Brechós comandados por jovens mulheres se popularizam nas redes unindo sustentabilidade e consumo consciente
Samara Wobeto
Santa Maria
Desbloqueio o celular para verificar a notificação do Instagram: uma nova conta de brechó começou a me seguir. Desde 2018, não há mês em que isso não acontece. Nessa profusão de novos brechós, a maioria deles é tocada por jovens mulheres que desejam se desapegar de suas roupas e ter alguma renda. É o caso das estudantes Mariana Bier, Eduarda Nunes e Alessandra Pigatto, de Santa Maria/RS, donas de brechós no Instagram. As três usam a plataforma para a venda de roupas usadas e para a promoção da ideia da sustentabilidade e do consumo consciente. Se antes o brechó carregava estigmas como lugar de “roupa velha”, “sujeira” e “energia pesada”, hoje ele é mostrado como sinônimo de estilo e autenticidade.
‘Brechozeiras’
Minha relação com roupas de segunda mão vem desde a infância. As sacolas com peças das primas chegavam trazendo novas possibilidades de cores e looks. É a mesma sensação que tenho quando vou a um brechó, ou quando passeio pelo feed dos diversos perfis brechozeiros que sigo nas redes sociais. A estudante de Engenharia de Telecomunicações na UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), Mariana Bier, conta que criou o brechó Mari Bier Moda Circular em 2018. O hábito de adquirir roupas era de família, dividido com a mãe e a irmã: “Era o momento que a gente se reunia e ia comprar uma roupa nova”, relata. A atividade, inicialmente de lazer, despertou em Mariana a preocupação com o consumo, e o brechó veio a partir disso. “O meu trabalho com brechó não era só o fato de vender roupas, mas de conseguir melhorar a relação que eu tinha com essas roupas”, detalha. O “Brechó da Mari” passou a ser “Mari Bier Moda Circular” com o aprofundamento em conceitos relacionados ao consumo sustentável. Para Mariana, foi importante afirmar a vontade da marca no nome, para que os clientes reflitam sobre o consumo para além da compra de roupas usadas.
De acordo com o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), o brechó é conceituado pela ideia de vender peças que já foram de alguém, a fim de prolongar ao máximo a vida útil da mesma. A pesquisadora Marya Lima – que estuda a relação deles com o marketing e os consumidores – explica que existem quatro tipos de brechós: os de roupas baratas, os vintages, os de roupa infantil e os brechós de luxo. Os primeiros contemplam os do tipo beneficente, com uma grande variedade de estilos, tamanhos e preços. Os vintage relacionam-se às roupas com memória, que já foram moda em outras décadas, e tem por característica marcante o garimpo e a curadoria. Os do tipo infantil levam em conta que o crescimento das crianças é muito rápido e possibilita um menor custo na aquisição de roupas. E os brechós de luxo comercializam roupas com status, geralmente de marcas caras e exclusivas.
O Mari Bier Moda Circular se encaixa, hoje, no estilo de brechó vintage. A maior parte das peças é resultado de garimpo. No processo, ela leva em conta as preferências das clientes. Mariana conta que a experiência de garimpar em bazares é diferente, uma vez que é preciso paciência para mexer nas pilhas de roupas e achar as peças que as consumidoras procuram. “Quando eu acho [uma peça], parece que encontro perfeitamente para a pessoa, sabe? Parece que a roupa foi feita pra ela”, explica.
Já o SM Garimpo Brechó, da estudante Eduarda Nunes Alves, é do tipo de roupas baratas, uma vez que prioriza o preço das peças na comercialização. O início do negócio, em 2018, foi pela necessidade de arrecadar dinheiro a partir da venda de roupas dela e da mãe. Com o tempo, passou a divulgar peças de amigas e, com a pandemia, a iniciativa cresceu bastante. No começo, Eduarda não via o brechó na relação com a sustentabilidade. Esse pensamento foi modificado com o tempo: “Eu não tinha noção, vivia muito na minha bolha. Com o brechó, e conhecendo outros brechós, comecei a pesquisar sobre isso”. Seu entendimento sobre a sustentabilidade mudou bastante.
