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Tirar as vendas da deusa Themis: a perspectiva racial no Direito e na Justiça



Com o objetivo de transformar o mundo para melhor, os 193 países que compõem a Organização das Nações Unidas (ONU) criaram a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.  Essa Agenda, resultado de um longo período de discussão não só entre esses países mas também com a sociedade civil e iniciativa privada, apresenta-se como um compromisso com a sustentabilidade ambiental, aliada ao desenvolvimento econômico, erradicação da miséria, da pobreza e da fome, inclusão, dentre outros. Nesse contexto, merece destaque o elo entre a Agenda 2030 e o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 18, o qual objetiva promover a igualdade racial a partir do enfrentamento a todos os tipos de racismo. Por conseguinte, pensar sobre desenvolvimento sustentável importa erradicar desigualdades sociais, as quais também são fruto de desigualdades raciais. E refletir sobre estratégias de enfrentamento ao racismo importa analisá-lo inclusive sob a perspectiva do Poder Judiciário.

Para a promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, Lívia Maria Santana e Sant´Anna Vaz, que também foi reconhecida em 2020 como uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo, a questão racial no Brasil é central, “embora o nosso sistema de justiça ainda seja tão refratário a esse reconhecimento”. Segundo Santana e Sant’Anna Vaz, “o sistema de justiça tem se colocado como um espaço de reprodução do racismo institucional”, sendo muito importante, nas suas palavras, “girar essa chave”, o que somente será possível se houver o reconhecimento de que a questão racial é um fator determinante para as desigualdades no nosso país.

Para Enrico Rodrigues de Freitas, Procurador Regional dos Direitos do Cidadão do RS/Ministério Público Federal, um longo período histórico foi enfrentado até que se chegasse ao objetivo da República Federativa do Brasil de eliminar todas as formas de preconceito, previsto no art. 3º, IV, da Constituição Federal de 1988. Segundo o Procurador, houve no Brasil um projeto de racismo bem estruturado pelo Estado, que vigeu até 1988, já que diversas legislações apresentavam artigos racistas em seu texto, excluindo negros e indígenas. Dr. Enrico cita, por exemplo, a Lei do Ventre Livre, a Lei do Sexagenário, a Constituição Federal de 1934, dentre outras legislações. Inclusive a capoeiragem, um aspecto da cultura negra no Brasil, foi tida como crime em determinado momento, destaca Freitas.

Segundo o procurador, o Brasil enfrentou 100 anos de atraso até chegar a Constituição Federal de 1988, tendo em vista que a Lei Áurea – Lei nº 3353, de 13 de maio de 1888, embora tenha declarado extinta a escravidão no Brasil e revogado as disposições em contrário, foi insuficiente. “Nos passavam a ideia de que era uma lei fantástica, porque ela acabava com qualquer tipo de discriminação, só que em realidade ela é uma lei totalmente insuficiente. Nessa Lei Áurea deveriam ter uns 40, 50 dispositivos tratando como incluir as pessoas negras na sociedade brasileira e como elas teriam acesso à terra, à educação, a uma política de recuperação, o que não foi feito, vindo com 100 anos de atraso, 100 anos depois, com a Constituição Federal de 1988”, afirma Enrico.

No entanto, embora a Constituição Federal de 1988 traga a afirmação formal de igualdade em seu art. 5º, segundo o qual todos são iguais perante a lei, ela não constrói ou não propõe uma alteração material ou substancial da realidade, mantendo os privilégios daqueles que já os possuíam. Atuar contra o racismo no Brasil implica mudar privilégios historicamente construídos, ou seja, “quando se fala em diferença de remuneração entre homens e mulheres negras e homens e mulheres brancas, estamos falando de privilégios de uma categoria muito bem definida na sociedade brasileira”, destaca Freitas.

Nesse contexto, há uma relação entre gênero e raça, uma vez que as mulheres negras são as maiores vítimas de exclusão social. A partir das ideias da escritora portuguesa Grada Kilomba, para Santana e Sant´Anna uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra, ou seja, é vulnerabilizada tanto pelo gênero quanto pela raça. Já uma mulher branca diz que ela é uma mulher, ou seja, não tem a necessidade de se racializar na discussão, sendo apenas o gênero o seu fator de vulneralização. Por sua vez, um homem branco diz que é uma pessoa, ou seja, não se racializa, tampouco é vulnerabilizado pelo gênero, sendo ele o padrão do sujeito de direitos, determinando como o Direito é aplicado.

