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Mesmos tijolos, diferentes destinos



Reportagem: Chaiane Appelt, Isadora Menegazzo e Leandra Cruber – Fotografia: Beatriz Couto;

Essa história, diz Algemiro Alves Pereira, “só Deus sabe contar direito”

olaria 2Um pedaço de terra situado atrás do Centro de Eventos, próximo às piscinas térmicas do Centro de Educação Física e Desporto (CEFD), foi objeto de litígio na Justiça durante 12 anos. De um lado, a Universidade Federal de Santa Maria – uma instituição de ensino superior conceituada, detentora de 1.837,72 hectares, frequentada por 26 mil alunos; do outro, Algemiro e Anahyr Alves Pereira – um casal de 85 e 87 anos, respectivamente. O motivo? Determinar quem, de fato, tem a propriedade e a posse do local.

O processo judicial começou em 2005. A história, no entanto, é muito mais antiga. Na década de 1950, José Mariano da Rocha Filho empreendeu esforços para que fosse construída a primeira universidade pública fora de uma capital. Para que funcione nos moldes que conhecemos, além de professores e alunos, é preciso que haja uma estrutura física. Naquela época, a Associação Santa-mariense Pró-Ensino Superior (Aspes), que reunia as principais lideranças políticas e sociais de Santa Maria, investiu o montante necessário para que fosse feita uma olaria, onde seriam produzidos os tijolos destinados às edificações. A olaria localizava-se na entrada do campus, onde hoje se encontra o Centro Comercial. Nos anos de 1960, o crescimento da UFSM levou os administradores a acreditarem que era hora de removê-la de perto do arco.

O fabrico de tijolos exige técnica. O barro utilizado deve ter liga e maleabilidade; as máquinas devem estar reguladas para que pequenas pedras sejam eliminadas; os tijolos precisam secar naturalmente durante alguns dias e, finalmente, a parte mais delicada: é preciso que eles sejam “queimados” durante 50 horas ininterruptas à temperatura adequada. Em 1960, Algemiro Alves Pereira era o homem ideal para essa função.

Algemiro começou a trabalhar aos 8 anos de idade. Passou por muitos empregos até se estabelecer como caldeiro numa fábrica de tijolos em Canabarro, então distrito de Santa Maria. Quando foi convidado para trabalhar na olaria da UFSM, já tinha a experiência necessária para o ofício.

Ao chegar, Algemiro não se estabeleceu imediatamente na área. Ele precisou de dois anos para edificar a casa onde morou com sua jovem esposa, Anahyr. Os dois tiveram 14 filhos que acabaram envolvendo-se com a fabricação de tijolos, inclusive as crianças. Marta Pereira, uma das filhas mais velhas, lembra da época em que ela e os irmãos empilhavam tijolos frescos para secarem nas prateleiras. Quando cresceram, alguns dos filhos do casal continuaram trabalhando na olaria, outros em empresas terceirizadas que prestam serviços na Universidade. A maioria deles, desse modo, não viu motivo para sair dali. No final de 2016, havia 30 casas circundando a moradia original de Algemiro.

O usucapião

Em 11 de janeiro de 2005, Algemiro e sua companheira entraram com um processo na Justiça Estadual, requerendo o usucapião de uma área de quatro hectares, que englobava o local onde estavam as moradias, mas não incluía a olaria em si. Já havia transcorrido 36 anos de residência no local. Muito mais do que os 10 anos que as ações de usucapião exigem. Não contavam, todavia, com um detalhe simples da legislação brasileira: é impossível usucapir qualquer propriedade federal. O processo de requerimento de posse de uma propriedade ou bem só é válido se este for originalmente de uma pessoa ou entidade privada.

Usucapião é o direito que um cidadão conquista em relação à posse de um bem móvel ou imóvel em consequência do seu uso por um lapso temporal, contínua e incontestadamente, como se fosse o real proprietário desse bem. Para que o direito seja reconhecido, é preciso que sejam atendidos pré-requisitos previstos na lei, especialmente no Código Civil e na Constituição Brasileira.

FONTE: www.direitonet.com.br/resumos

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Mesmo assim, o casal recebeu parecer favorável em primeira instância porque a área total da UFSM é composta por diferentes partes que foram adquiridas, doadas ou desapropriadas. No caso em questão, o lote onde os moradores viviam pertenceu até 1979 à Aspes – uma entidade privada-, quando então foi oficialmente desapropriada pela UFSM. Os depoimentos registrados na sentença do processo comprovam que Algemiro estava lá muito antes, desde, pelo menos, 1964. Conforme sentença da juíza Simone Barbisan Fortes, esse lapso temporal justificaria o usucapião.

