Já tem alguns anos que os modelos lutam por esse espaço, começando pelos afrodescendentes, etnias em geral, plus size, e agora os PcD, diz Andréa Damiani.
“Vejo o que passa na cabeça das pessoas, aquilo que elas não querem admitir ou encarar. Os desfiles são sobre o que está enterrado na mente delas.” A citação do estilista britânico Alexander McQueen reflete sobre o enraizamento do preconceito no mundo da moda, enquanto nas passarelas e campanhas publicitárias seguem faltando corpos imperfeitos. Mesmo que esteja diminuindo a passos lentos, ainda há a exclusão de pessoas com deficiência (PCD) no mundo fashion.
O pesquisador em filosofia e moda, Brunno Maia, em aula de oficinas culturais publicadas no canal do Youtube do Estado de São Paulo, discorre sobre o fundamento da moda ser a mudança. Seja na forma em que vestem os corpos, no vai e vem dos desfiles, seja pela mudança das tendências que são cíclicas, seja também porque vivencia-se a temporalidade da mudança. Mas independente da circunstância, historicamente afirma-se que a moda se torna um distintivo social, e dependendo da época e do contexto, manifesta-se em diversas formas e em momentos diferentes como produtora de sentidos, refletindo em transformações.
Segundo estimativas do IBGE, baseadas na população mundial de 2010, mais de um bilhão de pessoas vivem com alguma deficiência, o que representa cerca de 15% da população. Já no Brasil, o censo demográfico de 2010, a cada 100 brasileiros, sete possuíam algum tipo de deficiência, o que representava na época cerca de 46 milhões de brasileiros, ou seja, aproximadamente 24% da população total do país. Mas, na indústria da moda essas pessoas estavam (e ainda estão) frequentemente ausentes, por fazer parte dela somente o que (e quem) fosse considerado “perfeito”.
A moda movimenta uma grande parcela da economia, cerca de 2,3 trilhões de dólares no mundo. No Brasil, em 2016 circularam em torno de 43 bilhões de reais, e esse número não para de crescer, segundo dados da Associação Brasileira da Iindústria Têxtil e de Confecção (Abit). Porém, quando se fala em moda, o único pensamento que vem à mente é de modelos padrão e visuais exagerados. “A moda está dando às pessoas uma visão distorcida de como é o mundo”, diz Christina Mallon, diretora de marca do Open Style Lab. Pouco se fala sobre modelos com deficiências e roupas que se adaptem a uma pessoa com deficiência física.
Heloisa Rocha, jornalista e idealizadora do Moda em Rodas, projeto no Instagram que tem o intuito de compartilhar suas dicas de moda inclusiva com seus semelhantes, opina sobre o real significado da terminologia “Moda Inclusiva”, que vem ganhando força nas grandes marcas. Ela visualiza que a moda inclusiva tem sido mais discutida do que praticada. No Brasil, as grandes marcas apostam no segmento, porém de forma pontual. Para esse mercado crescer, é necessária a insistência para que o público consuma, pois a pessoa com deficiência está habituada a vestir peças que a incomodem, que precisem de ajustes ou que não tenham um bom caimento. Trata-se de uma questão inicialmente cultural e não comercial. E, infelizmente, as microempresas que apostam nesse mercado acabam enfrentando barreiras como a concorrência e a falta de incentivo.
Apesar da diversidade pontual que revela um vagaroso desenvolvimento do segmento, na América do Sul o Brasil se destaca consideravelmente. O Projeto Curso Moda Inclusiva, uma ação da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, do governo estadual de São Paulo, por exemplo, propõe uma reflexão comportamental, estimula alunos, profissionais e o mercado da moda a abordarem a diversidade em suas criações. Além disso, grandes projetos como Fashion Inclusivo e Moda Connected, os quais têm como princípios a parte social da moda, vêm ganhando notoriedade.
Ainda que existam discursos e programas sociais que promovam a diversidade, encontrar agências com um casting formado por modelos portadores de deficiências é um desafio. São poucos os modos agenciados e maquiadores que relatam ter conhecimento, ou já ter trabalhado com profissionais PCD ‘s. Dentre quatro agências de modelos que são referências no país, somente a Gas Models tem apostado com frequência e de forma variada nesse novo mercado. Tudo começou devagar, mas logo tomou uma proporção enorme. A booker Andréa Damiani conta que decidiu apostar na diversidade dentro da Gas Models não apenas por admirar a inclusão, mas também por perceber que o mercado estava abrindo espaço, pois notou que era raro ter perfis diferentes dentro das agências.
Ela também diz que a frequência com que os clientes selecionam modelos com deficiências para trabalhos é variada, mas que em 2021 a demanda foi grande. A agência possui um casting com variados tipos de PcD. Assim, produtores do Brasil todo, incluindo de marcas mundialmente conhecidas, tanto de telefonia, belezas, e alimentícias, os procuram e fecham trabalhos.
A ex-atleta de tênis da Seleção Brasileira Samanta Bullock, cadeirante, modelo e fundadora da SB Shop (sua marca de moda inclusiva) contou que nos castings das campanhas e desfiles em que trabalhou, normalmente era a única pessoa com deficiência, com exceção para desfiles para uma marca com roupas para cadeirantes.
O mesmo afirma o modelo Rafael Muller, que há 16 anos foi vítima de um assalto a mão armada que o deixou sem os movimentos dos membros inferiores. “Nunca encontrei outra pessoa com deficiência no mesmo casting que eu”.
Mas, Andréa conclui que o mercado entendeu bem a ideia porque, há alguns anos, os modelos lutam por esse espaço, começando pelos negros, etnias em geral, pessoas gordas e, agora, as PCD.
