né? Tá acabando. Então […] a gente é responsável por isso. 

Ao fim da produção, o documentário ilustrou toda a história do Kiki, fotografou o cenário da aldeia Condá, guardando a ancestralidade brasileira que merece ser preservada. 

Foto: Heloisa Gamero

Políticas públicas e resistência

Assim como o povo Kaingang, o audiovisual brasileiro também resiste.

Desde a extinção do Ministério da Cultura, quando as funções foram transferidas para o Ministério do Turismo, em janeiro de 2019, as políticas públicas que fomentam as produções nacionais ficaram mais centralizadas e ainda mais escassas. Isso apesar da contribuição da indústria criativa na economia do país, que em 2019, adicionou R$ 27,5 bilhões ao PIB brasileiro, de acordo com levantamento da Agência Nacional do Cinema (Ancine).

A paralisação de investimentos, que ocorreu desde o começo de 2020 até dezembro do ano passado, é uma manobra do governo federal contra o setor cultural para cortar gastos em decorrência da crise econômica no cenário pandêmico. Este artifício preocupa os profissionais distantes dos grandes centros, já que são dependentes dos editais que financiam as produções. “A gente perdeu a Secretaria de Cultura, perdeu tudo. Os editais foram por água abaixo”, relata Ilka. Sem mais políticas públicas, como o Edital das Linguagens, a Lei de Incentivo à Cultura e o Fundo Nacional da Cultura, as produções nacionais se veem ameaçadas. Entretanto, quase como uma teimosia, produtores independentes persistem com o objetivo de continuar reproduzindo a história do povo brasileiro nas telas. “É importante, também, não só contar derrotas, mas mostrar que existe resistência e que a resistência consegue”, Ilka desabafa sobre sua esperança.

A vontade de persistir e continuar tocando suas produções é o que motiva os profissionais a se organizarem e exigirem a ampliação de investimentos na área, reconhecendo o papel do audiovisual como uma forma de retratar as lutas no território brasileiro, contando a história do povo que daqui se origina. “O que a gente faz é contar histórias […] e fazer isso no Brasil, é isso, tem tantas histórias ainda para serem contadas, muitas. Acho que o cinema cumpre esse papel”, comenta.

O audiovisual tem o poder de ser parte do cotidiano e das vivências das pessoas. Seja para fazer rir, chorar ou refletir, as produções que chegam às nossas telas e nos emocionam, mesclam o real e o ficcional em um clique. De acordo com a plataforma de notícias HubSpot, 78% das pessoas veem vídeos semanalmente, e 55% assistem a conteúdos audiovisuais diariamente. Retratar o Brasil, em toda sua miscelânea de rostos e culturas, é retratar a fome e a ostentação no mesmo território. O luxo em encontro com a miséria. O passado frente a um futuro que avança, em meio ao brado retumbante daqueles que o renegam. Se o audiovisual pode retratar todas as vivências, o Brasil tem o contexto social que permite que todas existam.

Assim como Ilka e Cassemiro, o diretor e sócio-fundador da Pindorama Filmes, Estêvão Ciavatta, 54 anos, trabalha com foco em audiovisuais que retratam o contexto brasileiro tanto no espaço urbano como no rural, com reivindicações sociais, culturais e ambientais. O diretor é responsável por produções como “Vozes do clima”, “Amazônia S.A.” e “Fonte da juventude”, trazendo à tona a pluralidade de questões e vivências dentro do Brasil. Ciavatta põe em prática seu trabalho dando visibilidade para aqueles que buscam espaço de representação. “Dentro do Brasil a gente precisa falar muitas línguas, conhecer muitas realidades, aprender a gostar do que é diferente, senão a gente não entende esse país. Enfim, acho que esse é o grande mistério do país e a coisa mais linda, mais interessante que a gente tem pra oferecer pro mundo”, destacando a importância do audiovisual para a identidade cultural brasileira.