A história, no entanto, não tem um final feliz para Algemiro e as outras 30 famílias que ali residiam. Nas instâncias superiores, a Justiça negou a posse da terra aos moradores, ao entender que, embora o registro só tenha se dado em 1979, a UFSM já era proprietária da área muito antes. Assim, de autores, o casal passou a ser réu numa ação de reintegração de posse. No final de 2010, no cinquentenário da UFSM,  a instituição entrou com a ação que resultaria na expulsão e na destruição das moradias daqueles que ajudaram a construí-la.

A reintegração de posse

Foram sete anos de tramitação judicial. No dia 22 de março de 2017, esgotado o prazo legal, os moradores tiveram que deixar suas casas. As 31 famílias expulsas pela reintegração de posse vivem, agora, em lugares distantes e separados, diferente da realidade anterior. Na audiência conciliatória que deu fim ao processo, a Prefeitura, por meio da Secretaria de Habitação e Regulamentação Fundiária, se propôs a fazer a doação de uma área pública para os moradores. O terreno, localizado no bairro Nova Santa Marta, região oeste de Santa Maria, inclui um lote de cerca de 200m² para cada família. A demarcação dos lotes foi a única obrigação assumida pela Universidade. “Ou seja, eles não iam fazer nada. Eles iam chutar eles [os moradores] e ponto”, indigna-se Lauro Bastos, atual advogado das famílias.

Não houve indenização aos moradores. O procurador jurídico da Universidade, Rubem Corrêa da Rosa, explica que a Procuradoria Geral da União precisa necessariamente entrar com processo de reintegração de posse nesse caso, já que cabe ao órgão defender a propriedade pública. Perguntado sobre os motivos pelos quais a UFSM não entrou com esse pedido antes, pois a ocupação da área era de conhecimento público, o procurador argumenta que pode ter havido um erro histórico. O termo e a taxa de permissão que são recolhidos de quem reside na UFSM nunca foram cobrados dos moradores. Tampouco foi exigido que eles deixassem a área em que moravam quando se aposentassem, como costuma acontecer.

O procurador defende que a Universidade fez tudo que estava ao seu alcance: “Não pode fugir da esfera de atuação pela lei, a Universidade deve fornecer ensino, não assistência social”, declara. José Luiz de Moura Filho, professor de direito urbanístico na UFSM, reconhece que a área onde se localizavam as casas “estava destinada a uma função fim que não é típica da universidade, que era habitação”, mas lembra que a moradia é um direito social básico do indivíduo: “quem não tem a sua casa, quem não tem uma habitação, quase não tem os outros direitos”.

Wagner Bitencourt, secretário de Habitação, argumenta que “a participação do município foi de mãe, porque ele acolheu essa comunidade”. O novo terreno foi cedido e a Secretaria, de fato, se comprometeu em notificar as concessionárias de água e energia elétrica para que fizessem a instalação das redes. Contudo, o advogado das famílias, Lauro Bastos, acredita que o acordo deixou brechas ao determinar que “o município cede a área sem necessidade de colocação imediata dos equipamentos urbanos: água, luz, saneamento básico”. Por isso, no momento em que o prazo de saída se esgotou, as obras no terreno doado não haviam sido realizadas.

Além de ser, nas palavras de Lauro Bastos, “um local ermo, sem luz, abandonado”, os núcleos familiares alegam não ter condições financeiras de juntar o montante necessário para a construção de novas residências. Daiana Souza Soares de Souza, 33, não pensa em residir em Nova Santa Marta tão cedo. “Se morar aqui no São José [em Camobi] é complicado, imagina morar lá no Nova Santa Marta, ainda mais sozinhos. Aí eu vou ter que parar de trabalhar, porque como é que eu vou deixar meus filhos sozinhos?”.

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Ela e a família ainda têm dúvidas sobre a propriedade do local: “Foi falado que ia ser doado, ia ser dado. Mas ali nos papéis tá que a gente não pode alugar, não pode hipotecar, não pode vender, não pode fazer nada. Então não é meu”. Legalmente, as áreas doadas pelo poder público para moradia precisam ser usadas com esse fim por pelo menos cinco anos, antes que a propriedade lhes seja assegurada. Até o final de junho de 2017, nenhum morador havia se mudado para a área doada.