A São Paulo Fashion Week (SPFW) tem forte relação com a inclusão em seus desfiles. No ano de 2009 estabeleceu uma cota de no mínimo 10% de modelos indígenas e negros, incentivando a participação de todos os grupos. No ano de 2020, determinou que 50% de todo o elenco de modelos fosse de pessoas indígenas, negras e asiáticas, sem ainda prever um percentual para modelos com deficiências.
Mas afinal, esta inclusão é real ou apenas uma jogada de marketing das marcas? Há posições distintas sobre o tema, porém é consenso entre os entrevistados que a questão vem ganhando maior visibilidade e, com isso, a representatividade no mercado também vem aumentando<. É possível observar modelos com deficiência estampando capas de revistas, participando de eventos de moda, como por exemplo, a São Paulo Fashion Week.
Sobre essas ações, Heloisa diz que ainda são ações muito pontuais e, quando um corpo com deficiência aparece em uma dessas mídias, são modelos jovens, brancas, magras e com deficiências leves. Ou seja, apesar de possuírem uma deficiência, têm espaço porque, de uma forma ou de outra, atendem de algum modo ao padrão de beleza imposto pela grande indústria da moda.
Samanta Bullock acredita que a inclusão é real. Ainda que os números possam melhorar, a questão da diversidade está crescendo no âmbito geral. Há muita gente com deficiência na passarela, como observado há anos no Brasil Eco Fashion Week.
O modelo Rafael possui um ponto de vista diferente. Para ele, o mundo é conduzido pelo exemplo. Como não se vê muitos PCD ‘s representados na moda, a transição é lenta. Por isso, a questão tem mais a ver com os modelos, do que com a moda em si. “Onde estão as pessoas que representarão as pessoas com deficiência nos palcos, nas revistas, nos desfiles? Eu escolho me incluir, ao invés de esperar ser incluído”.
Heloisa acrescenta a falta de interseccionalidade nos corpos com deficiência na mídia. O corpo apresentado é sempre de alguém jovem, branco e magro, excluindo pessoas com deficiência de outros gêneros, idades, tamanhos e raças. Deficiências muito visíveis (graves ou impactantes) possuem pouco espaço na mídia, pois as agências e os veículos de comunicação optam por perfis que não choquem a sociedade e que, visivelmente, sejam ‘agradáveis’ ao grande público. “A deficiência ainda é o grande foco nessas produções e não o estilo, a pose, a beleza e o profissionalismo da pessoa em si”.
No início da Gas Models, Andréa costumava recrutar os modelos PcD para sua agência, mas no decorrer do tempo, conforme seus semelhantes percebiam o resultado dessas pessoas no mercado, eles adquiriram segurança e passaram a procurá-la para o agenciamento. Ela enfatiza que aprova somente aqueles com potencial. Isto não significa padronização, hoje preza-se além do profissionalismo, também por muita personalidade, e é ao demonstrá-la que o modelo se diferencia dos perfis semelhantes ao seu.
“Nãos” serão recorrentes, e suas razões podem ser inúmeras, mas saber diferenciá-los de preconceito pode ser um fator determinante na carreira. Rafael Muller, que já foi destaque nas passarelas de grandes desfiles como a São Paulo Fashion Week em 2021, pela Meninos Rei, se posiciona ao comentar que mantém uma postura viril em todos os lugares que frequenta, olhando no olho e falando de igual para igual, sem se engrandecer ou se diminuir.
Andréa e Samanta relatam que as agências e marcas prezam pelo cuidado nas abordagens com os modelos, principalmente antes de os conhecerem, pois até então não se sabe se e quais traumas carregam consigo. Da mesma forma, se mantêm atentas ao briefing do trabalho, buscam enxergar a necessidade de cada um, assim como ver as marcas e as soluções que elas oferecem, pois se alguma adaptação for necessária, é preciso ter o tempo suficiente para fazê-la, para então evitar desconfortos e criar o ‘match’ entre modelo e marca, da melhor forma possível. O primordial é mostrar que tem que ter profissionalismo, pois segundo Andréa, quanto mais preparados, mais abertura se alcançará, e mais espaço para esses modelos com limitações físicas.
É fato que, apesar dos avanços obtidos até o momento, as limitações persistem, pois fala-se de um mercado que segue um mesmo arquétipo há décadas, e adaptá-lo demanda persistência. Ser portador de deficiências físicas e escolher a carreira de modelo, seja ela fashion ou publicitária, não implica especificamente um desafio, como ressalta Rafael, pois as limitações encontradas serão as mesmas do dia a dia: escadas, adaptações e tudo o que envolve uma vida com deficiência. O maior fator limitante ainda é a exclusão, pois são poucas as marcas que incorporam a PcD nos desfiles, como Samanta Bullock evidencia.
Está ocorrendo uma evolução no mundo e no mercado da moda e, consequentemente, esta vem se tornando mais inclusiva e mais representativa. Porém, tem-se muito caminho pela frente. Como diz Samanta, ao responder sobre o impacto de seu trabalho como influenciadora, que a ela deu destaque como uma das 100 pessoas mais influentes do Reino Unido, onde vive. “É uma grande evolução e está sendo uma jornada divertida e fascinante, mas com muitos desafios, que com certeza vamos percorrer juntos para a criação de um mundo melhor e mais inclusivo”
Reportagem: Bárbara Marmilicz, Lídia Veronica dos Reis, Luana Novaes e Thalita Vizioli
Matéria produzida na disciplina Redação Jornalística II, do curso de Jornalismo do Campus da UFSM em Frederico Westphalen, no 2º semestre de 2021, ministrada pela Professora Andrea Franciele Weber.