Enxergar-se nas telas

Os produtores contam as histórias da população brasileira, mas por que isso representa uma resistência? Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e da Ancine mostram como o público telespectador do audiovisual brasileiro é reduzido. Em 2018, 39,9% das pessoas moravam em municípios sem, ao menos, um cinema. Enquanto filmes estrangeiros levaram mais de 12 milhões de pessoas ao cinema, os filmes nacionais tiveram queda de 300 mil espectadores. 54% dos brasileiros nunca foram ao cinema. Números que refletem a falta de identificação dos brasileiros nas grandes telas, não conhecendo suas próprias histórias. 

Fazer com que aconteça maior participação do telespectador brasileiro, que este se enxergue e se identifique no enredo contado, é o objetivo do casal de documentaristas catarinenses. Ilka e Cassemiro afirmam que “no filme a gente quer ampliar a voz dessas pessoas que estão ali, que elas não vão estar no seminário na universidade, elas não vão estar nos espaços que os especialistas estão”.

Foi o que ocorreu com Seu Aristides, vindo de uma comunidade ribeirinha às margens do Rio Uruguai, que presenciou sua história na tela grande de um cinema – pela primeira vez. O documentário “O Goio-en transbordou” conta a vida dos moradores do Goio-en, distrito de Chapecó, jogando luz sobre conflitos que passariam despercebidos: a narrativa de Seu Aristides, areeiro que participou da construção de Chapecó e nem ao menos sabia, seguiria invisível se não fosse pelo resgate e registro empreendidos por Ilka e Cassemiro. “E aí esse Seu Tide, […] se olha naquela tela gigante do cinema, com aquele som do cinema e ele se vê lá, cara. Isso foi muito emocionante. Foi muito legal pra gente, a gente trabalha muito nisso assim, né? De humanizar, assim, sabe?”, relata contente o casal de realizadores.

Foto: Heloisa Gamero

Levar essas narrativas aos espectadores é um dos principais desafios enfrentados pelos profissionais do audiovisual brasileiro. O grande trabalho dos produtores independentes é financiar e exibir as produções, que muitas vezes não chegam à grande parte da população. Os festivais regionais permitem o alcance de pessoas que, em outras ocasiões, não teriam acesso a essa fonte de cultura.

Ilka e Cassemiro nos contam sobre seu projeto Cinema na Linha, que incentiva a produção e conhecimento do audiovisual brasileiro em diversas comunidades do interior, que possuem pouco ou nenhum acesso a eventos culturais. Os dois utilizam a tela inflável que têm disponível para apresentar as produções ao ar livre nas comunidades rurais: “A gente pensou, vamos juntar duas pontas: uma o cinema que não entra no circuito comercial, que não vai pra TV, que não vai pro cinema […], aí a gente vai para lá para fazer uma noite de cultura”, explica Ilka.

Projetos como os de Ilka e Cassemiro permitem a visibilidade da cultura brasileira e estabelecem uma identidade nacional. “É incrível isso, são histórias que circulam, né? O mundo. Então, acho que tem sim a produção, e a produção brasileira, se for pensar agora no macro, né? O cinema brasileiro é incrível”, afirma Ilka. As histórias que foram contadas são fruto de quem já fomos e de quem ainda seremos. Profissionais do audiovisual como Ilka, Cassemiro e Estêvão retratam a vida do povo brasileiro através das telas, permitindo que o sujeito enxergue sua cor, seus costumes, suas comidas, sua língua e uma parte de sua trajetória como habitante do país em que nasceu.

A tela deixa de ser substantivo para tornar-se verbo. Cenas e dizeres de um Brasil Profundo que, mesmo continental e distante de si mesmo, faz todos os seus filhos encontrarem-se na busca  por uma identificação.

Chapecó, SC

*Esta é uma produção laboratorial e experimental, desenvolvida por estudantes do curso de Jornalismo da UFSM Campus Frederico Westphalen. O texto não deve ser reproduzido sem autorização. Contato: meiomundo@ufsm.br.

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