O processo segue em aberto, até que seja feita a instalação de água e luz. A primeira impressão é de que essa história não tem fim, mas uma das moradoras é categórica: “Pra nós já terminou. Nós perdemos tudo.”

Nova vida

Luciane Pereira, 35, cresceu na área da Olaria. A casa dela hoje é apenas uma pilha de escombros, reconhecível pelos vestígios de rosa claro do reboco das paredes. A moradia antiga fora construída com o dinheiro da rescisão de contrato do marido, que trabalhou por vinte anos no Restaurante Universitário (RU) do Campus. O dinheiro não fora suficiente, por isso eles fizeram um financiamento. “Ninguém roubou aquelas casas, cada um construiu do seu suor. E a gente perdeu tudo. Eu tenho mais três anos de financiamento daquela casa pra pagar”, lamentou, enquanto embalava o filho mais novo, Davi, de 6 meses, na porta da casa alugada onde vive com o marido, os filhos e a mãe.

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Outra família, que morou na Olaria, é a dos Souza e Oliveira. Eles se estabeleceram ali 38 anos atrás, quando seu Manoel Amauri Souza foi contratado para trabalhar na olaria. Ele revezava o cuidado das caldeiras, em turnos de 12 horas seguidas. Hoje, aos 71 anos, mora sozinho em Arroio do Só, na zona rural de Santa Maria. Manoel Mauri trabalhou como vigilante na Universidade por 23 anos e todo o dinheiro que recebeu ao se aposentar foi investido na casa.  Quando teve certeza de que a reintegração de posse era irreversível, se mudou e queimou todas as notas fiscais do que gastara para construir a residência. Não vê o porquê de guardar lembranças de uma vida que já não existe.

As mulheres

Lavar roupa para fora foi a principal atividade de Anahyr Pereira durante muitos anos. Os clientes principais eram professores e funcionários da Universidade. Como a maioria das mulheres de seu tempo, enquanto o esposo Algemiro trabalhava na olaria,  ela assumiu a responsabilidade de criar os filhos, que hoje se desdobram para cuidar dela. Diagnosticada com Alzheimer, perde a memória aos poucos. Sai de casa apenas quando vai ao médico e, ao retornar, por vezes se recusa a descer do carro e entrar numa casa que não reconhece como sendo sua. Algemiro e Anahyr vivem numa residência alugada em Camobi.

“Os idosos foram arrancados dali”, explica Marilei Ferreira de Souza, 35. Em frente ao HUSM, ela e o pai, Estanatiel de Souza, aguardavam o veículo da prefeitura de Restinga Seca, localizada a 60 quilômetros de Santa Maria. Quando a reintegração de posse veio, Marilei foi obrigada a se mudar para uma casa emprestada por familiares no interior de Restinga. Lá, tem a tutela de seis parentes: além de seu pai, cuida de mais três idosos, uma prima que perdeu a capacidade de caminhar em um acidente, e a filha desta última, de quatro anos de idade. Ela vê o marido apenas aos finais de semana. Nos dias úteis, ele permanece em Santa Maria, onde trabalha, e mora provisoriamente na casa de um de seus cunhados.

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Em 2016, os moradores tiveram a energia elétrica cortada, por determinação judicial. Foram aproximadamente 55 dias em que as geladeiras desligadas impossibilitaram Marilei de manter refrigeradas as insulinas que Estanatiel faz uso. Todas tiveram que ser descartadas. Os moradores admitem que não pagaram luz enquanto moravam ali, o que configura “furto de energia”. Nesse mesmo ano, contudo, eles reuniram mais de R$ 35 mil para a instalação de uma rede elétrica dentro dos critérios técnicos e legais. “Lógico que nós – entre ver a nossa casa derrubada, destruída – a gente ia preferir pagar [a luz]. Mas não vieram cobrar de nós”, justifica.

Agora, além da energia elétrica, ela precisa arcar com os remédios do pai e dos outros tutelados. Os gastos não lhe permitiram alugar uma casa em Santa Maria, próximo ao Hospital. Afastados da cidade e dos centros de saúde, somente no mês de maio, Marilei e o pai vieram ao HUSM sete vezes. “Em Restinga, só tem postinho [de atendimento básico]”, explica.