O brechó também foi crucial em um momento marcante da vida de Eduarda. Em outubro de 2020, seu gatinho de estimação, o Frajola, adoeceu. Foi por meio do brechó que ela organizou uma campanha para arrecadar os valores para o tratamento, a internação e as medicações, seja por meio de doações ou pela venda das peças que oferecia. “Várias meninas que divulgavam comigo falaram assim: o que tu venderes das minhas peças, pode pegar o valor inteiro”, relata. Com a solidariedade das parcerias, ela conseguiu arrecadar o valor necessário para o tratamento do Frajola em cerca de duas semanas. Recentemente, Eduarda passou em um concurso para uma formação em controle de voo da aeronáutica, em São Paulo, e, por isso, teve que pausar temporariamente as atividades do brechó.
A estudante de Medicina Veterinária na UFSM, Alessandra Pigatto, explica que a relação dela com o desapego começou pela venda de roupas no aplicativo Enjoei – uma espécie de brechó online. Depois, no início de 2020, ela criou o próprio negócio, o ReUse. No início, era um brechó para toda a família, e vendia roupas de Alessandra, da mãe e do irmão. Então, veio a percepção de que o nicho era essencialmente feminino. Alessandra adaptou o negócio para esse público e hoje o brechó funciona para desapegos seus, da mãe e das amigas da estudante. Na relação com a sustentabilidade, ele explica que todas as peças vendidas já foram usadas: “Eu acredito naquilo de que se cada um fizer um pouco, acaba se tornando muito”.
Os tipos de brechós existentes podem ser físicos, híbridos ou on-line. O trabalho com brechós do último tipo leva em conta diversos processos: o garimpo das peças, a avaliação da qualidade, a lavagem, eventuais consertos, para então passá-las e fotografá-las para divulgação. Depois, o contato com as clientes, a venda e as entregas. Cada brechó tem suas particularidades: Mariana e Alessandra, por exemplo, fazem editoriais de moda com os looks a serem oferecidos. Já Eduarda fotografava as peças no próprio corpo. Para Mariana, circular as roupas é o ideal: “É pra dar uma continuidade nas peças”, evidencia. Para ela, o Instagram tem muito potencial para esse tipo de venda, inclusive de clientes de outras cidades. Eduarda concorda: “Eu acredito que as roupas têm histórias. E se elas estão em boas condições, podem ser criadas mais histórias [a partir delas] ”.
A psicóloga Jaqueline da Cas, 26 anos, consome em brechós há dez anos. A influência vem de casa, pelo hábito da mãe. “[Eu] nem lembro, pra falar a verdade, a última vez que eu comprei roupa em loja”, diz. Para ela, é fundamental pensar de onde vem o desejo de consumo, na maioria das vezes promovido pelo capitalismo. “Se a gente está sempre se atualizando na moda, a gente consome roupas que não têm a nossa identidade, não tem a nossa cara”, argumenta.
A pesquisadora Camila Medronha, formada em Administração pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), estudou o perfil das consumidoras de brechós no trabalho de conclusão do curso, em 2018. Segundo ela, esse perfil reflete um público feminino, composto, em geral, de 20 a 30 anos, de classe média alta, com graduação em andamento ou finalizada, e que compram atraídas, principalmente, pelo preço. Depois, aparecem motivações como a variedade, a moda vintage, a qualidade, as peças únicas, a experiência de compra, o acesso a marcas famosas, o estilo e, por fim, o consumo consciente. “A essas consumidoras agrada muito a ideia da sustentabilidade, mas ainda não é a maior motivação”, comenta Camila.
Consumo(s)
O modo como a sociedade consome se enquadra no Fast Fashion, em que a velocidade dos ciclos da moda é muito alta e a qualidade das peças é muito baixa. Mariana, que estudou esses conceitos para a aprimoração do brechó e produção de conteúdos para as redes, explica que o fast fashion está atrelado ao consumismo desenfreado, e se reflete principalmente em grandes lojas de departamento. A produção das peças é cíclica e feita a partir de coleções. “Elas não só produzem como querem que tu descarte a tua roupa daqui a dois meses para poder comprar uma nova”, destaca. Nas palavras de Mariana, é uma roupa feita para não durar.