De acordo com pesquisa realizada pela servidora da Justiça Federal do RS e membro do Grupo de Trabalho em Direitos Humanos da mesma instituição, Magali Zilca de Oliveira Dantas, mesmo após o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ter publicado a Resolução nº 203/2015, que regulamenta a Lei nº 12.990/2014[1], fixando a reserva aos negros de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na magistratura, pelo prazo de dez anos, não houve aprovação de nenhum candidato em concursos realizados para os cargos da magistratura federal pelos 5 Tribunais Federais – TRF1, TRF2, TRF3, TRF4 e TRF5 – por meio da reserva de vagas para candidatos negros no período compreendido entre 2016 e 2019. “Então, na magistratura federal, se lida com um processo seletivo de alta dificuldade, qualquer que seja a origem racial do candidato. No entanto, o não acesso de pessoas negras pela reserva de vagas reflete a dinâmica de racialização – branca – e de segregação – negra – do acesso aos cargos de juiz federal”, pondera Dantas.

A pesquisa realizada por Magali ainda destacou que no Poder Judiciário Federal muitos privilégios também têm indicações familiares, pois 60% aproximadamente dos magistrados do Poder Judiciário têm parentesco com pessoas no sistema de justiça. “Praticamente um terço dos magistrados brasileiros são, também, filhos de magistrados, sendo que, se considerarmos a Justiça Federal isoladamente, pelo menos 15% dos magistrados têm algum parente na carreira da magistratura. No entanto, ao se levar em conta as carreiras jurídicas globalmente, a presença de parentesco ainda é mais expressiva, superando os 50%”, conclui Dantas a partir de pesquisa realizada pelo próprio Conselho Nacional de Justiça em 2018.

Na obra Ensaio sobre o conceito de cultura, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman aborda a cultura como um diferencial entre o mundo humano e o mundo animal, apresentando “algumas balizas importantes para separar em qual momento podemos ser reconhecidos como civilização deixando aspectos animalescos da nossa herança animal”. Dentre os conceitos de cultura apresentados pelo autor, merece destaque o conceito hierárquico, pelo qual toda a tradição de cultura é herdada, adquirida, ou seja, “quem nasce no meio de determinada cultura acaba por tradição herdando aquela cultura”, afirma o autor. 

No entanto, se a noção de cultura é herdada, é patrimônio ou propriedade, ela pode ser modificada. “Quando eu olho para Constituição, art. 3º, IV, quando fala que constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, eu entendo que a Constituição Federal impõe a todos. Estamos chamados a cumprir esse objetivo fundamental”, afirma Fábio Vitório Mattiello, Juiz Diretor da Justiça Federal do RS.

Segundo Enrico, “é preciso uma mudança de paradigmas no sistema de justiça, porque há decisões judiciais com componentes racistas ou que não reconhecem atos de racismo”. Além disso, são necessárias estratégias internas e externas, por meio da qualificação interna de servidores, com formação específica. Conforme o Procurador, a mudança de composição no sistema de justiça não é suficiente. Para ele, “é preciso alterar a concepção jurídica do sistema de justiça para dar uma intepretação às nossas normas de forma antidiscrinatória e antirracista”, exemplificando com a atuação do MPF no Caso Carrefour, em que um homem negro foi morto pelos seguranças do supermercado na região da grande Porto Alegre.

Para a promotora Lívia, a interseccionalidade e a pluriversalidade a partir da cosmovisão africana nas questões raciais, são fundamentais para a superação do racismo que está impregnado em todo o Poder Judiciário. Segundo ela, é possível mudar o passado, recontando a história sob outra perspectiva, trazendo outras verdades à tona. Como o racismo é estrutural, são necessárias ações estruturais para mudar essa realidade. E o sistema de justiça tem responsabilidade nessas ações, devendo enxergar pessoas e não apenas objetos. Assim, a partir de uma cosmovisão africana de mundo, é preciso pensar numa pluriversalidade, ou seja, numa “visão policêntrica de humanidade”.

Ao refletir sobre a representação da Justiça, a promotora Lívia afirmou que, para a maioria das pessoas descreveria a imagem da deusa Themis, com olhos vendados, a partir da mitologia grega. “Chega de Justiça de olhos vendados. A justiça precisa enxergar essas intersecções. Nem o individualismo que se centra no indivíduo isolado e nem o utilitarismo que o enxerga como instrumento. Somos parte de um todo e o todo faz parte de nós”, enfatiza a Promotora Lívia.

Texto:  Patrick Costa Meneghetti

Supervisão: Professora Cláudia Herte de Moraes, pela disciplina Comunicação, Cidadania e Ambiente

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