Maria Madalena Bastos Alves Pereira, 47, é uma das filhas de Anahyr. Por morarem em bairros diferentes, Maria visita a mãe menos do que gostaria. As dificuldades em lidar com a saúde de seu núcleo familiar aumentaram depois da reintegração de posse. Maria mora com as filhas Rute e Rebecca – de 13 e 11 anos – em uma residência alugada na zona leste da cidade. Em função da necessidade de acompanhamento médico, Maria precisa viajar mensalmente a Porto Alegre: “Quando a mãe viajava, os meus primos mais velhos e as minhas tias era como se fosse uma segunda mãe. Sempre perguntavam, sempre iam lá ver o que a gente queria”, relembra Rute. As idas à capital continuam: uma vez Maria vai sozinha e solicita a marcação da consulta, na outra leva Rebecca. Os parentes, contudo, não podem mais ajudá-la.

A Olaria

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Os moradores tiveram que sair, mas a olaria em si continua funcionando. Nas últimas décadas ela deixou de fornecer tijolos apenas para a Universidade. O atual locatário das máquinas, dos galpões e do lote de 17 hectares de onde vem a matéria prima é Carlos Alberto Odorissi, proprietário da Cerâmica Terracota LTDA. Desde 1992, ele aluga a propriedade e mantém as licenças ambientais necessárias para a extração do barro, que chega a render 240 mil tijolos por mês na época mais produtiva do ano.

O ponto nevrálgico da questão é que, embora Carlos Odorissi pague aluguel regularmente há mais de 20 anos, a UFSM nunca recebeu dinheiro. O contrato de Carlos é com a Fundação Educacional e Cultural para o Desenvolvimento e Aperfeiçoamento da Educação e da Cultura (Fundae), herdeira dos títulos da extinta Aspes. Diante dessa situação, a Universidade entrou com outro pedido de reintegração de posse, tendo como alvos a própria Fundae e a Cerâmica Terracota.

O advogado da Fundae, Giorgio Blattes, alega que a Aspes (atual Fundae) doou para a UFSM a área onde hoje está a Olaria. A UFSM preferiu construir em outro terreno pertencente a Aspes/Fundae e acordou em ata do Conselho Universitário (Consu) de 1973, que seria feita uma permuta entre as áreas, de modo que a Fundae acabasse por ficar com a Olaria e a terra onde ela se localiza. A decisão do Consu não se materializou em escritura, e a UFSM, mais de 40 anos depois, alega que os 17 hectares onde estão localizados os galpões e a jazida de extração do barro são seus.  Carlos Odorissi se coloca à parte nessa discussão e promete que vai continuar trabalhando ali enquanto for permitido. “Eu tenho um contrato, eu tô aqui de direito e de fato. Eu tenho contrato até o ano de 2021, com a Fundae”, defende.

O futuro da área onde ficavam as casas ainda é incerto. Nenhum projeto para o local foi divulgado. Em nota publicada em março de 2017, o reitor Paulo Burmann explica que a UFSM “dentro dos limites que a legalidade impõe”, tentou juntamente com a Prefeitura, “equacionar o problema social e humanitário envolvido”. Entretanto, moradores como Algemiro e Marilei são enfáticos ao afirmar: “ a Universidade lavou as mãos”.

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O certo é que, por enquanto, a estrutura da olaria deve continuar lá, cercada pelos destroços de mais de 30 benfeitorias demolidas. Uma ninhada de cães que não puderam ser levados por uma das famílias, serve agora de guarda para as ruínas, lembrando a quem passa por ali que aquele já foi um lugar de muita vida.

Os tijolos em pedaços, espalhados pelo chão, são feitos do mesmo barro que preenche as paredes dos prédios da UFSM. O destino de quem habita os dois locais, no entanto foi bem diferente. Na casa do conhecimento, a educação é um direito, a moradia não.

A Associação Santa-mariense Pró-Ensino Superior (ASPES) teve início no ano de 1948 a partir de uma reunião onde se encontravam José Mariano da Rocha Filho, o prefeito da cidade, presidente da câmara de vereadores, bispos, etc. Além de contar com o apoio de integrantes do movimento de criação da Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas de Santa Maria. O objetivo era a construção de um incentivo ao crescimento do ensino superior em Santa Maria. José Mariano da Rocha Filho foi o primeiro presidente da associação. Após a criação da Universidade de Santa Maria, em 1962, a ASPES tornou-se a FUNDAE (Fundação Educacional e Cultural para o Desenvolvimento e Aperfeiçoamento da Educação e da Cultura).

Fonte: http://fonte.ufsm.br

 

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