Aliado à questões de consumo, a indústria da moda é a 5ª maior poluente do mundo, de acordo com o Relatório da Indústria da Moda, produzido pelo Global Fashion Agenda em 2017. Dados do Fashion on Climate mostram que, em 2018, esta produziu 2,1 bilhões de toneladas de CO2, e que englobam os processos de produção do material, preparação de fios e tecidos, produção das peças, transporte, varejo, uso e fim do produto. Essa estimativa representa 4% das emissões de carbono no mundo, e é maior que os números da França, Alemanha e Reino Unido juntos.
Em contrapartida, o Slow Fashion surge a partir do Slow Living, que é um estilo de vida e de consumo mais lento e que, por consequência, gasta menos recursos naturais. O brechó entra nessa categoria, uma vez que o objetivo é dar continuidade para peças que já foram produzidas e já gastaram sua cota de recursos.
Quando compreendi que o consumo é um ato político, a compra de roupas usadas tornou-se ainda mais importante. Em uma sociedade capitalista, repensar os hábitos de consumo é assumir compromisso com o meio ambiente e o planeta. A partir disso, surge a vontade de estudar mais sobre o assunto. Formada em Administração pela UFC (Universidade Federal do Ceará), a pesquisadora Marya Lima explica: “O consumo consciente é, basicamente, repensar as suas atitudes, né? Repensar de forma que elas prejudiquem o mínimo possível o meio ambiente”.
As modas
Nunca fui muito de acompanhar as tendências da moda, até por isso o brechó é uma alternativa diferente para me vestir gastando menos. Mesmo para pessoas que tinham hábitos de consumo regulares, como Mariana, a opção do brechó como negócio e opção para se vestir é interessante. A pesquisadora Caroline Brum, que leciona no curso de Técnico em Moda na UFN (Universidade Franciscana), diz que a popularização do significado positivo do brechó se deu nos últimos cinco anos. É esse também o período em que o Instagram se torna uma plataforma de suporte para os mesmos, na percepção das pesquisadoras.
Para Caroline, os brechós contribuem para que determinados ciclos e tendências da moda voltem a partir de releituras – principalmente das décadas de oitenta e noventa. Mariana destaca que peças de garimpo vintage são as mais vendidas, principalmente jeans. Eduarda conta que calças jeans e croppeds eram destaque. Alessandra diz que as peças com mais fluxo de venda são as que estão na moda no momento.
Mariana e Eduarda sublinham que as vendas aumentaram com a pandemia. Esse indicativo vai de encontro a dados de uma pesquisa realizada pela CNDL (Confederação Nacional de Dirigentes Logistas) em parceria com o SPC (Serviço de Proteção ao Consumidor): no primeiro trimestre de 2021 aumentaram as compras online realizadas por smartphone, de itens de vestuário e moda e de produtos usados. Segundo Caroline, o “boom” do consumo em brechós na pandemia tem a ver com a necessidade da busca de segurança em um período tão incerto, e isso se dá por meio do resgate do que já é conhecido. “O que a gente já conhece é o que a gente já viveu, ou alguma coisa que alguém da nossa família viveu”, explica. Essa macrotendência do resgate e da reverência ao passado está nas calças mom jeans, nas jaquetas jeans com modelagem grande, nos casacos com ombreiras, no grunge que ocupa as araras das lojas de departamento. “A moda é completamente social”, reflete Caroline. “Alguma coisa vai surgir dessa ebulição que a gente tá tendo no Brasil hoje”, finaliza.
Repórter: Samara Wobeto
Imagens: XXXXX (se for o caso)
Edição digital e publicação: Emily Calderaro (monitora)
Professor responsável: Reges Schwaab
* Trabalho experimental desenvolvido na disciplina de Reportagem em Jornalismo Impresso em 2021/1, período em que trabalhamos de modo remoto em razão da pandemia do novo coronavírus.
Contato: meiomundo@ufsm.br.